MAPA

MAPA

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Treinamento

“Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. (Henry Ford)

-  O Rio Guaíba e a Terceira Margem
“Desembarcou aqui como passageiro comum entre tantos que procuram a terceira margem do Rio entre o céu e a terra”.
(Wilson Nogueira - O Andaluz)
Meu amigo e irmão General-de-Divisão Jorge Ernesto Pinto Fraxe me presenteou, quando era comandante do 1° Grupamento de Engenharia, com o livro “O Andaluz” que nos remete a uma reflexão importante a respeito de pessoas culturalmente diferenciadas ou portadoras de deficiências e o respeito e a compreensão que devemos ter em relação a estas diferenças. A leitura, aliada aos meses de afastamento das águas amigas do Guaíba, aumentou minha sensação de solidão e saudade.
Ilha das Pombas
Irmão Guaíba, navegando por tuas águas, afasto-me do mundo real e mergulho na tua essência mística, deixo o limitado pragmatismo de lado e penetro na tua fluidez infinita. Meu nível de consciência se altera, afastando de mim o cotidiano insano e permito que tuas ondas me conduzam a uma nova realidade materializada pelas tuas cálidas ondas que me arrastam. Uma estranha solidão invade meu íntimo e a onírica experiência faz com que assumas uma nova forma de vida. De repente, se estabelece uma relação única entre nós e, tu e eu, somos um só. Sinto como se regredíssemos ao útero da mãe Terra, um morno e profundo silêncio nos envolve e ao longe avistamos, por trás da bruma que se desfaz - a Terceira Margem.
Irmão Rio
“E entrou Jesus no templo de Deus, e expulsou todos os que vendiam e compravam no templo, e derribou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas; E disse-lhes: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; mas vós a tendes convertido em covil de ladrões”.
(João 2: 13-25; Mateus 21: 12-13; Marcos 11: 15-19; Lucas 19: 45-49)
Os gananciosos empresários e políticos que desconhecem teu encanto, tua serenidade e visam tão somente a interesses econômicos estão preocupados em alterar tua classificação para te corromper e te agredir, ainda mais, através da especulação imobiliária. Somente aqueles que te trazem no coração, que te consideram uma obra do Grande Arquiteto do Universo - um santuário - somente aqueles que compreendem tua história e teu destino são capazes de vislumbrar as maquiavélicas intenções destes vendilhões que mercadejam vilmente, procurando abalar as colunas do teu sagrado templo. Comento, com alguns diletos amigos, que não treino no Guaíba, mas que treino contigo, Guaíba. Com o passar do tempo, fui te conhecendo, amando e respeitando cada vez mais. Foste meu Mestre Amado nas horas difíceis em que eu tentava, com dificuldade, não naufragar na depressão e no desalento.
Nas tuas águas, afogo meus desesperares, meus desencantos, meus desamores. No aconchegante embalo de tuas ondas, encontrei forças para perseverar e enfrentar minhas angústias e meu desânimo. Tua imensidão me abraça e conforta, tuas tranquilas águas me acalmam. Tua suave brisa insufla nos meus pulmões a mais bela e pura energia e me aproxima, cada vez mais, da Terceira Margem. Tuas águas revoltas mostram a rota da humildade que devo seguir e a névoa que te cobre nas manhãs de inverno trazem sinais de esperança nos horizontes que aos poucos se revelam.
Sinto tua falta como do ar que penetra em meus pulmões e oxigena meu sangue. Nas inúmeras rotas em que me acompanhaste, foste um fiel e silente parceiro. A afinidade que nos irmana dispensa palavras, não precisa, absolutamente, delas. Aprendi contigo a interpretar os sinais da natureza, a me deixar levar pelos ventos e pelas ondas, a mergulhar na tua memória ancestral e dela recolher fragmentos da sabedoria dos tempos. Tuas belas ilhas e praias estarão sempre registradas na minha retina, os momentos de puro êxtase que, juntos, experimentamos, permanecerão gravados eternamente na minha memória. Só aqueles que trazem na alma o amor pela natureza talvez entendam o sentimento que me invade, quando navego pelas tuas águas infindas. Sejam capazes de entender a estranha energia que me invade e revigora e a sensação mágica que toma conta de minha alma como se eu estivesse entrando, sozinho, em um recinto misterioso e sagrado. Que Deus não permita que os vendilhões triunfem. Por isso te trato como Rio, com letra maiúscula mesmo, como sinal de respeito e quase devoção que me mereces.
O treinamento para o Rio Negro continua e, depois dele, outros virão. Os obstáculos, me ensinaste, existem apenas para aumentar nossa determinação e vontade de prosseguir. Parar, um dia sim, talvez, mas só quando meus braços não conseguirem empunhar o remo e manter a voga. O Rio Negro tem a magia das suas águas pretas, das suas praias de brancura imaculada e natureza exuberante, mas nenhum outro se igualará, jamais, a ti meu Amigo e Irmão Guaíba.
-  Ode à Maguari - Requiem à Lagoa da Fortaleza
“Às vezes, as garças se animam com o assovio dos ventos chamando a noite. E dançam. Dançam o passado cravado às asas. Nunca procuram caminhos de volta: foram apagados”. (Maria Lúcia Martins)

Maguari
Nem mesmo os rigores do inverno devem impedir ou prejudicar o treinamento para meu novo desafio. Minhas raias têm se alternado, regularmente, entre as águas do Rio Guaíba e das Lagoas Litorâneas. A terça-feira (28 de julho 2009) amanheceu ensolarada, esperei até as onze horas para que a temperatura se tornasse mais amena antes de iniciar a navegação na Lagoa da Fortaleza, em Cidreira.
Seria apenas um treinamento curto, tendo em vista que as previsões meteorológicas previam tempo ruim na parte da tarde. A velocidade do vento oscilava entre dois e três nós e as ondas entre 20 e 40 centímetros, tudo indicava que seria mais um habitual dia de treinamento. A Lagoa e as paisagens no seu entorno eram minhas velhas conhecidas e, em consequência, o percurso não prometia grandes novidades.
Ode à Maguari
Eu havia decidido iniciar minha rota contornando o perímetro da Lagoa remando a uns 50 metros da margem rumo Norte. Depois de remar por 15 minutos passou, a poucos metros de altura, uma enorme Garça Real, também conhecida como Garça Moura ou Maguari. Diferente dos demais pássaros que se afastam repentinamente, quando se aproximavam do caiaque, ela não alterou seu curso e foi pousar tranquilamente dentro d’água próxima à margem de onde ficou me observando.
Garça Maguari (Ardea cocoi): é a maior das garças brasileiras podendo atingir 1m80 cm de envergadura. Fora do período reprodutivo, vive solitária e, mesmo nessa época, a maioria mantém-se isolada durante a alimentação. O vôo, em linha reta, com o pescoço e as pernas totalmente esticados, é ritmado com lentas batidas de asas. Pousa nas margens dos Rios, Lagoas e banhados, oculta pela vegetação, onde captura peixes e anfíbios. Nidifica na parte superior das árvores mais altas e os ovos são chocados e cuidados pelo casal. A plumagem apresenta um contraste do branco do pescoço com o dorso acinzentado e as laterais escuras do ventre. Possui uma listra negra da parte inferior do pescoço, bem como no alto da cabeça. Ao redor dos olhos possui uma coloração azulada e o bico é amarelo. (Pantanal - Guia de Aves - RPPN - SESC)
Continuei minha jornada e fui surpreendido novamente, quando a “Maguari” passou, desta vez, pela proa do caiaque, virando sua cabeça, me observando, indo pousar logo adiante de onde permanecia me avaliando. A cena se repetiu diversas vezes e, em uma das oportunidades, ela pousou nas areias da praia de uma pequena enseada e de lá acompanhou, de modo a não me perder de vista, a passos largos, a minha movimentação. Quando aportei, depois de remar uma hora, ela se afastou desaparecendo ao longe por trás das brancas dunas de areia.
Fiz um “tour” pela área admirando a vegetação e identificando os vestígios de capivaras e ratões do banhado que ainda habitam a região protegidos, que são, pelos zelosos e conscientes fazendeiros locais. Não esperava mais rever minha estranha amiga, mas, alguns minutos depois de iniciar meu retorno, a “Maguari” cruzou novamente pela proa do caiaque a uns dez metros de distância de maneira que pude identificar até a cor de seus olhos. Ela continuou a me acompanhar até o sítio de onde iniciara seu périplo.
O que era para ser mais um rotineiro dia de treinamento se transformou numa experiência mágica em que dois seres, tão distintos, tiveram seus destinos cruzados, ainda que momentaneamente, pelas mãos do Grande Arquiteto do Universo. Foi um dia muito especial. Guardarei com carinho a cor daqueles brilhantes olhos da amiga “Maguari” me fitando.
Requiem à Lagoa da Fortaleza
Mas nem tudo foi perfeito. Verificando as águas rasas junto às margens da Lagoa, não havia qualquer sinal de vida aquática. Nem mesmo os famosos pequenos peixes “barrigudinhos” que infestam qualquer pequena lâmina d’água. Lembro de minha adolescência quando se apanhavam, nas suas águas, lambaris, tainhas, peixes-rei e mesmo siris.
Iniciei, há uns vinte anos, minhas navegações pela Lagoa de Cidreira (Fortaleza) e desde então observo, constrito, a vida a se esvair de suas águas. A Corsan, há anos, represou as águas da Lagoa da Fortaleza para captação de suas águas para o consumo humano. Os peixes que migravam desde o mar pela barra do Rio Tramandaí e pelos canais que o unem às Lagoas do Armazém - Custódia - Gentil - Manoel Nunes até a Lagoa da Fortaleza foram impedidos de fazê-lo. A diferença dos níveis das águas que, na estiagem, pode atingir dois metros, no dique, impede tainhas, peixes-reis, dentre outros, de alcançar as águas da Fortaleza. Não houve, na época da construção da represa, a preocupação de construir um acesso aos peixes para que isso não acontecesse.
É interessante verificar que os ecologistas gaúchos, que se preocupam e se mobilizam com desmandos tão distantes de suas plagas, não se interessem pelas ações inconsequentes que são perpetradas debaixo de suas ventas. Será que aos talibãs verdes não interessam uma empreitada deste tipo porque ela não obteria a tão “necessária” repercussão na mídia sensacionalista?
-  Vendaval na Lagoa da Fortaleza
“Eu era o vendaval que às flores puras
Do amor nas manhãs o lábio abria!
Se murchei-as depois... é que espedaça
As flores da montanha a ventania!”
(Lord Byron - Sombra de Don Juan)
O treinamento para a descida do Rio Negro é um eterno aprendizado e, desta vez, a protagonista foi a Lagoa da Fortaleza em Cidreira.
El Niño
O aquecimento das águas do Oceano Pacífico acarreta mudanças significativas nas correntes atmosféricas, provocando secas na região Norte/Nordeste e a ocorrência de intensas chuvas na região sul do país provocando, muitas vezes, catástrofes que assolam impiedosamente a região serrana de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Nas planuras lacustres ao longo do litoral gaúcho, porém, estas mesmas águas trouxeram muita beleza e revitalizaram a região.
Lagoa da Fortaleza
Na manhã de sábado, 10 de outubro de 2009, ventos superiores a 10 nós (18 km/h) encrespavam a superfície da Lagoa da Fortaleza, com ondas superiores a meio metro de altura. O caiaque oceânico mais parecia um potro redomão corcoveando sobre as águas. As ondas revoltas lavavam o convés e tornavam a navegação bem mais emocionante, embora mais lenta.
Rumei direto para a pequena represa construída no canal que une a Lagoa à sua vizinha do norte (Laguna Manuel Nunes). As águas tinham inundado os campos mais baixos e, quando me aproximei do dique, constatei que a diferença do nível das águas de montante e jusante, que há três meses, era de um metro e oitenta era, agora, de apenas de 25 centímetros. O barranco que dificultava o acesso ao canal simplesmente desaparecera, suas águas estavam niveladas com o campo.
A quantidade de aves era impressionante: bandos de marrecas da patagônia (não avistei nenhum macho no bando), marrecas piadeiras (Dendrocygna viduata), caneleiras (Dendrocygna bicolor) e pés-vermelhos (Amazonetta brasiliensis) que levantaram vôo logo que me avistaram. Apenas um fleumático casal de tarrãs me observava curioso do alto de um morrote sem esboçar qualquer reação. Pouco antes de me aproximar da represa, um movimento intenso sob as águas mostrava que os peixes tinham, graças às cheias, conseguido alcançar, finalmente, a Lagoa da Fortaleza, revitalizando-a. A represa, antes da cheia, era uma barreira intransponível para os peixes que tentavam migrar desde a barra do Rio Tramandaí e chegar à Lagoa da Fortaleza, depois de passar por quatro Lagoas atravessando os seus canais.
Tarrã (Chauna Torquata): ave da família dos anhimídeos, natural da Argentina, Bolívia e região Sul do Brasil. Medem cerca de 80 cm de altura, com uma envergadura de 120 cm e 4,5 kg de peso. As pernas são vermelhas e as plumagens pardo-acinzentadas, pescoço com gola negra e estreito círculo branco. As asas são negras e com uma grande área branca visível durante o vôo. Conhecidas, também, pelos nomes de anhuma-do-pantanal, anhumapoca, anhupoca, chajá, inhumapoca, taã, tachã-do-sul, tajã, xaiá e xajá.
Tirei algumas fotos da represa e cercanias e naveguei para a foz a jusante do canal onde estacionei. A imagem da Laguna Manuel Nunes era bastante diferente da que eu encontrara meses atrás. Na época, a foz, totalmente assoreada, permitia que se atravessasse o canal a pé com água pelo tornozelo e, hoje, tive de nadar para alcançar a margem oposta. Uma grande cobra d’água lutava contra a correnteza forte do canal. Uma pequena tartaruga e um grande cágado lagarteavam num local protegido dos ventos aproveitando o calor amigo dos raios solares. Encontrei um crânio de capivara que resolvi levar para os professores de biologia do Colégio Militar de Porto Alegre. A natureza irradiava uma harmonia contagiante.
Vendaval na Lagoa
Na manhã de domingo, 11 de outubro de 2009, ventos superiores a 30 nós (54 km/h), encastelavam as águas da Lagoa da Fortaleza, com ondas de metro e meio de altura. Remei durante algum tempo mas, apesar de manter o remo abaixo da linha dos ombros, procurando evitar a ação dos ventos nas suas pás, o esforço exigido era muito grande e resolvi executar, apenas, pequenos percursos próximos à largada.
Eu já enfrentara um vendaval semelhante no Guaíba ao retornar do Parque Itaponã. A distância de dez quilômetros que eu vencia, normalmente, com 01h25min em média, sem apresentar qualquer sinal de cansaço precisou, na época, de 02h55min para ser vencida e, ao final, eu me encontrava exausto.
-  Canoagem “Radical”
“Nos últimos cimos dos montes erguidos,
Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão”.
(Gonçalves Dias - A tempestade)
Treinamento para Travessia da “Lagoa dos Patos”
Continuamos com os treinamentos para a Descida do Rio Negro. O “encerramento” desta vez será a “Travessia da Lagoa dos Patos”, com saída da “Praia da Pedreira”, madrugada de 25 de novembro, Parque Itapoã, e chegada, prevista, em Rio Grande no dia 1° de dezembro.
Ontem a previsão de mau tempo me forçou a navegar costeando a margem esquerda do Guaíba até a frente Sul da “Ponta Grossa”. Os fortes ventos de popa na ida e, por incrível que pareça, na volta, favoreceram bastante o deslocamento. Acostumado a remar longe das águas de Ipanema e da Vila dos Sargentos, havia esquecido da poluição que infesta aquelas áreas. Às vezes tenho de concordar com os “Talibãs Verdes” de que o homem está se tornando um vírus letal para a Mãe Terra.
Hoje, dia da Bandeira, resolvi, contrariando o bom senso, atravessar o Guaíba rumo ao Parque Fazenda Itaponã, meu idílico refúgio. É verdade que o tempo estava perfeito, não fosse um pouco de neblina na linha do horizonte. Visitei meu velho amigo pescador, Senhor Américo, e fui passear pelo campo admirando a floração das palmas onde os insetos polinizadores disputavam freneticamente cada flor.
Abençoados “Teiús”
Ao retornar ao cais, onde havia deixado o caiaque, e preparar-me para o retorno, fui surpreendido com a visão de um enorme teiú que ziguezagueava pelo campo procurando ovos de quelônios.
Teiú (Tupinambis merianae): cabeça comprida e mandíbula e maxilar fortes, repletos de pequenos dentes pontiagudos. A língua é cor-de-rosa comprida e bífida. A cauda é longa e arredondada. O dorso apresenta barras negras transversais que se alternam com faixas transversais mais claras, com pontos negros e cinzas. A região ventral é clara, com barras negras transversais irregulares. Maior lagarto do continente, atingindo até um metro e vinte centímetros de comprimento. A cauda chega a medir 60 centímetros. Alimentação: variada, incluindo moluscos e artrópodes, vegetais, frutas, ovos, roedores, aves e anfíbios. (Guia Ilustrado de Animais do Cerrado de Minas Gerais - CEMIG - Editare Editora - 2003)
A língua cor-de-rosa movimentava-se freneticamente tentando localizar alguma presa. De repente, o réptil estancou e, depois de alguns giros sobre o mesmo Lugar, iniciou a escavação. O primeiro ovo apareceu logo em seguida e foi de pronto devorado. Quando estava para devorar o quinto ovo, surgiu, não sei de onde, um lagarto bem maior que o primeiro. Alguns giros e demonstrações de hostilidade fizeram o primeiro abandonar o tesouro recém-descoberto. Não sei se por estar saciado ou acovardado perante tamanho adversário. O segundo lagarto continuou a escavação e só se retirou após devorar os oito ovos restantes.
A Tormenta
O leitor deve estar se perguntando onde está o “Radical” de tudo isso. Às 12h20min iniciei minha viagem de retorno, rumo Nordeste. Após remar vinte minutos, alguma coisa ou “Alguém” me fez olhar para o Sul. Um enorme, belo, sinistro e arroxeado cogumelo de tempestade, com belas franjas verticais de brancas e diáfanas nuvens, limitado a Este pelo Farol de Itapoã e a perder de vista a Oeste, brotou do nada. Resolvi picar a voga achando que seria possível chegar antes dele ao meu destino - a Raia 1, na Pedra Redonda. Pouco depois, me virei novamente e o limite Este já era a Ilha do Chico Manoel, a tempestade percorrera 20 quilômetros em menos de doze minutos. Resolvi aportar na margem direita até que a tempestade passasse, afinal estava a apenas 400 metros de distância e levaria, no máximo, três minutos para chegar até lá.
Quando alterei o rumo, uma visão cinematográfica: a superfície da água, varrida pelos fortes ventos, formava uma sutil cortina branca de uns dez metros de altura e célere se aproximava. A forte rajada quase me arranca o remo das mãos. Tentei alinhar a proa com o vento usando o leme e remando vigorosamente sem sucesso. Os ventos de 110 km/h tentavam assumir o comando do caiaque mas, depois de quinze minutos, que mais pareceram horas, de muito esforço, consegui acostar e navegar por entre os juncos, próximo à margem, refugiado dos ventos, até achar uma pequena casa de pescador na Ponta da Figueira.
O dono da casa, o Senhor Inácio, e seu amigo, o Senhor Áureo, gentilmente me convidaram para entrar e ficamos contando estórias de pescador até o tempo melhorar um pouco. Às duas da tarde, cessada a ventania, me despedi dos novos amigos.
O Inigualável “Cabo Horn”
No Rio Purus, o caiaque duplo, pilotado pelo meu parceiro, estava sendo rebocado por uma embarcação a motor, a média velocidade, e sofreu sérias avarias. Eu já havia testado o caiaque no Guaíba em circunstâncias similares e o mesmo havia saído incólume do teste. Naquela oportunidade, bastante contrariado com o fato de nenhum de meus companheiros de viagem conseguir concluir a totalidade do percurso, escrevi um artigo me referindo ao caiaque como “Frágil”. Hoje, conhecendo todos os fatos, quero me penitenciar junto ao amigo Fábio Paiva, da Opium Fiberglass, fabricante dessa formidável embarcação.
Meu parceiro confessou, em Porto Alegre, enquanto aguardávamos uma entrevista, no programa “Bandeirantes a Caminho do Sol”, da rádio Bandeirantes, com o jornalista Milton Cardoso que, por diversas vezes, próximo à margem, “esticava as pernas” de pé dentro do caiaque, evidentemente forçando a estrutura justamente no ponto que mais tarde veio a cisalhar. Sentava no convés, nos locais de parada, carregava o caiaque antes de colocá-lo n’água e, nas aulas que se permitia dar aos filhos dos ribeirinhos, as crianças não tinham o devido cuidado com as embarcações. Como nas provas de equitação, o canoísta e o caiaque formam um conjunto harmonioso e perfeito, desde que se respeitem as características de cada um. Já naveguei 15.500 km com o fantástico “Cabo Horn” da Opium e posso dizer que não o trocaria por nenhum outro da sua categoria. A sua estabilidade, enfrentando vento de 110 km/h demonstra, sem sombra de dúvida, sua inigualável qualidade.
-  Fracasso Anunciado nas Desertas
Às duas horas e trinta minutos, de 25 de Novembro de 2009, iniciei, na Praia da Pedreira - Parque Itapuã, a planejada ‘Travessia da Lagoa dos Patos’, com destino a Rio Grande. Como a enseada se mostrasse tranquila e sem ondas, decidi rumar direto para o Farol de Itapuã. Tão logo me afastei da praia, fui surpreendido pela força dos ventos do quadrante Norte até então barrados pelo Morro da Fortaleza.

Ponta das Desertas
Alterei a rota de modo a contornar cada uma das enseadas. Sob o manto da escuridão me espreitavam as pedras submersas e, por mais de uma vez, o convés sofreu com o impacto das rochas. Era difícil distinguir as praias de areia dos calhaus. O vento formava ondas que vinha de todos os lados e, com a visão dificultada pela escuridão, resolvi aportar na Praia do Sítio que fica a uns seiscentos metros a Este do Farol. Passei por ela sem avistá-la, cheguei próximo ao Farol, retornei novamente e nada.

- Praia do Sítio e Farol de Itapuã

Em 1845, com a chegada dos Imperialistas à região, os Farrapos afundaram seus brigues ‘Bento Gonçalves’ e ‘20 de Setembro’ entre a Praia do Sítio e o local onde se encontra hoje o Farol de Itapuã. Aportei no Farol de Itapuã às três horas e quinze minutos. Aguardei quase três horas o sol sair e os ventos diminuírem para transpor os umbrais da Lagoa dos Patos.

- Pedra da Argola

Às seis horas, logo depois de passar o Farol, avistei a Pedra da Argola. A enorme argola, de uns cinquenta centímetros, fixada às rochas com chumbo derretido (chumbada), fazia parte de um sistema que visava facilitar a entrada no Guaíba quando soprava o vento Norte. As embarcações faziam uso das argolas para, tracionadas através de cabos, vencer a Ponta onde se localiza, hoje, o Farol de Itapuã.

- Praia do Tigre e Praia de Fora

Contornei a Ponta de Itapuã e, ao alterar o rumo pra Este, novamente o vento forte se fez presente desta vez diretamente de proa. Passei pela Praia do Tigre e logo, em seguida, pela interminável Praia de Fora. Os dezesseis quilômetros que me separavam até a Ponta das Desertas não me permitiam visualizá-la. Não havia avistado viva alma desde que partira da Pedreira, apenas um grande cargueiro entrando no Guaíba, próximo ao Farol, dava o sinal da presença humana até ali. A solidão me encantava.

Os cágados, tomando banho de sol, impressionavam pela quantidade. O número, certamente, era justificado pela ausência de seu maior predador natural o ‘Teiú’, que barbaramente violenta os ninhos desses quelônios e come seus ovos. Devem ter uma boa visão, pois quando me aproximava dos bandos, remando, a uns trezentos metros de distância eles mergulhavam afoitamente nas águas da Lagoa.

As tainhas davam um espetáculo a parte, o número era impressionante. A área protegida, do Parque, lhes servia de abrigo e parece que elas tinham consciência disso. A água, às vezes, parecia ferver, tal o tamanho do cardume. Uma ou outra saltava na vertical, coisa que eu ainda não tinha visto, projetando seu belo e esguio corpo prateado sobre a linha do horizonte.

Remei três horas e meia até o último renque de árvores localizado a pouco mais de um quilômetro da Ponta das Desertas. Descansei meia hora, me hidratei e alimentei, telefonei para os familiares e a Equipe de Coordenação formada pelo Coronel PM Sérgio Pastl (Diretor de Ensino da Brigada Militar e experiente velejador), o Coronel Leonardo Roberto C. Araujo (Chefe da Seção de Comunicação Social do Colégio Militar de Porto Alegre - CMPA) a professora Silvana Schuller Pineda (Clube de História do CMPA) e a amiga Rosângela Maria de Vargas Schardosim.

- O caiaque oceânico ‘Cabo Horn’ e a Travessia das Desertas

Os ventos continuavam muito fortes vindos do quadrante Este, meu destino. Resolvi tentar a travessia e parti às dez horas. A margem do lado oposto não podia ser avistada e tive de me guiar pelo GPS. Havia marcado um ponto diretamente a Leste para diminuir a rota, vinte quilômetros. Em condições normais levaria em torno de quase três horas para percorrer tal percurso.

As ondas de dois metros e meio e o vento de proa freavam meu deslocamento, mas, mais uma vez, o caiaque de Opium se portava galhardamente. Carregado ele se tornara mais estável ainda e eu jogava o corpo para trás para evitar que enterrasse a proa nas grandes ondas. Tinha de manter a concentração na navegação, pois uma enterrada de remo um movimento inadequado poderia virá-lo. Como não avistava a margem oposta, vez por outra, tinha de me guiar pelo GPS e constatava que ia, inadvertidamente, ziguezaguendo, aumentando ainda mais o percurso.

Às onze horas confirmei, pelo GPS, que havia navegado apenas 4 quilômetros e meio. Cheguei a conclusão de que não teria condições físicas de manter aquele ritmo e a concentração durante outras três horas e meia e, se o conseguisse, estaria me sujeitando a enfrentar uma possível e indesejada mudança do tempo no meio da Travessia. Resolvi abortar a missão e retornar à minha última parada.

- Montando acampamento nas Desertas

Aproveitei, na volta, o vento de popa e as ondas, surfando. Foi um deslocamento bem mais rápido. Escolhi um lugar entre as árvores, protegido por pequenos montes de areia, protegido do vento e iniciei a limpeza da área e a montagem da barraca. Lavei a roupa e a estendi nos galhos, reparei o convés do caiaque das avarias que sofrera com Fita Crepe. Estava cansado, frustrado. Era a segunda vez que enfrentara condições adversas extremas em meus deslocamentos e a primeira que tivera que abortar.

Ponta das Desertas
Tinha decidido descansar e, no dia seguinte, no momento em que o vento diminuísse, tentar novamente a Travessia. Saí para observar o local, inúmeros biguás e cágados infestavam as praias e o vento continuava castigando impiedosamente. Retornei à barraca, montei o colchão de ar, e depois de me hidratar e comer massa crua, descansei um pouco.

Acampamento nas Desertas
Recebi informação da Equipe de Coordenação que a previsão para o dia seguinte era de trovoadas e ventos mais fortes ainda e fui orientado a abortar a Travessia. O Cel PM Pastl providenciou uma equipe de resgate formada pelo 1º Sgt QPM1 - João Batista Prates Pedroso, do Departamento de Ensino, e do Sd QPM2 - Evertom Haupenthal, da Escola de Bombeiros. Desmontei o acampamento e remei mais de onze quilômetros até o local onde se encontrava a viatura da PM.

Operação de Resgate
- Fracasso anunciado nas Desertas

A Travessia, no seu planejamento original, contava com a presença e apoio, diretamente de bordo, de nosso caro amigo o Cel PM Pastl e seu veleiro. Teríamos o conforto de sua embarcação nos locais de parada sem a necessidade de montar acampamentos. Por problemas de saúde com familiar ele não pode nos acompanhar, mas continuou se preocupando em fazer contato com todos os elementos que, de uma forma ou de outra, poderiam nos apoiar ao longo da rota.

O sinal tinha sido claro. A missão deveria ser efetivada em outra ocasião. O enfrentamento recente com vento de cento e dez quilômetros por hora no Guaíba tinha sido outro sinal. Por teimosia, talvez, e outras condicionantes escolares, alheias à nossa vontade, tínhamos de tentar. Ano que vem pretendemos tentar novamente e continuaremos tentando até conseguir.

- E-mail do velejador Pastl

“(...) desde 1992 tenho usufruído de vivências na Lagoa dos Patos, e muitas vezes ela me vence.

Já fui náufrago nela, veranista, feliz barqueiro a diesel, feliz velejador, passei a noite de 30 de dezembro de 2006 encalhado no Banco do Vitoriano, com a Aninha e os guris. Terrível. Sofri um rebojo em 2006 (...). Ainda noutra quebrou o mastro, sorte que a dois quilômetros de São Lourenço do Sul. Noutra ocasião quebrei o motor (...) encalhei no Capão Comprido, e quase perdi um cunhado, o Valdir, afogado, que desceu no banco de areia para empurrar. Noutra, quase encalhei no Banco do Bojuru. Confesso que rezei, e cantei salmos, de tão medroso que fiquei. (...) Ainda noutra, passei dois dias encalhado (...) no Cristóvão Pereira. Noutra, 31 de dezembro de 2008, ficamos sem vento no Pontal Santo Antônio, e sem o motor (...). Depois veio um rebojo e entramos ‘voando’ em Tapes. Levamos uma hora somente para amarrar o barco no trapiche. (...) Eu sonho com a Lagoa, penso nela todos os dias, por vezes tenho medo, mas é uma cachaça.

Para hoje (25 de novembro), a Marinha expedira ‘Aviso de Mau Tempo’ na Lagoa e área Alfa, vento 7 da ‘Escala Beaufort’.

És um bravo. Enfrentaste a Lagoa. Não vamos desistir. Vamos nos fortalecer e voltar. (...) Vamos planejar o combate. Vamos voltar e aproveitar a Lagoa em melhores momentos. Ela é linda.

Selva!”

- Escala Beaufort

O almirante britânico Sir Francis Beaufort (1774-1857) criou uma escala, de 0 a 12, observando as modificações que ocorriam no aspecto do mar, em consequência da ação dos ventos. Algum tempo depois esta tabela foi adaptada para a terra.

Força
Designação
Velocidade
(Km/h)
Aspecto
do Mar
Influência
em Terra
7
FORTE
50 a 61
Mar revolto. Vagas de até 4,5 m de altura com espuma branca de arrebentação; o vento arranca laivos de espuma
Movem-se as árvores grandes; dificuldade em andar contra o vento.