MAPA

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quinta-feira, 21 de julho de 2011

Charqueada de Santa Thereza

Charqueada de Santa Thereza


Oh homem, que tudo aniquilas e que tudo destróis, esta é a tua obra verdadeira e eterna: sangue, sangue, sangue - em toda parte sangue. Gotejam os rubros filetes nestas galerias de carnes. Minas de carnes! Carne! Carne! Por toda a parte: carne!... No vapor dos corpos dissecados correm as zorras cheias de cadáveres do lugar da matança para o da dissecação. Dentro do tórax como prisioneiros, estão acocorados os negros carniceiros por detrás das costelas que semelham grades. (...) Das trevas das tormentas fumegantes eles arrastam bandeiras de carne que desfraldam ao vento! Que empilham em montes altos como casas! Adiante, na cerca de arame farpado balouçam trapos nus, exalando vapores. Sob a ardência do sol. Corações! Corações! - agora trapos sujos! Não palpitáveis ainda ontem, no conforto da vida? Não palpitáveis ainda há pouco, na intuição da morte, corações? Andrajos sujos!...
(Harnisch - Nas Minas de Carne)

Fui convidado para realizar a palestra de abertura da Semana de Formação Continuada para os professores da rede estadual de Bagé. Foi um prazer enorme, na manhã de 18 de julho, repassar aos mestres a nossa amazônica vivência e ter a oportunidade de visitar esta bela e progressista cidade da campanha gaúcha que com os olhos voltados para o futuro não descura de seu valoroso passado.



Aproveitamos a semana em que se festejam os 200 anos de Bagé para conhecer um pouco de sua história, um dos locais que mais chamou nossa atenção foi o projeto de revitalização do complexo da “Vila de Santa Thereza”.


-  Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães

O Visconde de Magalhães foi um visionário e dinâmico comerciante, industrialista e criador de gado cuja história está ligada indelevelmente ao desenvolvimento econômico do Município de Bagé. Filho de Joaquim Nunes e Joaquina Rosa de Magalhães nasceu nos Castelões de Cepeda, freguesia portuguesa do Conselho de Paredes, no dia 5 de outubro de 1841. Desde cedo sentiu a necessidade de buscar novos horizontes onde:

pretendia dar largas ao seu gênio altamente empreendedor e ativo, sendo o Brasil o país dourado dos seus belos sonhos de criança, para o qual embarcou, contando doze anos de idade, depois de aprender as primeiras letras na escola primária de sua terra”. (Fonte: Cláudio Antunes Boucinha)

Nos idos de 1853, Magalhães, com 12 anos de idade, embarcou sozinho no Veleiro Íris, com destino ao Brasil. Desembarcou no Porto de Rio Grande onde foi contratado como caixeiro em um dos armazéns do Mercado Público de Rio Grande. Mais tarde foi trabalhar com Delabary do qual viria a se tornar sócio e algum tempo depois fundou a firma “Alegre & Magalhães” que dissolveu em 1872.

-  Cronologia Histórica

1872  mudou-se para o “Pirahy”, onde constituiu a firma “Magalhães & Souza”, associado a Francisco Loureiro de Souza, operando no ramo de “secos e molhados”. Poucos anos depois, montou uma próspera empresa que fechou antes de mudar-se para Bagé onde continuou se dedicando ao mesmo ramo de negócios incorporando a ele produtos pecuários.

1881  resolve aplicar os lucros obtidos no comércio na compra e venda de gado.

1885  em 24 de novembro a Junta Comercial de Porto Alegre concedeu-lhe a carta de comerciante matriculado.

1888  em 17 de setembro foi nomeado Vice-cônsul de Portugal, cargo que ocupou até sua morte.

1893  tornou seu filho primogênito Antonio Magalhães sócio na casa de comércio, constituindo a firma Magalhães & Filho.

1894  fundou a charqueada de “Cotovelo” que foi liquidada, em 1897.

1897  fundou o “Saladero Santa Thereza” com instalações mais amplas com capacidade de abater 45.000 reses por safra. Com a intenção de expandir os negócios comprou alguns hectares a sudoeste da cidade, à margem da estrada de ferro, onde inaugurou, em 21 de fevereiro, a “Charqueada de Santa Thereza” em homenagem à sua esposa Thereza Pimentel Magalhães.

1898  inaugurou em Santa Thereza um sistema de iluminação a gás acetileno.

1899  introduziu em Bagé um lote de animais da raça Durham, importados da Inglaterra.

1901  a Charqueada de Santa Teresa possuía uma caldeira a vapor, linha férrea para transporte de resíduos, luz elétrica fornecida por uma pequena usina hidrelétrica, serraria a vapor, oficina de ferraria, tanoaria, vila operária, restaurante, armazém e padaria. A charqueada abatia, na safra, 480 reses por dia e empregava 180 pessoas.

1904  arrendou a “Companhia Industrial Bajeense”. Os dois estabelecimentos chegaram a abater, numa safra, 94.600 animais. Construiu, entre as duas charqueadas, uma avenida arborizada, a “Boulevard 16 de Outubro” e uma linha de bondes.

1906  em 01 de setembro foi agraciado com o título de Visconde de Ribeiro Magalhães, cuja carta foi dada e assinada por Dom Carlos, Rei de Portugal, no Paço das Necessidades, em Lisboa.

1907  comprou a “Companhia Industrial Bajeense” e mudou sua denominação para “Charqueada Industrial” (atual Mercosul).

1908  a Charqueada tinha instalações suficientes para abrigar mil trabalhadores, embora sua população efetiva tenha chegado a 894 empregados. A charqueada possuía sapataria, barbearias, alfaiataria e uma capela dedicada à “Santa Thereza”. Neste mesmo ano foi inaugurado o teatro Santo Antônio.

          O Teatro Santo Antonio possuía seis camarins, dezessete camarotes, cinquenta cadeiras, gerais, mesa de bilhar, piano, bilheteria, copa, piano e teto com medalhões de Carlos Gomes, Donizzetti, Bellini, Auber, Ariza, Gounod, Puccini, Franchetti, Verdi, Marchetti, Feiullet, Barrou e Chopin. Havia um grupo de Arte Dramática, constituído pelos operários da Charqueada.

          Inaugurou, no dia 15 de outubro, uma pequena capela em homenagem a Santa Thereza D’Ávila, cumprindo uma promessa de sua esposa Thereza. O órgão do coro da capela e todos os paramentos da capela, altar, a custódia, cravejada de rubis e esmeraldas, foram importados de Paris e o altar-mor da Bahia. O Dr. Júlio Mascarenhas de Souza foi contratado para ser o diretor do pequeno hospital denominado “Sociedade Beneficente Santa Teresa” que dispunha de uma sala para cirurgias e enfermaria. Construiu um colégio misto para 60 alunos, cujo professor era remunerado pela Intendência Municipal.

          Entre a mansão dos Magalhães e a capela foi escavado um fosso em volta de uma pequena ilha onde foi construído um coreto. O fosso abrigava peixes ornamentais e o coreto era usado para a apresentação de bandas. Havia uma banda formada pelos operários da Charqueada denominada “Lira Santa Thereza”, que fazia suas apresentações no coreto e no teatro do local.

1912  vendeu “Charqueada Industrial” e “Charqueada de Santa Thereza” a “Anglo-Brazilian Meat Company Limited”.

1914  Magalhães possuía 2.200 vacas leiteiras, em Santa Teresa e na estância Rio Negro. A partir dessa criação, construiu uma indústria de laticínios, produzindo queijos, manteiga, leite pasteurizado, leite medicinal, cujo administrador era o senhor Castro Garavia.

1916  o Visconde foi um dos maiores proprietários de terras do Rio Grande do Sul. Possuía várias estâncias, seu rebanho bovino ultrapassava as 30.000 cabeças. Possuía trinta prédios em Bagé, Rio Grande, Cassino, São Paulo e Portugal além de 32.600ha em terras que lhe conferiam o status de segundo maior contribuinte do Estado em imposto territorial.

1913     introduziu 20 reprodutores puros, além de 68 ovelhas.

1923   com a falência do Visconde parte dos seus bens foram vendidos para saldar dívidas.

1926  no dia 11 de janeiro faleceu o Visconde de Ribeiro Magalhães.

-  Centro Histórico Vila de Santa Thereza
    Fonte: O Informativo do Vale

A iniciativa de Ierecê Belmonte Móglia em evitar a destruição de uma bonita capelinha erguida pelo português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, o Visconde de Magalhães, no complexo de prédios que começou a construir em 1897 para o funcionamento da charqueada de Santa Thereza, há oito anos deu origem à Associação Pró-Santa Thereza. Seu objetivo, resgatar e captar recursos com a iniciativa privada para revitalizar a área. Localizada a sete quilômetros do centro de Bagé, no bairro de Santa Thereza, é um conjunto de grande beleza natural e arquitetônica, que deve se transformar em centro cultural e turístico até o final de 2008. Para uma das coordenadoras do projeto, Eliane Simões Pires Pacheco, a história da Vila de Santa Thereza está associada à figura ímpar do Visconde de Ribeiro Magalhães.

Ao vir para o Brasil com apenas 12 anos de idade, personagem de grande tenacidade e marcante capacidade empreendedora, foi capaz de construir, em plena Campanha do século XIX, um aglomerado urbano que oferecia moradia, cultura, lazer e consumo aos operários de suas indústrias de carne. No complexo da Charqueada Santa Thereza, em sua residência, o visconde recebia pessoas ilustres, como o escritor Olavo Bilac. Ele mantinha na "Vila Operária" cerca de mil pessoas, entre trabalhadores e seus familiares, em casas de alvenaria. Uma usina produzia luz elétrica. Havia ainda hospital, armazém, alfaiataria, carpintaria, fábricas de adubo e de ladrilho hidráulico e uma estação de trem. A pequena capela católica foi construída em homenagem a Santa Thereza D’Ávila, para cumprir promessa feita por dona Thereza, esposa do visconde. O dia da inauguração, 15 de outubro de 1908, foi escolhido por ser o de nascimento da santa. O projeto de revitalização do complexo, elaborado pelo arquiteto e professor da Uniritter, Flávio Kiefer, passa pela restauração da capela e do coreto, além de tratamento paisagístico e luminotécnico da área. Também serão construídos um teatro em estilo contemporâneo para cem pessoas e um memorial, montado na casa em que morava um dos filhos do visconde. Nele estará registrada a história da charqueada e de seus habitantes. Os recursos para as restaurações são de diversas empresas, através das leis Rouanet e de Incentivo à Cultura.

Fontes: claudioantunesboucinha.blogspot.com
           cidadebage.blogspot.com


sábado, 2 de julho de 2011

A Ilha Encantada de Parintins



Na minha última descida pelos caudais amazônicos aportei na linda Parintins no dia 5 de janeiro deste ano, véspera de meu aniversário. Em homenagem ao tradicional Festival Folclórico de Parintins, escrevemos o presente artigo. O festival que será transmitido, com exclusividade, pela Band nos dias 24, 25 e 26 é o segundo maior evento do país e, certamente, o mais belo do mundo.

- Emoção Sexagenária

Graças ao Coronel de Engenharia Aguinaldo da Silva Ribeiro, eu estava desfrutando do apoio da zelosa tripulação do B/M Piquiatuba. Para quem, como eu, já desceu o Rio Solimões de caiaque, sem qualquer tipo de apoio, é fácil perceber a importância desses verdadeiros guardiões que não me perderam de vista um segundo sequer. Graças a um equipamento de rádio doado ao projeto pelo meu amigo Wanrley dos Anjos Perazzo o contato verbal foi feito sem a necessidade de aportar ou de me aproximar da embarcação de apoio. A par da competência de cada um dos tripulantes, cabe ressaltar o respeito e o carinho deles para comigo e acredito, piamente, que mais que uma missão de apoio eles assumiram o papel de meus verdadeiros anjos da guarda.

O Comandante do Batalhão da Polícia Militar de Parintins, Major Túlio Sávio Pinto Freitas foi me visitar a bordo e colocar-se à disposição. O Túlio é uma criatura alegre, comunicativa e extremamente prestativa, cujo sotaque e o comportamento lembram um típico gaúcho de campanha. Graças a ele fomos acomodados, gratuitamente, no Hotel Avenida, na Avenida Amazonas, de propriedade do senhor Mário Flávio Andrade de Souza. Depois de percorrermos a cidade de chimarrão em punho o Túlio foi à missa e eu fui buscar os apetrechos necessários no Piquiatuba para o pernoite no Hotel. A equipe de apoio tinha preparado uma comemoração ao meu natalício, recebi de presente o belo livreto “Entoada” que traz no seu bojo as letras e as músicas deste mago da poesia chamado Tadeu Garcia. Eu já estava bastante emocionado e tentava voltar, imediatamente, para meu refúgio emocional, mas o pessoal de bordo me preparou mais uma peça e quando desci para o convés inferior a mesa de aniversário estava posta com velinhas e tudo. Depois dos parabéns uma surpresa que absolutamente não esperava, a tripulação me presenteou com uma miniatura personalizada do Piquiatuba. Guardarei com muito carinho esta recordação que representa não apenas mais uma Fase do Projeto Rio-mar, mas, sobretudo, materializa a conduta irrepreensível desta “Tropa de Elite” do 8º Batalhão de Engenharia de Construção.

O Comandante Túlio colocou à nossa disposição uma viatura da PM, conduzida pelo Sgt Klinger, permitindo-nos conhecer os pontos turísticos mais importantes da bela cidade. Visitamos a Catedral Nossa Senhora do Carmo, projetada na Itália, fundada em 31 de maio de 1962. A Catedral possui uma monumental torre de 40 metros de altura e base quadrangular que é igualmente revestida de tijolos aparentes. A Igreja de São Benedito, primeira Igreja de Parintins, fundada em 1795, pelo Frei José das Chagas e demolida em 1905. Foi construída, em 1945, no seu lugar, a capela de São Benedito. A atual Igreja do Sagrado Coração de Jesus, fundada em 1945, chamava-se Igreja Nossa Senhora do Carmo, e teve seu nome alterado depois da construção da nova catedral, em 1962. Fica localizada na Praça Sagrado Coração, em frente ao colégio Nossa Senhora do Carmo, o mais tradicional de Parintins. Depois de nosso tour religioso fomos conhecer o Bumbódromo onde se realiza o Festival Folclórico de Parintins e que abriga durante o restante do ano uma escola municipal com 18 salas de aula. Concedi uma entrevista à Rádio-TV Alvorada e Rádio Clube de Parintins onde fomos entrevistados pelo repórter Tadeu de Souza.

Reportagem de Tadeu de Souza (Blog)

CORONEL DESAFIA O RIO MAR
Parintins – O coronel Hiram, na foto com o subtenente Klinger, da arma de Engenharia, é gaúcho, professor do Colégio Militar de Porto Alegre e Ir:. do atual comandante da PM, Major Túlio, serviu na Amazônia e por ela se apaixonou. Na reserva, ele dá sequência a mais uma etapa de um sonho: descer o rio Amazonas de Caiaque. O Projeto chama-se “Desafiando o Rio-mar”. Agora, a pouco ele esteve no programa “Portal Em tempo”, da Rádio Clube, e falou sobre essa nova fase do projeto que termina em Santarém, no Pará, de onde ele retorna a Porto Alegre para iniciar a redação dos depoimentos que ouviu durante a viagem. “Vamos transformar tudo em livro”, afirmou.

Entrevista com Dona Ângela

Meu marido sempre foi Garantido. Só nossa família ajudava o boi com dinheiro. Meu filho foi o primeiro apresentador oficial do Garantido.

Dona Maria Ângela de Albuquerque Faria, hoje com 88 anos, nasceu em Belém do Pará e mudou-se com o marido, José Pedro Faria, já falecido, para Parintins, em 1953. Dona Ângela está acostumada a receber visitas e nos recebeu com muito carinho. Mostrou os aposentos de sua casa e o pátio onde, é lógico, o vermelho tem posição de destaque. Muito alegre e comunicativa nos fez assinar um dos inúmeros cadernos onde guarda com carinho as mensagens de todos que a visitam.

Eu sou Maria Ângela de Albuquerque Faria, mãe do Paulo Faria, sou Garantido há setenta anos. Aqui na minha casa é tudo vermelho, eu amo o boi Garantido eu amo o nosso presidente. Toda a nossa família é Garantido que é o boi mais lindo e que ficou conhecido mundialmente por duas músicas – o “Tic-tic-tac” e  Vermelho”. Na minha casa já veio meio mundo felicidades a todos.

Tic-tic-tac: a toada composta por Braulino Lima, gravada em 1993, tornou-se sucesso internacional, em 1997, com o Grupo Carrapicho. A toada fazia parte da temática do Garantido em 1993, “Rio Amazonas, este rio é minha vida”. O “Tic-tic-tac” é o som das caixinhas de guerra, que, junto com o tambor, marcam o ritmo do boi-bumbá. Um produtor francês, em 1996, ouviu a toada cantada pelo Grupo Carrapicho e resolveu lançá-la na França. O sucesso foi enorme e a toada depois de encantar o público europeu retornou e conquistou o coração dos brasileiros.


Bate forte o tambor
Eu quero é tic tic tic tic tac
Bate forte o tambor
Eu quero é tic tic tic tic tac

É nessa dança que meu boi balança
E o povão de fora vem para brincar
É nessa dança que meu boi balança
E o povão de fora vem para brincar

As barrancas de terras caídas
Faz barrento o nosso rio-mar
As barrancas de terras caídas
Faz barrento o nosso rio-mar
Amazonas rio da minha vida
Imagem tão linda
Que meu Deus criou

Fez o céu, a mata e a terra
Uniu os caboclos
Construiu o amor

Fez o céu, a mata e a terra
Uniu os caboclos
Construiu o amor

Bate forte o tambor...


Vermelho: a toada foi composta pelo compositor Chico da Silva, em 1996. O Chico, durante a gravação do CD, se desentendeu com a diretoria do Garantido e retirou sua toada da lista de seleção. A toada mesmo antes de ser executada nas rádios, já era conhecida em todo o Amazonas. Finalmente a diretoria entrou em acordo com o Chico e a toada fez sucesso em todo o Brasil. A toada foi a música mais executada nas rádios do Brasil naquele ano e ultrapassando as fronteiras nacionais virou sensação do “Festival do Avante em Portugal”.


A cor do meu batuque
Tem o toque e tem
O som da minha voz
Vermelho, vermelhaço
Vermelhusco, vermelhante
Vermelhão

O velho comunista se aliançou
Ao rubro do rubor do meu amor
o brilho do meu canto tem o tom
E a expressão da minha cor
Vermelho

Meu coração é vermelho
Hei, hei
De vermelho vive o coração
Ê, ô, ê, ô

Tudo é Garantido após
A rosa avermelhar
Tudo é Garantido
Após o sol vermelhecer

Vermelhou no curral
A ideologia do folclore
Vermelhou

Vermelhou a paixão


O Paraíso de Manuel Joaquim Coelho Lima

A única prisioneira deste divino lugar é a nossa felicidade. (Joaquim Lima)

A jornada ganhou um colorido muito especial depois que minha amiga Rosângela pousou, à noite, em Parintins, a inspiração para escrever voltou, as cores ganharam novos matizes e os sons melodias originais. Na manhã seguinte resolvemos dar um passeio a pé para conhecer os Currais do Garantido e Caprichoso. Estávamos retornando do passeio quando encontramos o casal Joaquim e Ester que nos convidaram para tomar o café em sua casa. Conhecêramos Ester quando fomos comprar algumas lembranças na sua loja e acabamos conhecendo o escritório do esposo Joaquim ao lado de sua loja. A maneira de tratar e o bom gosto do amável e empreendedor casal cativaram-nos de imediato.

Sua residência mais parece um belo parque temático. As alegorias que serviram de temas para o Festival do Boi dão um toque especial ao bem cuidado jardim. Já havíamos avistado peças como estas adornando jardins e muros de logradouros públicos e residências particulares de Parintins. Os moradores as adquirem, em leilão, ao término do Festival. Logo na entrada da residência dos Lima pode-se ler o Parágrafo Único do Artigo IV de “Os Estatutos do Homem” do poeta Thiago de Mello, amigo pessoal do Joaquim.

“O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino”.

O casal nos mostrou seus jardins e depois do café na varanda de sua agradável morada, uma casa de campo plantada em uma paradisíaca área de mais de um hectare, nos limites da cidade, fomos conhecer a Vila Amazônia, cuja história dedicarei o próximo capítulo.

Entrevista com o Sr Manuel Joaquim Coelho Lima

O amigo Joaquim é um homem fantástico, educado, de fala mansa e de uma experiência de vida que serve de exemplo para todos nós. Sua determinação e amor aos estudos transformaram aquele menininho que vendia picolés para sobreviver em um dos pilares mais importantes da sociedade de Parintinense. Foi realmente um privilégio conhecê-lo e à sua esposa Ester ainda que por breves momentos na nossa passagem pela Ilha de Tupinambarana. Na nossa próxima descida pelo Madeira e Amazonas pretendemos, novamente, encontrar os queridos amigos de Parintins. Reproduzo, abaixo, a entrevista que o Joaquim nos concedeu no seu belo escritório de contabilidade.

Nasci em 1958, sou o primogênito de uma família de 14 irmãos, minha mãe era professora rural e o meu pai era um simples carpinteiro. Passávamos dificuldades, tínhamos poucos recursos, a família crescia, todo ano nascia um irmão e aos 8 anos de idade tive que trabalhar na cidade, naquele tempo não tinha conselho tutelar nem nada, eu vendia picolé e pão doce. Duas irmãs foram trabalhar como empregada doméstica. Era uma situação difícil, no início dos anos 60, mais ou menos.

Comecei a estudar e meu pai teve que ir para o garimpo, no garimpo ele fumava e bebia, eu acho que no garimpo ele era obrigado a fumar alguma coisa muito forte, ele era mergulhador, mergulhava para buscar ouro lá no fundo. Muitas vezes as pessoas eram obrigadas a beber e fumar, um dos critérios para ir para lá era ser maluco assim. Então o meu pai praticamente desapareceu por lá, na época eu estava no exército, tive a sorte de ir para o exército com 17 anos, por um erro na data de nascimento, quando cheguei em São Gabriel eu estava com 17 anos e eu achava que tinha 18. Quando fiz meus exames para o exército, aqui em Parintins, a Fundação Estadual de Saúde Pública disse que não tinha a minha ficha, e minha mãe me disse:

“não tu nunca adoecesse meu filho, tu só pegaste uma cataporazinha, um sarampo, nunca tomou vacina, nunca adoeceu, nada, nada”.

Mamãe não tinha tempo, com 14 filhos, e eu era o mais velho e o mais velho precisava ajudar. Morreu um casal de gêmeos e depois outro irmão com problemas simples, sobreviveram 11 filhos.
Eu estava no exército e estava pronto para engajar, quando meu pai desapareceu e minha mãe ficou apavorada, tive de largar tudo e voltei para ajudar mamãe. Mas a família se reuniu e decidiu que nós tínhamos que estudar. Todos os meus irmãos estudaram, cursaram nível médio, hoje uma de minhas irmãs está fazendo doutorado na Austrália, eu fiz minha graduação, minha esposa também, um de meus irmãos é engenheiro, outro sociólogo, um deles está cursando psicologia, uma irmã está estudando e outra concluindo o curso de direito, para nós é uma vitória.

A minha mãe sempre foi uma guerreira. Quando minha irmã passou no vestibular de Manaus, ela se mudou para lá porque aqui não tinha emprego e levou os meus irmãos, só fiquei eu e uma outra irmã que é protética e a família toda foi morar em Manaus, fazem mais de 20 anos que moram lá, possuem casa própria e uma situação econômica muito boa, graças a minha mãe, ela é uma guerreira mesmo.

Eu fiquei em Parintins, terminei meus estudos, quando conclui meu estudo em 80 eu fiz 3 concursos públicos no Município e passei em todos. Você vê que eu trabalhei de picolezeiro, trabalhei numa loja como vendedor e quando concluí os estudos eu passei no concurso da CESP e depois no concurso do Banco do Estado. Meu sonho era ser bancário, passei no concurso da Caixa Econômica, naquele tempo, década de 80 era um glamour na cidade e com os estudos que eu tive no próprio município, estudando em escola pública e sem aulas de reforço, eu não tinha aula particular para estudar, eu era o mais velho, então eu sentia uma responsabilidade grande, eu não podia beber, eu não podia fumar; o irmão mais velho quando a família não tem um pai passa a ser o modelo dos outros irmãos e isso eu aprendi no exército, ter as coisas organizadas, ter disciplina, isso eu aprendi lá. A Caixa me chamou para trabalhar em Maués, cidade próxima daqui e ser caixa executivo para comprar ouro, uma cidade como Maués, fica a mais ou menos 18 horas de barco daqui. Quando cheguei lá eu tinha que andar de terno, gravata, era funcionário da caixa.

Eu 1980, me formei, e, em 1981, fiz concurso para professor do estado, passei e fui contratado para dar aula de contabilidade, em 1982 fiz concurso e ganhei mais uma cadeira para dar aula no estado, dava aula de contabilidade geral até para ex-colegas meus que não tinham passado, mas eu já trabalhava na contabilidade desde 1974, era auxiliar de escritório contábil, quando fui estudar na faculdade já entendia um pouco e meu professor percebeu minha facilidade, eu tinha notas excelentes e passei nesses concursos que já falei. Eu consegui me superar pelo estudo e olha que foi sofrido, não ter pai e tal.

Quando eu estava na Caixa em Maués, usando a tecnologia do banco, naquele tempo já tinha computador, eu trabalhava com telex, com informações. Liguei para uma moça de Porto Velho e disse que nessa área de garimpo tinha um senhor com as características do meu pai.

Depois de aproximadamente quinze anos que eu achava que meu pai estava morto uma colega me disse: que o nome do homem era José Cláudio de Lima e o nome de meu pai é Cláudio de Lima. A colega procurou e encontrou meu pai, e ele contou que era de Parintins, ela deu meu nome e telefone e, em fim, encontrei meu pai. Só que meu pai já era viciado, era alcoólatra mesmo e ele me disse que em um dos mergulhos ele perdeu a noção de tudo, passou muito tempo em um hospital de Belém e não lembrava de mais nada, só de quando já estava em Porto Velho e precisava fazer os documentos. Fez com outro nome porque não lembrava mais o nome dele e depois eu trouxe ele para cá, então foi uma felicidade muito breve, uma das conquistas que eu tive dentro da Caixa foi essa.

Em Maués eu trabalhava, de dia, na Caixa e, à noite, como professor. Foi quando eu conheci e namorei a minha esposa e casamos, em junho, lá em Maués. Depois veio o plano Funaro e extinguiu os postos, o governo teve que fazer uma contensão e acabou com a compra do ouro, fechando a agência em agosto. Depois que a Caixa fechou eu vim para Parintins.

Relatos Pretéritos – Parintins

Manuel Aires de Casal (1817)

Vila Nova da Rainha é mediana e abastada de peixes, junto à embocadura do Maués, paragem vantajosa para crescer. Quase todos os seus habitadores são índios Maués, os melhores mestres na composição do guaraná, cujo vegetal é comum no seu território, igualmente apropriado para a cultura dos cacueiros, já assaz numerosos os plantados. (CASAL)

Spix e Martius (1819)

Alcançamos, portanto, a 1° de outubro, o registro de Parintins, algumas palhoças ao sopé de uma colina de uns 200 pés de altura, coberta de mata virgem densa, que, de certo modo, pode ser considerado como ponto limítrofe entre as províncias do Pará e do Rio Negro. (...) Em seis horas de viagem, alcançamos aquela Vila, que se acha situada sobre a margem Meridional, 20 pés acima do nível das águas, e meia légua abaixo da foz do furo de Abacaxis ou Rio Maués no Amazonas. (SPIX E MARTIUS)

Antônio Ladislau Monteiro Baena (1839)

Vila Nova da Rainha: missão situada sobre a terra mediocremente alta de uma Ilha pertencente ao sistema de ilhotas jacentes ao longo da ribeira austral do Amazonas, entre o Rio Madeira e o Rio Tupinambaranas: cuja a Ilha do lado, em que se acha engastada a missão é lambida pelas correntes do Amazonas, que lhe dão um excelente Porto, e pelos outros lados é lavada por uma porção de águas derivada do furo ou canal Urariá e chamada vulgarmente Rio Ramos, que dividindo-se em dois braços entra no Amazonas por cima e por baixo da mesma Ilha, a qual demora 12 léguas acima do Rio Nhamundá, confim oriental da Comarca no Amazonas. (...) Ela deve sua indicativa ou primordial assento a José Pedro Clodovil, que em 1803 congregou um certo número de silvícolas Maués e Mundurucus atraídos com dispêndio seu e trabalho, e lhe deu o nome de Tupinambaranas que quer dizer Tupinambá não verdadeiro: cujo nome foi pelo Governador do Pará o Conde dos Arcos para a denominação atual quando a estabelece ampliando os descimentos, e encarregando de agregar ao redil muitos Gentios e Carmelitas Frei José das Chagas, que então missionava a Povoação de Canumá. Em 3 de setembro de 1818 vinte e nove moradores subscreveram o seu nome em uma petição, que endereçaram a El-Rei para que sublimasse esta missão à graduação de Vila, obrigando-se eles a edificar à sua custa casa de Câmara e cadeia. Também na mesma petição trataram de acompanhar a Câmara da Vila de Silves e dezenove vizinhos da mesma Vila no seu perdimento ao trono de ser constituído o Governo subalterno da Capitania do Rio Negro em Governo Geral, e de lhe criar uma Junta de Fazenda, e de promover para Este novo Governo o Major do Estado Maior do Exército Manoel Joaquim do Paço, que então era o Governador daquela Capitania. A Ilha em que está erguida a missão, não difere das outras do sistema em ser por maravilha fértil: todas são uns torrões, em que a riqueza natural provoca a atividade do homem. (BAENA, 2004)

Alfred Russel Wallace (1848)

Mas felizmente tudo ficava só no susto, e quatro dias depois chegamos a Vila Nova sãos e salvos. Era um longo caminho o que já havíamos percorrido, e isso deixou-me deveras satisfeito. Na praia, fomos cordialmente recebidos pelo vigário local, o Padre Torquato, que por assim dizer intimou-nos a ficar em sua casa durante o tempo em que ali tivéssemos de permanecer. Não houve como recusar o hospitaleiro oferecimento. (WALLACE)

Richard Spruce (1851)

Era tarde da noite de 24 de outubro quando chegamos a Vila Nova. (...) A Cidade foi construída no fundo de uma pequena baía, protegida por um rochedo baixo, sob o qual estão empilhados blocos de diorito (rocha ígnea cristalina, granular, comumente de cor verde-escura e constituída de plagioclásio e hornblenda, ricos em silício, piroxênio ou biotita), como os de Santarém. (SPRUCE)

Henry Walter Bates (1849; 1854/55)

Continuamos nossa viagem e chegamos a Vila Nova, um lugarejo muito espalhado, com cerca de setenta casas, muitas das quais dificilmente mereciam esse nome, já que não passavam de meras choupanas de barro cobertas com folhas de palmeira. (BATES)

Robert Avé-Lallemant (1859)

Não tardou avistarmos, a uma distância de seis milhas inglesas, na margem direita do Rio, Vila Bela da Imperatriz, outrora chamada Vila Nova da Rainha. Prosseguimos pela margem esquerda, até defronte da Cidade. Atravessamos então a corrente extraordinariamente impetuosa, e logo ancoramos junto à praia da pequena Cidade, para tomarmos lenha. Vila Bela da Imperatriz fica a 20 pés de altura acima do nível mais elevado do Rio, sobre um campo verde, que encosta na floresta por trás da Cidade. (LALLEMANT)

Luiz Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz (1865-1866)

Vila Bela. 27 de agosto (1866) - Parada de algumas horas, ontem à tarde, em Óbidos para receber lenha. Ninguém desce em terra. Embarcada a lenha, dirigimo-nos diretamente a Vila Bela, situada na outra margem do Rio, na foz do Tupinambaranas. Somos aí cordialmente recebidos pelo Dr. Marcos, um dos antigos correspondentes de Agassiz, que enviou várias vezes exemplares da fauna amazônica para o Museu de Cambridge. Hoje, à tarde, iremos fazer uma excursão de canoa por alguns dos Lagos próximos. (AGASSIZ)




Batalha Naval de Itacoatiara



Ao final de minha descida do Rio Negro conheci o ilustre escritor amazonense Antonio Loureiro, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Academia Amazonense de Letras (AAL), da Academia Maçônica de Letras (AML), da Academia de Medicina do Amazonas e membro correspondente da Academia Nacional de Medicina. Fui até a casa do escritor com a finalidade de conhecer um pouco mais da história do Estado do Amazonas. O Venerável Irmão à medida que discorria sobre os eventos históricos de seu querido estado trazia alguns de seus livros para reforçar a argumentação. Mestre Loureiro me presenteou com diversas obras e lanço mão de uma delas, “Tempo de Esperança”, onde ele descreve a Batalha Naval de Itacoatiara.


Os irmãos maçons da Loja Força e Harmonia n° 19, Oriente de Óbidos, na minha passagem por sua cidade, recomendara-me a leitura da obra de Ildefonso Guimarães: “Os Dias recurvos, anatomia de uma rebelião”. No seu romance, o autor, relata, com detalhes, a revolta que eclodiu no quartel do 4° Grupo Artilharia de Costa, onde serviu o Tenente Leônidas Cardoso, pai do ex-presidente Fernando Henrique. Liderados pelo extravagante “Coronel Pompa”, os sargentos da guarnição prenderam todos os oficiais e aderiram à Revolução Constitucionalista de 1932 ou Guerra de São Paulo. A Revolução tinha por objetivo a derrubada do Governo Provisório de Getúlio Vargas e a promulgação de uma nova constituição.

Utilizei trechos de ambos os autores, Loureiro e Guimarães, para narrar esta passagem pouco conhecida pelos amazonenses e ignorada pela maioria dos brasileiros.

Revolução de 1930 no Pará

No dia 3 de outubro de 1930, o movimento teve início com assaltos a quartéis e deposições de governadores em vários estados brasileiros. No Pará, no dia 5 de outubro, o 26° Batalhão de Caçadores foi tomado pelos revolucionários. O governador Eurico de Freitas Valle foi deposto depois que a Força Pública, leal ao governo, foi subjugada. Assumiu, então, como interventor do Pará, em 12 de novembro de 1930, o Tenente Magalhães Barata que, em agosto de 1931, foi promovido a Major.

General Joaquim Magalhães Cardoso Barata: filho de Antônio Marcelino Cardoso Barata e Gabrina de Magalhães Barata, nasceu em Belém do Pará, em 2 de junho de 1888. Cursou a Escola de Guerra de Porto Alegre. Foi interventor federal, de 12 de novembro de 1930 a 12 de abril de 1935 e, a seguir, governador do Estado do Pará.

O jornal “Folha do Norte”, que havia sido fechado pela junta governativa, voltou a circular e, na sua edição de 13 de novembro de 1930, publicou matéria enaltecendo o novo governante. O interventor declarou, em sua posse, que seu governo seguiria a risca o programa da Revolução definido anteriormente pelo Coronel Landry Sales, comandante das Forças Revolucionárias do Norte do Brasil e Governador Militar do Estado do Pará. O Decreto 19.398, de 11 de novembro de 1930, concedia ao interventor o direito de exercer, em sua plenitude, as funções do Executivo e do Legislativo, dissolvidos pela mesma lei, sem qualquer tipo de ingerência por parte do Judiciário. Magalhães Barata só responderia ao presidente Getúlio Vargas. Barata fez uso sistemático de decretos-lei, para reorganizar o Estado e desmontar a estrutura de poder dos antigos adversários confiscando a sede do Partido Republicano Federal onde funcionava o jornal “Correio do Pará”.

Foi nesse clima que um movimento revolucionário, fiel à Revolução Constitucionalista de 1932, eclodiu em Óbidos. O intrigante Coronel Pompa promoveu graduados ao posto de oficias, deteve embarcações, saqueou comerciantes mediante “requisições”, onde além de extorquir dinheiro dos comerciantes exigia o fornecimento de artigos, para amparar o movimento, onde se incluíam loções para cabelo, meias de seda para senhoras, caixas de cerveja, garrafas de whisky e urinóis. O mais cruel, porém, foi o recrutamento, à força, de jovens “voluntários” totalmente despreparados para suas fileiras. Como o próprio Ildefonso Guimarães conta no seu romance histórico: “Agarrou-se o caboclo à força, no amanhecer do dia anterior e se arrastou p’ro Quartel que nem mamote para capação. A maioria está, mais assustada do que onça diante de coivara, sabendo que está sendo preparada para ser metida numa guerra que tanto pode ser mais logo à noite como amanhã de manhã”.



Batalha Naval de Itacoatiara

URGENTÍSSIMO

Interventor Magalhães Barata – Palácio do Governo – Belém Pará.
Idêntico para Dr. Nogueira de Faria – DD Chefe de Polícia.

Comunico Vossa Exciª sargentos e praças 4º GACos aprisionaram oficiais da unidade VG aderindo Revolução São Paulo PT Rebelião começou amanhecer hoje instigada civil conhecido por Pompa se faz passar Coronel Exército PT Delegacia ocupada por praças está sendo dirigida civil dentista Emílio Pereira PT Sigo Santarém de onde darei melhores esclarecimentos PT Respeitosas saudações – Ten Fontelles Delegado Polícia Óbidos (GUIMARÃES)

Na noite de 19 de agosto de 1932 espalhou-se, em Manaus, a notícia de que os Sargentos do 4° Grupo Artilharia de Costa, de 70 homens, sediado em Óbidos, haviam aderido à Revolução Reconstitucionalista de São Paulo, obedecendo a chefia de um civil, comissionado no posto de Coronel, pelo General Bertholdo Klinger, o doutor Alderico (Pompa) de Oliveira, advogado baiano, que aqui vivera, tornando-se figura conhecida no “Ponto Chic”, na “Leiteira Amazonas” e no “Bar Americano”, onde passava por caixeiro viajante. (LOUREIRO).

O aventureiro Alderico Oliveira se fazendo passar por Coronel Pompa, emissário do General Bertholdo Klinger conseguiu convencer os sargentos e soldados do 4° Grupo a se rebelar contra seus oficiais e se utilizou da mídia obidense, mandando publicar manifestos à população.

No dia seguinte ao levante a “Folha de Óbidos” esgotou a edição extra de 200 exemplares. Estampada na primeira página estava a seguinte manchete: “ÓBIDOS TOMA POSIÇÃO AO LADO DE SÃO PAULO”, e logo abaixo o texto da proclamação:

MANIFESTO AO POVO OBIDENSE

O Coronel Pompa, Comandante das Tropas Revolucionárias de Óbidos, comissionado e enviado especial do Sr. Bertoldo Klinger, Comandante em Chefe do Exército Constitucionalista, lançando o presente boletim ao povo desta cidade, com a franqueza e lealdade própria do soldado que coloca as honrarias e postos sob os pés, para olhar e encarar a defesa e integridade da Pátria, sente-se orgulhoso em dizer que o movimento ora levantado neste rincão belíssimo do Amazonas está vitorioso, porque não só conta com a adesão incondicional da maioria da Armada Nacional e Exército Brasileiro, como também não se trata de um movimento político, porquanto, mais alto que o interesse do mando, mais alto que o desejo de perpetuidade nos cargos públicos, fala pela boca do são patriotismo a necessidade do País voltar ao regime da lei.

E voltará.

Apenas calma, reflexão, ponderação pedimos e aconselhamos ao povo desta boa e hospitaleira erra. Esteja o povo tranquilo que tudo há de ser resolvido dentro das melhores maneiras, sem estrépitos inúteis e sem fuzilaria desnecessária. O Povo que se congregue, o Povo que se levante e o Povo que venha lutar pela constitucionalização do País, para salvar a honra deste Brasil amado e desta Pátria querida. Avante brasileiros, que à frente desta luta sacrossanta e digna estão brasileiros, civis e militares, de envergadura moral invejável, de caráter impoluto e de honra inatingível.

Para a frente!

(a) Coronel Pompa. (GUIMARÃES)

Os rebelados haviam mandado um ultimato ao 27° Batalhão de Caçadores (27° BC) de Manaus, solicitando a sua adesão ao movimento, caso contrário atacariam a Cidade. A partir deste momento, o interventor federal em exercício, o Comandante do 27° BC e o Capitão dos Portos tomaram as providências ao seu alcance, para a defesa da Cidade, mobilizando lanchas para o patrulhamento do litoral, estabelecendo o regime de prontidão nos quartéis, guardando os principais prédios públicos, vigiando as ruas e apagando a luzes da orla portuária. (LOUREIRO)

O Major Magalhães Barata, Interventor Federal do Pará, tomou, imediatamente as medidas procedentes, deslocou para a região uma força de trezentos homens armados e municiados a bordo do vapor “Tenente Portella”, da flotilha do Estado e autorização do Governo Federal para que o encouraçado “Floriano” seguisse, logo em seguida em apoio ao “Tenente Portella”.

O INTERVENTOR DO PARÁ TRANQUILIZA O DO AMAZONAS SOBRE OS SUCESSOS EM ÓBIDOS

O Major Magalhães Barata dirigiu ao Interventor do Amazonas o seguinte telegrama:

Dr. Waldemar Pedrosa

DD. Interventor Interino Amazonas

Comunico Vossa Excelência que fui cientificado ontem de um levante de soldados do 4° Grupo de Artilharia, sediado em Óbidos neste Estado. O movimento, de que não participa nenhum oficial, não tem grande importância, reduzindo-se a mero motim. Os soldados são auxiliados por políticos decaídos e chefiados por um civil que se intitula emissário do General Klinger. Apesar de terem sido presos pelos sediciosos, todos os oficiais e autoridades civis, o levante é sem finalidade objetiva e assim não pode abalar a tranquilidade do espírito público, mesmo porque o 4° GAC fora anteriormente desmuniciado e conta apenas com 70 homens, servindo o gesto apenas para impressionar fora do Estado e, particularmente, no sul do País, fazendo-se crer na participação do Norte nas simpatias pela criminosa sublevação de São Paulo.

Imediatamente tomei necessárias providências e ontem mesmo fiz seguir para ali o vapor “Tenente Portella”, da flotilha do Estado, conduzindo uma força de desembarque de 300 homens devidamente armados e municiados e obtive do Governo Federal ordem para que também o encouraçado “Floriano” daqui seguisse esta madrugada, com aquele destino, tendo nele embarcado o Capitão Tenente Rogério Coimbra, Interventor do Amazonas, ontem chegado do Sul.

Cordeais Saudações

(a) Maj Magalhães Barata, Interventor Federal do Pará. (GUIMARÃES)

Temia-se a tomada, pelos rebeldes, dos diversos navios navegando pelo Baixo Amazonas, entre os quais se destacavam o “Ingá”, com 4.331 toneladas, e construído em 1900, incorporado ao Loide Brasileiro (Lloyd Brasileiro) após a sua tomada aos alemães, quando se denominava Etrúria; “Baependy” também do Loide e apresado aos alemães, com 4.801 toneladas, por eles chamado de Tijuca; o “Jaguaribe”, velho cargueiro lançado na Inglaterra, em 1882, deslocando 1.120 toneladas e trazendo, para Manaus, um carregamento de 42.000 sacos de sal e 100 barris de pólvoras e o Andirá, de 235 toneladas, da Amazon River, terminado na Inglaterra em 1906. (LOUREIRO)

Lloyd Brasileiro: A empresa estatal Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro maior e mais tradicional armadora brasileira foi fundada, em 19 de fevereiro de 1890, no governo do Marechal Hermes da Fonseca. Na segunda década do século XX, a companhia já era a maior do País dispunha de excelentes navios de passageiros e de cargas atuando em linhas para o Prata, para a América do Norte e Europa. Em 1939, a Lloyd possuía uma frota de 122 navios, e, o Brasil ocupava a liderança no setor marítimo na América do Sul. A decadência se iniciou quando o governo federal, no intuito de baratear os fretes marítimos, decidiu abrir a navegação brasileira às companhias estrangeiras. (Nota do autor)

No dia seguinte soube-se, em Manaus, do destino desses navios: o “Ingá”, ancorado em Parintins, já retornava à capital; o “Baependy”, diante das notícias da tomada daquela Cidade, voltara de Itacoatiara, estando estacionado no Porto da Manaus Harbour, onde desembarcara seus passageiros e o contingente que levava para a defesa de Parintins, e os navios Tejo e Sapucaia, haviam voltado para Santarém. Desconhecia-se o destino do “Jaguaribe”, da Companhia de Comércio e Navegação, que zarpara de Santarém para Óbidos, a 17; do Andirá, saído de Parintins, a 18 e a da lancha “Diana”, embora eles já estivessem nas mãos dos rebelados, desde o dia anterior. (LOUREIRO)

Assim que tomou conhecimento do motim em Óbidos, o Major Joaquim Magalhães Cardoso Barata decidiu ir pessoalmente de avião até Óbidos, com o intuito de levar pessoalmente uma intimação aos amotinados. O Interventor aguardava apenas a chegada do vapor “Tenente Portella” e do encouraçado “Floriano” a Santarém para partir de Belém. Barata, com esse propósito em vista, havia mandado imprimir alguns folhetos para serem distribuídos aos cidadãos obidenses com a seguinte proclamação:

INTERVENTOR DIRIGE PROCLAMAÇÃO AO POVO OBIDENSE

Obidenses! É vosso amigo Major Magalhães Barata quem vos fala através deste Boletim, para vos afirmar, antes de tudo, não crer na vossa solidariedade àqueles maus patrícios que aí se amotinaram para saquear e depredar. Faço um apelo ao vosso coração e a vossa consciência: tenho empenhado tudo quando posso para dar ao nosso Estado paz e justiça, trabalhando com afinco e sem descanso no preparo do futuro pelo seu desenvolvimento econômico, único meio de assegurar o vosso continuo bem estar. Tenho fé que em breve colhereis o fruto do meu trabalho com a abundância nos vossos lares. Por isso mesmo é que, testemunhas que sois do meu esforço, estou certo negareis, inflexivelmente, o vosso apoio a esse movimento impatriótico, infeliz e injustificável. Organize o contra movimento; expulse da cidade aqueles que roubaram a vossa tranquilidade! Avante, obidenses!

Todo aquele que vestir a farda do glorioso Exercito Brasileiro, que se retire de Óbidos e venha para Santarém. Todo aquele que não tiver uma arma para expulsar daí os que estão fazendo mal a todos, que fuja e venha a Santarém se armar. Aos nobres companheiros de farda que tiverem permanecido fiéis ao meu governo e ao Governo Provisório, eu os concito à reação contra os perrepistas de Óbidos, em nome do nosso querido Brasil, em nome do Norte glorioso. Aos que impatrioticamente se amotinaram, aconselho que se rendam, depondo as armas. Se o fizerem, a todos garantirei a vida; se, entretanto, teimarem na loucura da luta fratricida, declaro que tratarei com o merecido rigor.

Viva o Brasil! Viva o Pará!

(a) Major Magalhães Barata - Interventor Federal do Pará. (GUIMARÃES)

Ainda no dia 20, às dezessete horas, o “Baependy” foi destacado para levar reforços a Itacoatiara, constituídos por 100 homens do 27° BC, sob o comando do 1° Tenente Álvaro Francisco de Souza, onde seria organizado um ponto de resistência. No dia seguinte, domingo, 21 de agosto, embarcavam, no navio “Curuçá”, os reforços destinados a Parintins, 50 guardas civis e 30 praças da Comissão de Limites, sob as ordens do Capitão Jonatas de Moraes Correia, estando o barco sob o comando do Capitão Tenente Antonio Pojucan Cavalcante. Em Manaus houvera uma tentativa de rebelião do 27° BC, estando presos nesta unidade, por sublevação, os Sargentos João Neves, Sandoval Amorim, Geminauá Medeiros e Nilo Barroso. Com a volta do “Ingá”, ainda no dia 21, procedente de Parintins, onde a tripulação recebera proposta para aderir ao movimento, confirmou-se a tomada e o saque daquela Cidade, por uma tropa de 16 homens, às ordens do civil Arquimedes Lalor, comissionado no posto de Capitão. Os invasores haviam chegado pela lancha “Diana”, cujos tripulantes no momento do desembarque, cortaram as amarras e acelerando as máquinas, debandaram para Itacoatiara. Lalor era figura conhecida em Manaus, após seu retorno dos Estados Unidos, onde fora comediante, em Hollywood, conforme informações da época. Confirmado o seu ultimato inicial, embarcados no “Andirá” e no “Jaguaribe”, os rebeldes saíram de Óbidos, com destino a Manaus, no dia 21. O “Andirá” era comandado pelo Zoroastro Seroa Maia, tendo a sua disposição 21 homens armados com fuzis. O “Jaguaribe” fora artilhado (guarnecido com artilharia) com quatro canhões de 75mm da Fortaleza de Óbidos. No caminho, embarcaram lenha no Porto Desaperta, onde recrutaram alguns caboclos, que estavam pescando nas margens.

O “Jaguaribe” ficou estacionado nas Ciganas, enquanto o “Andirá”, com as lanchas Remus e Santa Cruz, iam a Parintins, recolher o 2° Tenente Sotero José Pereira, Arquimedes Lalor e os demais rebeldes ali isolados pela fuga da lancha “Diana”, onde recrutaram mais 6 homens. A seguir os três barcos juntaram-se ao “Jaguaribe”, escalando (fazendo escala, parando) na fazenda Santo Agostinho, onde requisitaram dois bois e deixaram o imediato do “Jaguaribe”, com sua esposa. Mais tarde fundearam nas ilhas Rasas, de onde o “Andirá” foi ao Porto São Raimundo, ali recebendo lenha até o dia 24 de agosto. Enquanto a frota rebelde se deslocava, no dia 22 de agosto, retornavam a Manaus, os navios “Baependy”, que deixara tropas em Itacoatiara e o “Rio Curuçá”, com o reforço destinado a Parintins, já ocupada.

Com a notícia de que os amotinados já estavam a caminho de Manaus, formou-se, nesta Cidade, uma flotilha para enfrentá-los, que saiu do Porto no dia 22 de agosto, ao meio dia, sob o comando do Capitão-de-Fragata Alberto de Lemos Bastos, composta pelos navios “Baependy”, do Capitão-de-Corveta Alfredo Miranda Rodrigues; “Ingá”, do Capitão-Tenente Jorge Ferreira Landim, “Rio Curuçá”, do Capitão-Tenente Antonio Pojucan Cavalcante e pelas embarcações auxiliares “Rio Jamari”, “Rio Aripiuanã” e “Isis”. A bordo delas estavam 230 homens do 27° BC. O Ingá dispunha de 122 soldados, além de metralhadoras pesadas, sob as ordens do 2° Tenente Ananias Celestino de Almeida Junior. Em Manaus, as defesas de terra estavam sendo organizadas pelo Major Luis Tavares Guerreiro, Comandante do 27° BC. No dia 24 de agosto, às 6 horas da manhã, navega pela praia da Ilha de Serpa a flotilha rebelde, quando avistou o “Baependy” e o “Rio Jamarí”, que vinham descendo de Itacoatiara. (LOUREIRO)

Ildefonso Guimarães faz uma fantástica narrativa da Batalha Naval de Itacoatiara contada pelos dois lados – das Tropas Legalistas feita pelo chefe da 1ª peça da Companhia das metralhadoras do navio “Ingá” e por um soldado raso das fileiras dos Revoltosos de Óbidos. Ildefonso Guimarães surpreende e encanta os leitores na forma de apresentar os eventos históricos, seus contos são carregados de muita força e energia, o comportamento e as emoções humanas permeiam entre acontecimentos políticos e sócio-econômicos.

Tropas Legalistas

Já quase no fim da tarde do dia 23, depois várias incursões, rio abaixo, efetuadas pelas lanchas de reconhecimento, nossos navios receberam ordem de prosseguir viagem, largando da ilha do Marapatá que nos estava servindo de base. Zarpamos.

A bordo do “Ingá”, viajava o Capitão de Fragata Alberto Lemos Bastos, Capitão dos Portos do Amazonas e Acre, investido do Comando das Operações da Flotilha (Reunião de pequenos barcos da marinha de guerra) improvisada, destinada a dar combate aos rebeldes de Óbidos. Como auxiliar do “almirantado” vinha o Capitão Tenente Jorge Ferreira Ladim; como comandante de tropa embarcada, estava o Capitão do Exército Jonathas Moraes Corrêa e como médico da esquadra tínhamos o Dr. Justino Gomes, da Comissão de Limites Setor Norte. No “Rio Curuçá”, vinha o Capitão Tenente Antônio Pojucan Cavalcante; o “Rio Aripuanã” e o “Rio Jamary” seguiam como navios auxiliares.

No curso da viagem, o Comandante Lemos Bastos determinou que se improvisassem trincheiras nos conveses dos navios da frota, organizadas com toras de madeira do carregamento mercante trazido pelo “Ingá”. Com eles, formamos barricadas, espaldões para as metralhadoras e outras improvisões (improvisações) auxiliares que as circunstâncias recomendavam.

Como chefe da 1ª Peça da Companhia De Metralhadoras, eu fui chamado para dirigir o entrincheiramento (ação ou efeito de entrincheirar) no “Ingá”, distribuindo as peças, indicando aos marinheiros que transportavam os toros a melhor colocação nos pontos estratégicos do convés. Recebi também ordem para instalar um posto de observação na torre da gávea (plataforma assentado em uma roda de tábuas no alto dos mastros de um navio), com o objetivo de vigiar o horizonte e informar o comando de qualquer anormalidade avistada, tal como fumaça ou silhueta de alguma embarcação. Viajamos durante toda a noite (havíamos saído de Marapatá por volta das cinco horas da tarde). Dois outros navios da flotilha – O “Baependy” e o “Rio Aripuanã” – já tinham seguido na frente; conosco ficaram o “Rio Curuçá” e o “Rio Jamary”, ambos gaiolas (pequenas embarcações fluviais), servindo no transporte de tropa. No “Ingá”, éramos 112 praças do Exército, entre sargentos, graduados e soldados, compreendendo dois pelotões de fuzileiros, um de volteadores e parte da Companhia de Metralhadoras, da qual eu fazia parte, (a outra parte viajava no “Baependy”).

Por volta das seis para as sete da manhã do dia 24, chegávamos à altura da foz do Madeira, quando avistamos, por trás da Ilha da Preta, uma fumacinha se deslocando contra o rumo em que navegávamos. Certo de se tratar de uma embarcação, dei conhecimento do fato ao Comandante Lemos Bastos e ficamos aguardando. Verificou-se, então, que era o “Baependy” que vinha voltando, trazendo atracado ao lado o “Rio Aripuanã”.

O fato nos surpreendeu a todos e muito mais ao comandante da flotilha, que deu ordem para que todos assumissem os seus postos e ficassem de prontidão, com a determinação de só disparar quando o comando ordenasse. Lemos Bastos estava perplexo. Dirigiu-se à tropa formada no convés, dizendo:

Companheiros, não sabemos o que aconteceu. Vamos intimar os navios a se aproximarem. Caso não sejamos atendidos, você, Cabo Encarnação, está autorizado a comandar uma rajada de metralhadora, visando o leme e a hélice do “Baependy”.

A essas alturas, já estávamos subindo também o rio, acompanhando o deslocamento dos barcos visados. Quando nos aproximamos o bastante, ao alcance de tiro recebi ordem de fazer uma rajada de intimação. Então, o “Baependy” apitou e diminui a marcha. Aí, os navios se aproximaram e os comandantes falaram de bordo a bordo e eu não ouvi mais a conversa; não entendi o que eles falavam. Só sei que, pouco depois, o Comandante, Lemos Bastos desceu ao convés de promenade (coberta de recreio) e se dirigiu a nós:

Meus soldados! – ele disse – Vamos descer ao encontro do inimigo e travar batalha. O “Baependy” vem corrido. Os revoltosos de Óbidos já se encontraram em frente a Itacoatiara e ameaçam bombardear a cidade e o nosso objetivo é salvá-la. Fiquem a postos e preparem-se com ânimo e decisão para a luta!

Então, ele mandou dar aos outros navios – inclusive ao “Baependy” que se reincorporou a esquadra – a ordem náutica de “SIGAM AS MINHAS ÁGUAS, e retomamos viagem rio abaixo, no rumo de Itacoatiara.

Nosso navio passou então à frente, assumindo a sua condição de nau capitânia. Acompanhando a nossa marcha (a toda a pressão) só mesmo o “Baependy” agora livre do “Rio Aripuanã”, conseguia manter a rota. Os navios menores vinham à retaguarda, cada vez mais ficando à distância; isso porque, agora, nos aproximávamos do instante decisivo e nele só importavam mesmo os dois navios de alto-bordo, onde navegavam oficiais superiores da Marinha, preparados, portanto para dirigir um combate naval.

O Comandante Lemos Bastos, examinada a situação e sabedor de que o inimigo transportava artilharia, comunicara ao Capitão de Corveta Alfredo de Miranda Rodrigues, na direção do “Baependy”, que a única medida a ser posta em prática para superar essa desvantagem e decidir a batalha a nosso favor seria tomar a iniciativa do ataque – valendo-nos da nossa maior velocidade e tonelagem – e tentar o mais rápido possível abalroar (investir um navio de encontro a outro) os navios contrários, impedindo-os de fazer uso útil de sua artilharia. Mesmo porque a munição que levávamos não era de confiança; era um material muito velho, há grande tempo armazenado nos paióis do BC. A mais nova que conduzíamos, era em pequena quantidade; uma que estava destinada à polícia do Acre e que fora requisitada no Porto de Manaus, ao arrepio dos preparativos para marcharmos contra os rebeldes.

Quando atingimos a curva do rio, tendo a barlavento a enseada da Ponta do Cátaro, avistei a silhueta dos dois navios inimigos – o pequeno “Andirá” e o salineiro “Jaguaribe” – fundeados ao largo, em frente à cidade de Itacoatiara. Ai, eu avistei o Comandante Lemos Bastos. Ele então assestou o binóculo e confirmou.

Revoltosos de Óbidos

Bom, aí quando nós chegamos confronte (em frente) a Itacoatiara eram quase 10 da manhã. Já tinha tropa do Vinte e Sete na cidade e nós não sabíamos; quer dizer, nós soldados rasos, porque eu mais tarde vim a saber que o comando no “Jaguaribe”, tinha conhecimento disso, mas com certeza não quiseram espalhar a notícia para não desencorajar a gente, principalmente nós que viajávamos no “Andirá”. Besteira deles, que a gente pouco estava era ligando p’ro azar. Eu só tinha 16 anos naquele tempo; era pouquinho mais que um guri, e nessas alturas da vida qualquer paixão diverte a gente, como dizia a moda da época.

Senhor Prefeito,

Sabemos que sua cidade se acha ocupada por tropa da Ditadura. Recorremos ao bom-senso de Vossa Senhoria, concitando-o a convencê-los de que se rendam pacificamente ou adiram de boa-vontade às nossas forças vitoriosas. Não é nosso propósito derramar o sangue de irmãos de armas nem o do bravo povo de Itacoatiara. Caso esse nosso apelo não tenha acolhida, damos duas horas – nem mais um minuto – para a população civil evacuar a cidade, que será em seguida bombardeada até a rendição incondicional da tropa de ocupação.

(a)  Capitão Silvério Rocha
(b) 
Comandante da Força Expedicionária Constitucionalista.

Bom, como eu ia contando, aí então houve uma negociação, porque os homens lá do “Estado Maior” tinham ameaçado bombardear Itacoatiara. A gente no “Andirá” até esse momento não sabia de nada; pode ser que o Sargento Sotero, comissionado 1° Tenente e que era o nosso comandante, estivesse a par do que estava se passando, pelo rádio de bordo. Nós, não. A gente estava ali feito turista, só olhando da borda do navio a movimentação. Vimos quando uma das nossas lanchas, se não me engano a “Remo”, seguiu em direção a terra e quando regressou, acompanhada de uma catraia (bote tripulado por um só homem) trazendo um Padre no barco. O Padre veio foi para nos tapear – nós que eu falo, é uma maneira de dizer, porque quem ele tapeou de fato foram aquelas bestas que nos comandavam lá do “Jaguaribe”: o Rocha, o Lavor, o Borges que eram “diz que” os cabeças daquela revolta de merda que deixou no fundo do Amazonas quase uma centena de mortos.

Pois bem: o Padre veio pra fazer negaça (tapear), entreter o tempo, cozinhar aquelas pilecas do “Jaguaribe” em banho-maria e dar tempo dos navios deles chegarem e nos atacarem. Assim, a conversa mole do vigário durou quase uma hora, engazopando (enganando) o “comando” das nossas forças revolucionárias. Acredite-me que até hoje, passados mais de quarenta anos, não sei lhe dizer quem era de fato que comandava a gente naquela zorra; se o Sargento Rocha ou o Aristides Lavor. Mas, como eu ia dizendo, aí – depois de uma longa confabulação (conversa) – finalmente a catraia com o Padre voltou pra terra. Isso aí já por volta das 11 horas.

Eu soube depois que o safado fizera uma choradeira danada, dizendo que o Prefeito pedia uma dilatação do prazo; que duas horas não dava para evacuar a cidade e a população civil ia ser sacrificada. Isso porque o Tenente que comandava a tropa em Itacoatiara tinha resolvido dar uma de Antônio João na guerra do Paraguai e jurou que p’ra gente atolar os pés no tijuco (lama) da cidade, só passando por cima dele defunto e pisando no sangue dos seus companheiros – Tudo conversa, pra ganhar tempo!

Bem, aí, quando o Padre voltou pra terra, nós a bordo do “Andirá” já estávamos almoçando. A gente comia tranquilo, porque tudo tava dando certo a nosso favor. Pela madrugada, já tínhamos posto pra correr o “Baependy” e um outro navio, do qual não me lembro o nome, que vinha com ele, atracado no costado. Quanto a Itacoatiara, o nosso comando tava só vendo a hora de acabar com a tesão de mijo do tal Tenente de terra, quando os nossos “75” começassem a vomitar umas duas dúzias de lanternetas em riba deles.

Pois é, então nós estávamos almoçando descansados quando o pau cantou lá de terra: pum... pá – pu pururu... pum... pum; era tiro de fuzil, de metralhadora, creio que até de espingarda. Aí foi que nós – a soldadesca de bordo do “Andirá” – viemos saber que tinha tropa aquartelada em Itacoatiara. Nós não sabíamos, porque os sargentos do Vinte Sete tinham deixado de se comunicar com o nosso comando pelo rádio, é que a essa altura eles já estavam todos presos e a gente não sabia; estávamos ali “comendo merda numa bolsa”, como se dizia na gíria do quartel, naquele tempo. Fomos pegados de surpresa, meu mano; pelo menos nós, a raia miúda, que viera p’ra servir de bucha naquela guerra maluca, inventada por um sujeito completamente biruta.

Pois bem; aí, quando a tropa de terra começou a atirar contra nós, era porque eles já tinham comunicação de que os navios deles estavam palmo em cima. Então, quando o pau cantou, foi uma confusão dos diabos a bordo do “Andirá”: era gente se espalhando pra tudo quanto é lado, correndo no rumo dos fuzis ensarilhados (armas agrupadas e presas umas às outras pela parte superior) no convés e derrubando tudo. Um rebuliço (confusão) danado, cada um pegando a arma que estivesse mais perto, sem dar tempo de saber aquela de quem era pela numeração; um corre-corre que vou te contar!

Foi aí, enquanto a gente respondia atordoado ao fogo de terra, que os dois paquetes surgiram na boca do rio. Eram ambos do Loydd; um a gente já sabia que era o “Baependy”, o outro a gente soube depois que se tratava do cargueiro “Ingá”. Pois bem; quando os dois apontaram na entrada do rio, vinham a todo vapor em nossa direção; o nosso melhor artilheiro, o Sargento Martins, procurou assestar sobre eles a mira dos canhões. Mas aí é que os manobristas daquela guerra de ratos contra gatos foram descobrir uma coisa simples que nunca tinha passado por suas cabeças cheias de estrume de vaca: era impossível apontar para a linha-d’água dos navios inimigos, por causa de que a amurada do “Jaguaribe”, por se tratar de um cargueiro, era muito alta e não dava campo para alvo dos canhões abaixo da metade do costado das embarcações contrárias!

Assim mesmo, enquanto houve distância suficiente, os nossos “75” ficaram cuspindo fogo em cima dos dois. A gente, de bordo do “Andirá”, podia ver perfeitamente as explosões das granadas, espocando como ovo na frigideira. No princípio, aquele clarãozão de cegar olhos, mudando logo de cor para um encarnado de urucu que depois ficava amarelo cor de laranja. – Mas os dois continuaram a avançar em nossa direção. A essas alturas, tanto o “Jaguaribe” como o “Andirá” já tinham levantado ferro e manobravam para evitar as investidas do inimigo que – pelo que se via – parecia trazer, como diz o outro, o corpo fechado p’ra bala de canhão. Ou então era mesmo a ruindade de mira de nossos artilheiros que não entendiam pirocas de combate naval.

De toda aquela munição dispersada na água, apenas uma granada acertou em cheio na proa do “Ingá”, que avançava sobre o “Jaguaribe”, fazendo um baita d’um rombo que, se fosse na linha d’água, tinha metido ele no fundo com casca e noz. Mas foi só esse tiro. O resto, ora passava por cima, ou se perdia nos barrancos. Teve até um que foi atingir uma serraria do outro lado do rio, um nadinha acima de Itacoatiara.

Aos poucos, eles foram se aproximando. Da curva do rio onde eles apareceram, até confronte a cidade onde a gente estava, dista uns quantos quilômetros que foram disputados braça a braça, enquanto o fogo da nossa artilharia conseguiu maneirar um pouco o avanço deles. Mas, como só uma “pitombada” conseguiu atingir o casco d’um deles, os dois “satanases” (vieram se chegando, avançando, se aproximando, crescendo diante da gente, até que puderam abrir fogo. Então, foi aquele “Deus nos acuda!”: cada um perseguindo o seu. O “Ingá” foi para cima do “Jaguaribe” e o “Baependy” veio nas nossas águas. Aí o pau cantou lá de bordo dos dois: as metralhadoras deles dando aquelas risadas de suinara e a gente vendo bala invadir o nosso navio assim que nem enxame de caba tapiú (espécie de vespa) quando, fica assanhado. A fuzilaria varria o nosso convés estraçalhando tudo, lascando as portas dos camarotes e enchendo o ar de estilhaços de vidro das sanefas. Nós estávamos abrigados em trincheiras de sacas de sal transbordadas do “Jaguaribe”. Ele tinha vindo de Belém carregado de sal e então a turma trouxe um bocado a bordo do “Andirá”: foi o que nos valeu um pouco, a princípio. Mas aí, as metralhadoras do inimigo foram costurando as sacas de sal; costurando, uma ova, foram foi rasgando eles e o sal se derramando e ensopando o convés em salmoura de sangue.

Eles tinham toda a facilidade de acertar em nós, depois que se aproximaram a alcance de tiro. Tinham a vantagem do tamanho, pois seus navios eram mais altos que os nossos, principalmente do que o “Andirá”, um gaiolazinha de bosta. Aí, o pau cantou mesmo de verdade e nós começamos a correr p’ra lá e p’ra cá, feito barata espantada no meio d’um galinheiro. Bala zunia que nem varejeira no cio pelos ouvidos da gente: fian... fian... B á a l a, rapaz! – Raa pa... pa... pa... pa... pa... pa – Aí eu vi quando o Sargento Sotero ficou estirado no meio do convés: uma rajada cortou ele pelo meio e eu enxerguei quando ele caiu, quase dividido em dois. S a a n g u e, seu mano! Então, eu me joguei no chão e fui me arrastando por debaixo daquela fuzilaria medonha, sentindo o ar envenenado pela fumaça de pólvora me entrando pelo goto; uma fumaceira pegajosa que o vento tinha medo de espalhar e que se entranhava nos bofes da gente, deixando na boca um gosto rançoso de azinhavre.

Aos poucos, cada um dos atiradores de bordo do “Andirá” era forçado a abandonar seu posto; ora munhecando ali mesmo, varado por uma bala ou por dezenas delas, ora se arrastando pelo tombadilho, procurando um lugar de onde pudesse continuar a responder à impertinente fuzilaria do inimigo. Até pouco tempo eu ainda tinha aqui pelas costas uns estilhaços de vidro; de vez em quando um aparece, apontando na flor da pele: um pedacinho gitinho (coisa pequena) que mal dá pra enxergar, mas dói pra cachorro e às vezes até apostema (infecciona). Eu fiquei com o lombo todo crivado de lascas de vidro triturado que as balas faziam voar em todas as direções.

Então, eu fui me arrastando no rumo da popa, já com intenção de me jogar n’água; mas antes eu pude ver o desespero do comandante do navio. O velho estava em pé no passadiço, sacudindo agoniado uma camisa branca na direção do pessoal do “Baependy”. Mas era à toa aquela sua tentativa de salvamento, porque o resto do nosso pessoal não sabia que ele estava ali em cima procurando salvar o navio e continuava atirando como podia de bordo do “Andirá”. Do lado do “Baependy”, ninguém podia entender aquele sinal de rendição no meio dum tiroteio que não cessava, até que acertaram um balaço nele e o pobre velho levou sumiço, ele e sua bandeira de paz, por trás do castelo de proa. Pensei que ele tinha se acabado, mas soube depois – quando também fui recolhido a bordo do “Baependy” – que ele tinha sido apenas ferido. Conseguiu se salvar não sei como, por verdadeiro milagre, entre os poucos do “Andirá” que restavam p’ra contar a história”.

Tropas Legalistas

Quando desembocamos na enseada de Itacoatiara, os dois navios dos rebeldes estavam fundeados em frente à cidade, distando mais ou menos umas duas milhas marítimas do nosso ponto de aparição. Naturalmente, aguardavam o prazo que tinham dado à população de Itacoatiara pra evacuar a cidade que ia ser bombardeada. Sabíamos, pelo rádio, que eles haviam intimado a nossa tropa, comandada pelo Tenente Álvaro Souza e entrincheirada na rua da frente, a se render, uma vez que não aceitara as suas propostas de adesão feitas primeiramente.

Nesse intervalo, as autoridades locais, sem dúvida com o propósito de ganhar tempo, enquanto aguardavam a nossa chegada, haviam mandado o vigário da paróquia, a bordo de uma catraia, parlamentar com os sediciosos em nome do Prefeito, pedindo uma dilatação do prazo do ultimato, alegando ser este insuficiente para a retirada da população civil.

Quando a catraia do padre estava chegando de volta ao porto, eles nos avistaram e começaram a atirar. O primeiro tiro de canhão que chegou a nos ameaçar com mais perigo, felizmente passou por cima do “Ingá” e foi atingir uma serraria que havia acima um pouquinho de Itacoatiara; o segundo, esse pegou na proa do nosso navio. Foi um estrondo dos diabos; sinceramente, pensei que íamos a pique. A granada abriu um enorme rombo na proa e no momento do impacto viu-se faiscar pelo ar um buquê de estrias incandescentes enquanto os estilhaços, batendo contra as chapas de ferro da amurada, ora saltavam pelo convés, ora embicavam nas águas como pássaros ardentes.

Mas, felizmente, foi esse o único tiro de canhão que nos atingiu; mesmo porque não demos muito tempo para que eles continuassem a utilizar a artilharia. Ainda assim, com a proa avariada, prosseguimos na investida, mudando sempre alternadamente o quadrante de direção, para que eles tivessem maiores dificuldades de pontaria e fomos nos aproximando o máximo possível, vencendo a barragem de fogo, que essa era a tática do Comandante Lemos Bastos.

Oficial superior da Marinha, ele logo percebeu que os canhões dos rebeldes não ofereciam assim tão grande perigo para o nosso avanço, já por não contarem com atiradores experimentados em artilharia naval – o que era óbvio pela imperícia que demonstravam – já porque a situação de suas peças, em relação à amurada do “Jaguaribe”, não ameaçava os pontos vitais das nossas embarcações: eles não tinham campo de tiro para nos atingir na linha dos porões ou do leme, onde qualquer rombo ou dano poderia promover a invasão de água ou desgovernar o navio, pondo assim em perigo a sua estabilidade de marcha. Seus canhões só podiam bater um ângulo de mais ou menos uns vinte graus verticais sobre a amurada de seu próprio navio e isso mesmo a uma distância razoável.

Lemos Bastos sabia, portanto, que a nossa vantagem estava em avançar o mais rápido que nos permitisse o fogo do inimigo e chegarmos perto dele para impedir que continuasse a utilizar os canhões. Sendo nossos navios mais altos (mesmo que o maior deles, o salineiro “Jaguaribe”) quando chegássemos a uma distância favorável de tiro de fuzil e metralhadora, seria fácil para nós a manutenção de um fogo cerrado sobre o convés dos contrários, neutralizando gradativamente sua ação de fogo, inclusive de infantaria. Quando conseguimos isso, o nosso comandante jogou o “Ingá” pra cima do “Jaguaribe” e deu sinal ao “Baependy” para que se encarregasse do “Andirá”. – Aí nós começamos a atirar pra valer.

Nós atirávamos neles sobre o convés; quando chegamos mais perto, o “Jaguaribe” começou a recuar e nós atirando sempre com o fim de imobilizar os canhões. Lembro-me bem que a minha peça de metralhadora recebeu ordem de concentrar o seu fogo sobre a guarnição de um canhão que ficava a boreste do convés do “Jaguaribe”; pelo binóculo pude ver o cabo apontador que estava de pé à direita da peça, de olho colado ao visor, dar um salto e sair se batendo como galinha no torniquete quando uma bala o pegou na altura do baixo-ventre. Aí, a confusão se espalhou entre os serventes-de-guarnição; vi bem quando o encarregado da culatra deu um pulo para trás, largando o ferrão da conteira sobre o pé do conteirador, fazendo-o cair de bruços sobre o canhão. Então, os outros serventes, o atirador e os dois municiadores, abandonaram a peça, correndo adoidados pelo convés, até que uma rajada das nossas “hotchkiss” acabasse de uma vez com a agonia deles.

Metralhadora Leve Hotchkiss M1922: arma de origem francesa do início do século XX. Foi adotada pelo Exército Francês em 1909, no calibre 8mm; e posteriormente pelo Exército Brasileiro em 1922, no calibre 7mm.


Avançando sempre, enquanto o outro recuava, em manobras de abordagem que levaram talvez uns 40 minutos, o “Ingá” foi empurrando o adversário contra a costa fronteira a Itacoatiara, até que o “Jaguaribe” bateu num baixio e aí nós o pegamos pelo meio. Foi uma porrada sensacional como nunca vi outra na minha vida; um estrondo oco-medonho, seguido logo de um profundo gemer de ferragens se partindo, tudo misturado aos gritos de homens esmagados e ao pungente mugido dos bois amarrados no convés de popa, enquanto a metralha varria destroços com sua vassoura de morte.

Um inferno! Só quem já passou por isso pode avaliar. – Eu vi o navio se partindo, atingido a bombordo pela proa do “Ingá”, mais ou menos na altura da casa de máquinas: foi aquela fumaceira, que saía adoidada pela gaiuta da chaminé, quando a caldeira estourou. Aí, a ferragens e o madeirame foram estalando e saltando pelo ar em meio aos gritos dos feridos e dos que procuravam escapar se atirando n’água. Mais que isso, o pior era ver a agonia dos bois, coitados! – Eu me lembro que fiz o sinal da cruz e disse comigo mesmo: “Encarnação, que Deus te perdoe por este horror que estás causando, mesmo não sendo tua culpa!

Mas quando eu olho, assim, vejo que o “Jaguaribe” tinha enganchado no nosso navio, preso por aqueles ferros estriados da proa do “Ingá”, no rombo aberto pela granada. Naquele corpo-a-corpo entre os dois paquetes, o “Jaguaribe”, à proporção que afundava, ia puxando a gente e, quando eu dei pela coisa, custou-me a acreditar naquilo que via: pois não é que, apesar de tudo, ainda havia um grupo de rebeldes, uns cinco ou seis junto de uma peça, atirando em nós de fuzil por trás do canhão! Mal eu ponho a cara para espiar, eles largaram chumbo no meu rumo: foi o fogo pipocar e eu me abaixar, escutando o impacto das balas rebentando no costado e sentindo os cascões de ferro caindo em cima de mim. No mesmo instante, a voz da nossa metralhadora falou em resposta e quando tudo silenciou e eu pude me levantar, os cinco alucinados estavam amontoados uns sobre os outros ao lado do canhão: debaixo deles, longos caminhos de sangue escorriam como grossas centopéias, buscando as valetas do costado, no rumo do rio.

Essa foi a última visão que tive do “Jaguaribe”. Logo depois, sob o enorme peso da adernagem (submergir), ele se soltou do “Ingá” com um longo rangido de ferros e foi se sumindo rapidamente nas águas, ficando na superfície apenas aquele demorado borbulhar de rebojo.

Enquanto isso, uma outra batalha continuava, travada entre o “Baependy” e o “Andirá”; parecia uma luta entre Davi e Golias, só que terminou às avessas: O “Baependy”, pesadão, fazia desdobradas surtidas para atingir o contrário; este, porém, mais leve e obedecendo ao desespero de seu timoneiro, conseguia safar-se constantemente por contar com maior facilidade de manobra. Nesse entremeio, a fuzilaria trocava endereço e convés a convés, acompanhada em contracanto pelo matraquear das metralhadoras.

De terra, a tropa da 1ª Companhia, entrincheirada no barranco, atirava contra o “Andirá”, mas parte desse fogo, ora se perdia na distância, ora vinha sobre o “Ingá”, agora no meio do rio. Que diacho! Os nossos soldados foram ficando queimados com essa situação, pois a essa altura já pensavam que o pessoal de terra tivesse aderido aos rebeldes. Felizmente, foram contidos. O Capitão Lemos Bastos era um grande comandante. Numa de suas investidas, depois de quase uma hora de luta, o “Baependy” conseguiu fazer uma volta mais rápida e pegar de raspão o navio inimigo: a esfregadela arrancou algumas chapas de ré e o “Andirá” começou a fazer água e a perder pouco a pouco a capacidade de manobra. Nesse momento, quem pôde se safar, safou-se; pegou salva-vida, bote, se agarrou em quanta matalotagem (mantimentos para a tripulação) tinha condições de flutuar.

Mas, verdadeiramente, ou aquela gente estava louca, possuída de algum demônio da chacina, ou lutava por uma espécie de ideal de destruição. Sim, porque idealismo político eu não acredito até hoje que eles tivessem, aqueles pobres insanos, conduzidos ao abatedouro pela esperteza de uns poucos. Digo isso porque, no momento em que o “Andirá” se foi para as profundezas, partindo ao meio como um palito de fósforo, numa investida final do “Baependy” que o apanhou à altura da meia nau, nesse momento ainda havia dois escaleres cheios de soldados rebeldes atirando contra os nossos navios. Aí, um cabo da minha Companhia, chamado Pedro João, que dirigia a 2ª Peça de metralhadoras embarcada no “Baependy”, comandou uma rajada contínua e liquidou com eles.

Revoltosos de Óbidos

Pois bem, como eu ia dizendo, continuei me arrastando no rumo da popa, porque era o lugar mais seguro para se cair n’água sem ser muito visado pela fuzilaria do inimigo. Isso porque o “Andirá” sempre de proa para o lado dele que era a melhor maneira de evitar o abalroamento. Então, eu fui seguindo, me movendo como uma cobra na caça e quando cheguei ao convés de ré – sempre por baixo do assovio das balas – avistei o dentista Emílio Pereira que tinha vindo com a gente a bordo do “Andirá”, comissionado no posto de Capitão. Nisso eu passei por perto do Aristarco, irmão do Cabo Ataulpho, e encontrei ele caído de lado em cima d’uma caixa de cebolas, os olhos me espiando sem viço, d’uma maneira desconforme que até hoje me arrepia. Mais adiante – embaixo duma mesa perto da copa – dei de cara com o cadáver do Toscano, um que tinha vindo de Belém como escrivão da “Mesa de Rendas” e acabou se entregando ao Coronel Pompa com todo o apurado do Governo.

Mesa de Renda: as Mesas de Rendas foram criadas no período da Regência, na primeira metade do século XIX, e destinavam-se a operar despachos aduaneiros e fiscalização em portos de escasso movimento, cuja renda não compensasse a instalação de uma aduana completa. (Fonte: Memória da Receita Federal)

Tinha um enorme buraco bem no meio da testa, como se seu assassino tivesse querido abrir nela um terceiro olho, por onde o miolo tinha espocado e saía p’ra fora amarelo, como uma flor de jurumu (abóbora) quando começa a brotar.

Pois não é que quando eu chego perto do dentista – que já tinha passado uma perna por cima do balaústre e estava criando coragem para se jogar n’água – senti o sopro frio de uma bala tinindo nos meus ouvidos e no mesmo instante ouço o berro do dentista: A a a a i! – e vejo ele se enrolar feito um embuá (piolho-de-cobra - lulus sabulosus cllindroiulus) e cair n’água se torcendo todo, igual tamuatá (espécie de cascudo, conhecido também como bodó) quando se joga água fervente.

Atirei-me atrás dele e então o que eu aplaudi de perto, assim palmo em cima de minha cara, é uma coisa que nem gosto de lembrar: o coitado penando nas vascas da morte; espernegando (esperneando), se esbulhando em agonias, enquanto ás águas avermelhavam em redor dele – e de repente o acontecido, a coisa que toda vez que me volta no pensamento me bota um frio na boca do estômago e aquele medo horrível que até hoje me gela por dentro quando me lembro: o homem escabujando (debatendo-se em desespero); aos poucos só a cabeça aparecendo, indo p’ro fundo e voltando a boiar, com aqueles olhos, já de finado, olhando fito na minha direção. Depois a baita rabanada e um enorme rabo de peixe aparecendo à flor d’água, como um relâmpago; coisa de um metro ou mais, sei lá! Boiou como o gume d’um chanfalho (sabre), rebrilhante ao sol. Foi um instante apenas, uma lasquinha de tempo em que tudo aconteceu; o tanto suficiente p’raquela meia-lua cinzenta relampejar e o dentista se mostrar de corpo inteiro, por uma vez derradeira, dobrado ao meio como um bagaço de cana saído da moenda e levantado por uma força tremenda vinda de baixo que, no passar d’um segundo, amostrou ele e sumiu com seu cadáver duma vez por todas. Acho que só podia ser ma piraíba, e se era, foi a maior que já vi na minha vida. Pode se que o pavor tivesse aumentado o tamanho dela na minha vista, mas eu juro que nunca mais vi uma bicha daquele porte, nem mesmo dessas maiores que os caboclos traziam p’ra retalhar no mercado.

Piraíba (Brachyplatystoma filamentosum): peixe de couro da família Pimelodidae, é a maior espécie de peixe de couro da América do Sul e uma das maiores do mundo. A enorme cabeça representa 1/4 do tamanho do comprimento e sua coloração é, em geral, cinza escuro, chumbo ou levemente azulado no dorso e branca no ventre. Atinge mais de 2,8 metros e 200 quilos de peso. Indivíduos com até 60 quilos são conhecidos como filhote.

Tubarão-Touro (Carcharhinus leucas): a descrição, acima, nos permite lembrar que já foram capturados diversos tubarões, com mais de dois metros, em toda a bacia do Rio Amazonas. Um deles foi capturado em Ucallpa, Peru, há cinco mil quilômetros da foz do rio Amazonas. Os Tubarões-Touro são considerados os mais perigosos para o ser humano, devido ao fato de poderem viver tanto em água salgada como em água doce. As fêmeas são maiores que os machos podendo atingir 3,5 metros de comprimento. Os Tubarões-Touro pertencem a uma das espécies de tubarão mais perigosas das águas tropicais depois do tubarão branco e do tubarão tigre.

Mas bem, aí eu não sei se foi o cagaço, mas só sei dizer que senti dentro de mim uma força dupla e uma vontade danada de viver me encheu de sustância p’ra me afastar o mais rapidamente do navio, evitando ser sugado pelo redemionho da hélice.

Por essas alturas, muita gente já havia se atirado n’água desde quando o Baependy” conseguiu dar o primeiro catiripapo no “Andirá”, pegando ele de raspão pelo costado e revirando umas chapas da popa que nem quando a gente abre uma lata de sardinhas.

Teve até uma parada cômica nessa ocasião, que a gente – passado todo aquele inferno de desespero – se divertia só de relembrar: um cabo corneteiro do 4° Grupo, apelidado de “Porca Velha”, conseguiu se salvar agarrado num porco; um animal que ele tinha arrastado do convés da 3ª do “Andirá”. Os dois caíram n’água – o porco na frente e o corneteiro atrás e o “Porca Velha” se grudou no toutiço (nuca, cachaço) do barrasco (porco que não foi castrado), que saiu nadando com ele p’ra terra. – Dessa parada, eu tinha até uma fotografia, tirada de bordo do “Baependy” por um primo meu que fazia parte da topa do Vinte e Sete: o “Porca Velha” sendo salvo por um de seus irmãos!

De bordo do “Baependy”, eles atiravam na gente mesmo dentro d’água. Não tinham contemplação. Até dos náufragos. Pelo menos, enquanto eles não puseram o “Andirá” a pique, bala passava raspando a água: plsum... plsum, e a gente boiando a esmo, se batendo p’ra manter o fôlego e logo mergulhando p’ra desviar da fuzilaria.

Entre os que boiavam, não podia distinguir quem era morto quem era vivo, pois muitos já defuntos ainda eram mantidos à tona pelos coletes salva-vidas.

Depois quando o “Baependy” conseguiu finalmente flechar de proa o costado do “Andirá”, foi aquele despautério de estalo: p r á a... tá... tá... tá... tá... ta! – A trombada foi levando todo com beira, quebrando a porra do gaiola como quando a gente pisa numa barata e escuta ele espocar (pipocar) debaixo do sapato. Sorte que eu já estava a uma boa distância; senão, tinha sido engolido como tantos outros que ficaram a bordo e foram p’ro fundo junto com o navio.

Do “Andirá”, fomos poucos os que sobramos. A maioria dos que se salvaram eram gente da tripulação que se puseram ao fresco assim que a coisa começou a ficar preta. Nós, os praças, fomos pouco mais de uma dezena entre os que mais tarde foram recolhidos pelos escaleres legalistas. A maior parte viva da nossa expedição foi do pessoal que vinha no “Jaguaribe”, que esses, porque o navio deles afundou perto da margem oposta, conseguiram alcançar a terra, onde depois foram caçados pelas patrulhas inimigas, a não ser os que se embrenharam logo na mata e conseguiram escapar.

O instante mesmo do abalroamento é outra coisa daquelas horas de aperto que e lembro até hoje como se tivessem passando uma fita de cinema pelo meu pensamento. A proa do “Baependy” como que suspensa no ar, a toda velocidade, espirrando pelos lados aqueles bigodes d’água, levantados como guampas de um arpão na direção do “Andirá”.

De parte a parte, sem descanso de um minuto, a trafegagem das balas indo e vindo pelo ar e a gente vendo perfeitamente o arrebentar esverdeado das chamas nos canos das metralhadoras e, de mistura, o pisca-pisca vermelho do olho dos fuzis, enquanto as balas, ora ricocheteavam no costado dos navios e vinham na direção de quem estava de bubuia (boiando), ora bordavam de pontos negros a brancura da cobertas.

Depois, a pancada surda, o estalar agoniado do madeirame se partindo e das ferragens se retorcendo, e os botes com sobreviventes que se afastavam do casco para não serem tragados pelo sorvedouro (redemoinho) em que afunilava o navio.

Os que boiavam, uns agarrados em destroços, outros sustentados em bóias, bracejavam na voragem (redemoinho) sem rumo certo privados de tino pela canseira ou pelo excesso de cachaça ingerida.

De bordo de dois escaleres, uns homens alucinados respondiam ainda ao fogo de bordo do “Baependy”, onde a turma acho que atiçada pelo ódio que criaram na gente durante o combate – continuava atirando sobre os vencidos. Mas foram logo silenciados, os dos escaleres, porque contínuas rajadas da metralha inimiga – que não deixou ninguém vivo, nem gente nem barco – meteram tudo no fundo. Um bocado de gente morreu ali; uns levados p’ras profundezas dentro do próprio navio, outros atingidos pelas balas ou arrebentados, mesmo de fora pela explosão da caldeira.

Depois, o navio desapareceu e o rio ficou coalhado de pedaços; coisas mil que apareciam de bubuia misturadas com os corpos, uns de vivos que sobrenadavam sem rumo, outros de mortos ou de feridos manquitolando à deriva, sustentados pelos coletes salva-vidas. Havia também os que se amontoavam nos botes, quase só tripulantes, que tinham se afastado a tempo do local do afundamento. Eu, felizmente, consegui agarrar umas achas de lenha que passaram perto de mim e fiquei me aguentando nelas, com os pés em movimento e a cabeça malmente de fora, p’ra não perder o fôlego. Não fosse alguém do “Baependy” me enxergar dando sopa e resolvesse experimentar a pontaria na minha cabeça, como fizeram com muita gente! Graças a Deus eu tive sorte, não tinha chegado a minha vez; senão, era mais um entre os cadáveres que boiavam por perto, amarrados em seus salva-mortes. Flutuavam meio de pé, a cabeça vergada para a frente, e a cara chapinhando n’água, feito, mal comparando, aqueles calungas trapezistas com que a gente brincava no nosso tempo, fabricados de lascas de fasquio.

Finalmente, tudo silenciou. Acho que quando alguém do comando deles se apercebeu de que agora aquilo não era mais uma batalha, tinha virado brincadeira de magarefes (abatedores de gado), concurso de assassinatos por atacado. O fogo cessou. Aí eles começaram a arriar os escaleres e foram recolhendo gente – Os que ainda estavam vivos, é claro; os poucos do falecido Andirá” que sobraram daquela carnificina sem propósito.

Tropas Legalistas

Bem, depois que o “Andirá” foi afundado e eliminados os últimos focos de resistência que vinham dos dois escaleres, cessaram os tiros. A luta terminara – Aí, eu recebi ordem de guarnecer um dos botes com o meu pessoal e fazer uma batida nas redondezas para recolher sobreviventes e capturar fugitivos. De bordo do “Baependy”, também saíram baleeiras para apanhar os remanescentes do “Andirá”. Então, nós descemos, eu e a minha tropa, e fomos por ali a fora, remando em círculos, procurando, observando, mas nada achamos na nossa área. Até que chegamos perto da margem e demos com uma das lanchas que acompanhavam os rebeldes. Estava encalhada sobre o tijuco, no meio de um balseiro de canarana e já sem o pessoal de bordo, que tinha caído fora. A bordo, só restava o foguista, e a caldeira já estava sem pressão. Segurei o camarada – um preto cego de um olho – mas ele foi logo dizendo que era civil e estava ali porque era foguista da embarcação, mas que durante os acontecimentos apenas cumprira ordens. Dos demais, só sabia que tinham se jogado n’água e ganhado a beira no rumo da mata, mal o papouco entre os navios tinha começado; ele ficara a bordo porque sofria de estupor e tinha medo de ter o ataque quando caísse n’água.

Deixamos o pobre-diabo e demos uma volta pra ver se havia mais alguém escondido por ali e foi então que avistamos, já do outro lado do balseiro, a ponta duma valise aparecendo no meio da canarana. Chegamos mais perto e escutamos uns gemidos que vinham de dentro do capinzal. Com a pá da faia, um dos meus homens baixou o capim e vimos um senhor gordo, bastante exausto e que mal podia falar quando nós, afinal, conseguimos recolhê-lo para o escaler. Depois, já mais confortado, ele nos informou que era náufrago do “Jaguaribe”, onde viajava como representante comercial da firma armadora do navio. Salvou-se, disse ele, por verdadeiro milagre. Contou que se fechara no camarote durante o combate para não assistir àquela luta sem glórias que ele tinha feito tudo para evitar, procurando convencer os chefes revoltosos a desistirem daquela loucura; mas, disse ele, ninguém lhe deu ouvidos. Quando escutou o tremendo choque causado pelo abalroamento, percebeu que o “Jaguaribe” ia afundar e tratou de sair do camarote e atirar-se à água, invocando a proteção de Deus e de Nossa Senhora do Carmo, de quem disse ser devoto, tanto que trazia no pescoço um escapulário da santa todo ensopado. Aí, ele falou que sentiu uma energia sobre-humana para enfrentar a morte, o que lhe valeu para nadar em direção à margem sem perder os sentidos. A valise, trouxera consigo quando caiu n’água – sempre previra o pior desde que aquela gente tinha tomado conta do navio – e foi o que o ajudou a flutuar até alcançar o balseiro, pois, além do seu salva-vidas, tinha colocado dentro dela um outro, desde que saíram de Óbidos. Já no balseiro, livre de morrer afogado, seu tormento, porém, duplicou, devido às formigas-de-fogo que o perseguiram todo tempo, enquanto rezava para que alguém o encontrasse.

Levei o náufrago para bordo do “Ingá”, onde foi logo atendido pelo médico, pois seu estado de saúde não era dos melhores, por causa das ferroadas que levara. Voltamos ao escaler e continuamos percorrendo a margem a procura de fugitivos. Um pouco abaixo, encontramos uma barraca em que morava um casal de velhos e ali pegamos escondidos cinco soldados rebeldes que aprisionamos. Por eles, fomos informados de que os dois chefes civis da revolta, Aristides Lavor e Heráclito Borges, e mais o Sargento Silvério Rocha (comissionado capitão), estava mais adiante, escondidos num porto de lenha. Fomos à procura deles e conseguimos prendê-los juntos com alguns soldados e conduzimos todos para bordo do “Ingá”, de onde depois foram transferidos para o “Baependy” com o resto dos prisioneiros. A propósito desse sargento Silvério Rocha, eu soube, muito tempo depois, que ele conseguiu escapar de bordo do navio “Poconé” (que conduzia os prisioneiros para Belém), atirando-se à água por uma das vigias da 3ª classe. Foi uma fuga meio misteriosa, tendo corrido boato de que alguém da escolta facilitou as coisas. Mas isso, afinal, nunca foi apurado e assim, dos cabeças do levante de Óbidos (descontados os que morreram na batalha), ele foi o único que escapou à prisão).

Os prisioneiros recolhidos pelas patrulhas do “Ingá” que saíram nos escaleres (inclusive a nossa) não chegavam a trinta e foram alojados na proa do navio antes de irem para o “Baependy”. Dos rebeldes que conseguiram fugir, alcançando a margem e se embrenhando na mata, esses foram poucos. A maioria morreu: uns afogados, outros levados para o fundo nas carcaças dos navios piqueados; mas a maior parte foi mesmo liquidada pelas balas. Dos nossos, morreu apenas um marinheiro, que enterramos no dia seguinte, em Itacoatiara. Do “Baependy”, ao que eu soube, morreram três; de forma que as nossas baixas foram – se assim se pode dizer – insignificantes, diante da enorme perda de vidas do lado dos revoltosos, sacrificadas praticamente por nada. Hoje, quando recordo aquele combate, confesso que até me constrange a condição de “vencedor”, diante do sangue de tantos inocentes, derramado, afinal, por um efeito sem causa.” (GUIMARÃES)