Madeira-Mamoré
Ferrovia do Diabo (Capítulo VIII)
Ferrovia do Diabo (Capítulo VIII)
Quando tratarmos da profilaxia quinínica veremos que aqui também a praxes habituais não cabem na região do Madeira. É a formação da raça de hematozoário resistente à quinina. Daí a necessidade do emprego de altas doses no tratamento e profilaxia. (Osvaldo Cruz)
- Ano de 1910
A construtora trouxe para região uma média de 508 operários por mês de todas as partes do mundo. No dia 23.04.1910, um funcionário do alto escalão do Ministério da Viação, enviou à Madeira-Mamoré Railway uma autorização para o lastramento da linha.
Lastramento: colocação de uma camada de brita sob os dormentes.
O lastramento não estava previsto no contrato e, portanto, não havia um preço prévio contratado. A ordem não especificava o preço caracterizando uma grave irregularidade que resultaria, mais tarde, como não poderia deixar de ser, em um grave escândalo patrocinado por agentes públicos. No dia 31.05.1910, foi inaugurado o primeiro trecho da Ferrovia, entre Santo Antônio e Jaci-Paraná, numa extensão de 90 quilômetros .
Dr. Carl Lovelace, Dr.Oswaldo Cruz e Dr.Belizário Pena |
Naturalmente o regime das águas do rio inundam as margens baixas do alto Madeira, formando os pântanos donde se originam as aluviões de mosquitos que se vão encarregar de alastrar a endemia malárica que é em função dessas precipitações aquosas. O Madeira atinge o máximo da cheia em meados de março, alcançando as águas a altura de 96 metros , isto é, 14 metros acima do nível mínimo de 82 metros que é atingido na última quinzena de setembro.
Como regra, se verifica que a insalubridade da região começa pouco depois da vazante, quando as águas, abandonando a terra ficam em parte depositadas nas depressões dos terrenos, onde se formam, então, pântanos que se estendem por quilômetros de extensão e permitem a criação em massa dos anofelinos que se vão infectar nos impaludados crônicos que habitam a região e vão disseminar extensa e intensamente a malária. (...)
Dominam na nosologia da região as seguintes moléstias: o impaludismo, a febre hemoglobinúrica, o beribéri, a disenteria, a ancilostomíase, a pneumonia, além de outras entidades mórbidas de menor frequência e a que adiante aludiremos; acompanhando tudo o alcoolismo. (...)
Dos anofelinos transmissores do impaludismo só nos foi dado, na época que estudamos (julho e agosto), colher duas espécies de Cellia, a alcimana e a argyrotarsis, sendo esta predominante. Não encontramos outras espécies em Candelária, Santo Antônio, Jaci-Paraná, e em outros pontos da linha em construção. Mas se não avultam pela variedade de espécies, assoberbam pelo número: no Jaci-Paraná em um rancho de palha onde havia quatro doentes logramos fazer colher numa só noite para mais de 100 exemplares de Cellia argyrotarsis. (...)
Naturalmente, à vista do que vimos relativamente à topografia da região, não se pode em cogitar fazer já, para facilitar a construção da estrada, os trabalhos de profilaxia regional que quase custaria tanto se não mais que a própria construção. Só podem ser tomadas em consideração os processos do método da profilaxia individual. (...) Assim, se tivéssemos de fazer profilaxia quinínica teríamos de avaliar qual a dose mínima de quinina suficiente para preservar o indivíduo, dos parasitos inoculados pelos mosquitos. Observações que fizemos, na região, mostram que esta dose para ser profícua não deve ser inferior a 75 centigramas ou 1 (um) grama diário. Pessoas que tomaram doses inferiores foram infectadas. Resta saber se essa prática de profilaxia química exclusiva caberia à região. “A priori” podemos dizer que não, e não porque em breve a raça de parasitas já em via de imunização contra a quinina estaria resistente a 1 (um) grama diário de quinina profilática, o que levaria à necessidade de se elevar a dose profilática aos poucos até atingir os limites da dose manejável. Ora, atingido esse limite, a dose terapêutica estaria dentro da dose tóxica e ficariam os doentes no dilema de: morte por moléstia ou intoxicação pelo medicamento.
Essas medidas precisam ser postas em prática, já quanto antes, porque em breve, ter-se-á formado uma raça de hematozoário resistente às doses manejáveis de quinina e então a solução do problema quase que atingirá os limites do insolúvel. A procrastinação das medidas será um crime de lesa-humanidade, permitindo maiores sacrifícios que os de hoje: uma vida, e talvez dez inutilizadas por dia, e de lesa-pátria porque transformará em zona inabitável um dos mais ricos sítios do planeta.
No dia 30.10.1910, foi inaugurado o segundo trecho, com extensão de 62 quilômetros . A Ferrovia chegava ao quilômetro 152, na altura da Cachoeira dos três Irmãos. No dia 08.11.1910, o Presidente da República, Nilo Peçanha, e o Ministro da Viação, Francisco Sá, assinam o Decreto n° 8.347, que constava de apenas três artigos:
1°) modificando o traçado de um futuro ramal de Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (alterando o acordado no Tratado de Petrópolis);
2°) autorizava o lastramento da Ferrovia (lastramento que já havia sido autorizado em 23.04.1910, agora especificando o absurdo preço a ser pago de 2.750 libras esterlinas por quilômetro);
3°) Autorizava a construção de diversas obras que não constavam do antigo contrato (sem, absolutamente, especificar os custos).
No dia 12.11.1910, foi assinado o contrato para a execução dos serviços constantes do Decreto sem detalhar a execução e os custos dos serviços, um procedimento extremamente favorável aos empreiteiros norte-americanos e altamente lesivo aos cofres nacionais.
- Ano de 1911
A empreiteira trouxe, neste ano, 5.664 operários de todas as partes do mundo. No dia 16.06.1911, o Tribunal de Contas da União (TCU), considera ilegais os favores concedidos à Madeira-Mamoré Railway pelo Decreto n° 8.347, de 08.11.1910, e nega seu registro. Pressionado pelo TCU e pela opinião pública, o Ministro da Viação, no dia 24.08.1911, cria uma Comissão Extraordinária para fiscalizar os trabalhos de construção da Ferrovia, composta por um engenheiro fiscal, dois engenheiros e um funcionário do Ministério. A Comissão deveria apresentar um relatório sobre a apuração das contas dos diversos serviços complementares da construção.
No dia 07.09.1911, foi inaugurado novo trecho da Ferrovia, até o quilômetro 220, na foz do Rio Abunã. No final do ano de 1911, existiam
quilômetro 306, até onde chegavam os trens de lastro. O restante, do quilômetro 306 até o final da linha, numa extensão de 58 quilômetros , se encontrava em construção. A Madeira-Mamoré Railway Co., já possuía 11 locomotivas, 2 carros de passageiros, 76 vagões fechados e 163 gôndolas.
No final de 1911, os produtos bolivianos e brasileiros depois de atravessar as primeiras cachoeiras e serem desembarcados na Estação de Abunã, eram embarcados nos comboios da Ferrovia que os transportavam até Porto Velho, onde novamente eram colocados nos vapores que desciam o Madeira.
- Ano de 1912
A companhia “importou” somente 2.733 operários. No dia 04.03.1912, a Inspetoria Federal das Estradas de Ferro, subordinada ao Ministério da Viação, informa que estava em vigor o polêmico Decreto n° 8.347, de 08.11.1910, considerado, no ano anterior, ilegal pelo TCU. No dia 14.05.1912, a Comissão Extraordinária nomeada no ano anterior concluiu:
Se adquire a convicção de que grandes irregularidades se têm dado com a Madeira-Mamoré Railway Company, no tocante às contas e execução dos serviços, que importam em grandes prejuízos para o Tesouro Nacional. Dotado de posição geográfica privilegiada, julgamos Porto Velho destinado a ser um dos maiores centros comerciais do Vale do Amazonas. O comércio de toda a região cisandina manterá suas comunicações com o Velho Mundo, por esta via, mais próxima e menos arriscada que a do Pacífico, mesmo depois de aberto o Canal do Panamá. As repúblicas do Chile e Argentina, compreendendo as inúmeras vantagens a auferir do comércio da hinterlândia sul-americana, que lhes pode ser disputado com vantagens pelo Brasil, por intermédio da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, tratam de construir, a marchas forçadas, Estradas de Ferro que venham disputar-nos o comércio desta região.
A estrada chilena de Arica a Cochabamba está quase a terminar, e agora mesmo encetaram os trabalhos de construção da Estrada de Ferro de Cochabamba a Chimoré, que fica situado, conforme sabemos, já em águas do Mamoré, em um ponto navegável. Eis um adversário sério, que surge para disputar-nos o campo.
A Estrada de Ferro Central Argentina, cujo tráfego está em Tupiza, dirigi-se, também, aceleradamente para Cochabamba, vindo constituir-se mais um adversário, que procurará, com denodo, encaminhar todo o tráfego para Buenos Aires.
Finalmente o governo reconhecia que graves irregularidades tinham ocorrido na construção. Ora se existia um engenheiro, do Ministério da Viação, destacado para acompanhar as obras e se o próprio governo se propôs a alterar a concessão em vigor através de um polêmico decreto, de quem seria a culpa? Além disso, o relatório pintava um quadro sombrio sobre as perspectivas futuras da Madeira-Mamoré 46 dias antes de ser assentado seu último dormente.
No dia 30.04.1912, foi assentado o último dormente da Ferrovia em Guajará-Mirim e, no dia 01.08.1912, deu-se a inauguração dos 364 quilômetros . A construção reabilitava a memória do Engenheiro Carlos Alberto Morsing e provava que a Planta da Public Works era autêntica.
- Ano de 1913
O Governo Brasileiro pagara à construtora um total de 40.474:872$622 conforme acordado no contrato de concessão lavrado com Joaquim Catramby, em 1906, e que este vendera à Madeira-Mamoré Railway Company. Vinha agora a empreiteira, concluída a construção, reclamar do governo um pagamento adicional já que o custo real da Estrada fora o dobro dos preços estipulados na concorrência e no contrato.
- Ano de 1916
Finalmente, no final de 1916, o Brasil pagou à Madeira-Mamoré Railway Company a seguinte quantia: 62.194:374$366 dando um basta a pretensões da empresa norte-americana que continuou reclamando uma quantia excedente.
Fonte: FERREIRA, Manoel Rodrigues – A Ferrovia do Diabo – Brasil – Edições Melhoramentos, 1959.
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