MAPA

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sexta-feira, 29 de junho de 2012

Alucinógenos ou Psicoativos?

Os trágicos acontecimentos de março de 2010, após minha descida pelo Rio Negro, envolvendo o assassinato do cartunista Glauco Villas Boas e seu filho Raoni, devoto do Santo Daime, fundador da igreja Céu de Maria, sediada em sua própria casa, por um dos frequentadores, levaram-me a criar, na época, um capítulo especial sobre algumas substâncias narcóticas utilizadas pelos nativos sul-americanos.

Glauco Villas Boas
A Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS) vem promovendo, já há alguns anos, o diálogo, o estudo e o aprofundamento sobre a realidade da cultura indígena no Estado e no País, através de uma série de palestras que fazem parte do evento chamado “Círculo de Cultura Indígena”, que celebra, neste ano, sua 8ª edição. O evento é coordenado pelo Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito e pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Cultura Indígena. Durante minhas locuções sou, sistematicamente, interpelado pelos líderes indígenas no sentido de não me referir aos narcóticos que utilizam nos seus rituais como “narcóticos” ou “psicotrópicos” e sim “psicoativos”.
A proliferação de seitas que usam, nos seus rituais plantas, chamadas eufemisticamente, pelos seus simpatizantes de “psicoativas” mas que, na realidade, nada mais são do que drogas que provocam ou estimulam surtos psicóticos, deveriam receber uma maior atenção por parte das autoridades. Há que se diferenciar uso da droga pelos povos nativos, atendendo a rituais ancestrais, e seu uso pelos “civilizados” em busca de novas experiências ou modismos “pseudo-religiosos” que nada têm a ver com a sua história e seus costumes. Essas pseudo-doutrinas só prosperaram tendo em vista a possibilidade de se fazer uso lícito de drogas proibidas e a ignorância e a falta de conhecimento científico a respeito dos malefícios que o uso delas pode acarretar. Quantos outros casos semelhantes ao do cartunista Glauco deixaram de ser repercutidos pela mídia só porque as vítimas eram cidadãos comuns!
Modismos recorrentes levam a humanidade, volta e meia, a buscar nos procedimentos primitivos a cura para suas mazelas. Há necessidade, por exemplo, de identificar se o princípio ativo das substancias usadas pelos “pajés” tem algum poder curativo ou não. Diversas dessas plantas, ditas “medicinais”, foram pesquisadas e nenhum princípio ativo foi identificado, que justificasse seu emprego. As últimas pesquisas apontam que apenas cerca de 12% das plantas utilizadas pelos aborígines têm algum efeito benéfico sobre o organismo.
Achar que o conhecimento nativo sobre a flora e a fauna e a natureza em geral não necessita de uma visão mais científica é desprezar todo o conhecimento da história da humanidade ao longo de milhares de anos.
Tive a oportunidade, na minha carreira militar, como oficial de engenharia, de conviver por dois anos com os Waimiris-Atroaris (WA). Apareci, certo dia, na Aldeia da “Terraplanagem” com um estranho inseto na mão, que apanhara num tronco seco à beira da estrada, para que eles me dessem o nome do animal.
Os WA apavoraram-se, pois atribuíam ao pequeno inseto um veneno mortal para o ser humano e diziam que se o pequeno e exótico animal, conhecido como Jequitiranaboia, picasse uma árvore, ela perderia imediatamente todas as folhas e tombaria em vinte e quatro horas. Na verdade, o animal era totalmente inofensivo. A sua esquisita cabeça lembra o crânio de um jacaré e isso foi suficiente para que os nativos lhe atribuíssem poderes especiais.

Jequitiranaboia
Jequitiranaboia (Fulgora lanternaria): inseto pertencente à família Hemíptera, possui uma curiosa cabeça semelhante a de um jacaré. É totalmente inofensivo apesar de sua exótica aparência. Alimenta-se do néctar das flores e da seiva de vegetais, tem hábitos noturnos e mede cerca de 6 a 7 cm. Era facilmente encontrado nas florestas da América do Sul, mas sua estranha aparência colocou-o na rota de tráficos de animais transformando-o numa raridade. Conhecido também como: jequitiranaboia, jetiranumboia, jitiranaboia, tiramboia, jaquiranaboia, cobra-voadora, cobra-do-ar, cobra-de-asa e em inglês, Alligator - Headed Lantern Fly (Cobra-voadora-cabeça-de-lanterna).
-  Drogas Psicotrópicas ou Psicoativas
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1981, definiu estas substâncias como aquelas que “agem no Sistema Nervoso Central (SNC) produzindo alterações de comportamento, humor e cognição, possuindo grande propriedade reforçadora sendo, portanto, passíveis de autoadministração”. Essas alterações podem ser proporcionadas para fins: recreacionais (alteração proposital da consciência), rituais ou espirituais (uso de enteógenos), científicos (funcionamento da mente) ou médico-farmacológicos (como medicação).
A ética em relação ao uso dessas drogas é objeto de contínuos debates filosóficos. Muitos governos têm imposto restrições sobre a produção e a venda dessas substâncias na tentativa de diminuir o abuso de drogas.
-  Resolução N° 1, de 25 de janeiro de 2010
“O poder público pecou em não regulamentar mais clara e objetivamente o uso do chá. A igreja tem o dever de indenizar, se for provado que ministrou sem os cuidados que a resolução determinava”. (André Alves Wlodarczyk - Advogado Criminalista)
Segundo a Resolução n° 1, Carlos Grecchi, pai de Carlos Eduardo, assassino do cartunista Glauco e seu filho, poderia, legalmente, vir a solicitar indenização por parte da igreja “Céu e Maria”. Grecchi afirma que vinha solicitando a Glauco, desde 2007, quase três anos, que seu filho não fizesse uso do Daime, pois apresentava surtos psicóticos depois da administração da droga.
-  Histórico “Legal”
Na década de 80, o uso da bebida chegou a ser proibido;
1987  -  Suspensão provisória da interdição do uso da Ayahuasca, através da Resolução n° 06 do CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes), de 4 de fevereiro de 1986;
1991  -  Denúncias anônimas indicando mau uso da substância gerou o reexame da bebida. O CONFEN realiza estudos sobre a forma de produção e consumo da bebida e, em parecer de 02/06/92, conclui que não havia razões para alterar a conclusão de 1987, que havia liberado o uso da droga para fins religiosos;
2004  -  O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) solicitou, em 24 de março, à Câmara de Assessoramento Técnico-Científico a elaboração de estudo e parecer técnico-científico a respeito do uso da Ayahuasca. O parecer apresentado e aprovado na Reunião do CONAD, de 17/08/04, serviu de base à Resolução n° 5, do CONAD, de 04/11/04, que criou o atual Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT);
2010  -  Através da Resolução n° 1, de 25 de janeiro, o CONAD dispõe sobre a observância, pelos órgãos da Administração Pública, das normas e procedimentos compatíveis com o uso religioso da Ayahuasca.
-  Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006
Art. 20. Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
-  Resolução N° 1, de 25 de janeiro de 2010
(...) Considerando o Relatório Final elaborado pelo Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT), instituído pela Resolução n° 5 - CONAD, publicada no D.O.U. de 10/11/2004; (...)
Resolve:
Art. 1° Determinar a publicação, na íntegra, do Relatório Final, do Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT), fazendo-o parte integrante da presente Resolução. (...)
-  GMT - Ayahuasca - Relatório Final
    V - Conclusão
(...) O Grupo Multidisciplinar de Trabalho aprovou os seguintes princípios deontológicos para o uso religioso da Ayahuasca:
1. O chá Ayahuasca é o produto da decocção do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria viridis e seu uso é restrito a rituais religiosos, em locais autorizados pelas respectivas direções das entidades usuárias, vedado o seu uso associado a substâncias psicoativas ilícitas;
2. Todo o processo de produção, armazenamento, distribuição e consumo da Ayahuasca integra o uso religioso da bebida, sendo vedada a comercialização e/ou a percepção de qualquer vantagem, em espécie ou in natura, a título de pagamento, quer seja pela produção, quer seja pelo consumo, ressalvando-se as contribuições destinadas à manutenção e ao regular funcionamento de cada entidade, de acordo com sua tradição ou disposições estatutárias;
3. O uso responsável da Ayahuasca pressupõe que a extração das espécies vegetais sagradas integre o ritual religioso. Cada entidade constituída deverá buscar a autosustentabilidade em prazo razoável, desenvolvendo seu próprio cultivo, capaz de atender as suas necessidades e evitar a depredação das espécies florestais nativas. A extração das espécies vegetais da floresta nativa deverá observar as normas ambientais;
4. As entidades devem evitar o oferecimento de pacotes turísticos associados à propaganda dos efeitos da Ayahuasca, ressalvando os intercâmbios legítimos dos membros das entidades religiosas com suas comunidades de referência; (...)
8. Compete a cada entidade religiosa exercer rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de novos adeptos, devendo proceder entrevista dos interessados na ingestão da Ayahuasca, a fim de evitar que ela seja ministrada a pessoas com histórico de transtornos mentais, bem como a pessoas sob efeito de bebidas alcoólicas ou outras substâncias psicoativas;
9. Recomenda-se ainda manter ficha cadastral com dados do participante e informá-lo sobre os princípios do ritual, horários, normas, incluindo a necessidade de permanência no local até o término do ritual e dos efeitos da Ayahuasca. (...)
    Alienação do CONAD
A liberação do uso da ayahuasca para fins religiosos pelo CONAD reconheceu, ainda que implicitamente, que a ingestão do alucinógeno é potencialmente perigosa. O estabelecimento de rígidos procedimentos que estabelecem a proibição de sua administração a pessoas com “histórico de transtornos mentais” ou sob efeito de bebidas alcoólicas” ou outras substâncias psicoativas, e a necessidade de que as entidades religiosas exerçam “rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de novos adeptos deixa isso patente.
O CONAD erra ao atribuir toda a responsabilidade sobre a seleção de adeptos, produção, uso do psicotrópico e acompanhamento dos efeitos aos próprios usuários como se isso fosse de fato viável. Quem seriam os encarregados de acompanhar os efeitos em cada usuário? Membros da seita sob efeito do alucinógeno? O CONAD, também, não determina quem será o responsável pela fiscalização destas regras nem como isso será feito.
O advogado constitucionalista João Wiegerinck acrescenta:
Por eliminação, percebemos que a fiscalização só será feita quando provocada: quando alguém passar mal ou surtar com a bebida. Obviamente, é uma falha.
Os profissionais da saúde pública criticam a resolução pois, segundo eles, entrega aos próprios adeptos a responsabilidade de determinar quem pode fazer uso do chá quando, na verdade, essa orientação deveria ser feita por psicólogos ou psiquiatras. O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira afirma:
O uso do chá é arriscado para pessoas que tomam antidepressivos e é contraindicado a pessoas com diagnóstico de psicose, já que aumenta muito a produção de certas substâncias no cérebro. A falta de fiscalização pode levar ao aparecimento de vários casos graves.
O psiquiatra Emmanuel Fortes acredita que:
É uma temeridade. As pessoas não saem por aí dizendo se têm doença mental ou não. Isso merece uma reflexão por parte do Conselho Federal de Medicina.
-  Ayahuasca
    Fontes: Ana Cecília Marques e Hamer Nastasy Palhares.
A Ayahuasca é conhecida em diferentes culturas pelos seguintes nomes: yajé, caapi, natema, pindé, kahi, mihi, dápa, bejuco de oro, vine of gold, vine of the spirits, vine of the soul e a transliteração para a língua portuguesa resultou em hoasca. Também é conhecida amplamente no Brasil como “Chá do Santo Daime” ou “Vegetal”. Na linguagem Quechua, aya significa espírito ou ancestral, e huasca significa vinho ou chá. Este nome tanto se aplica à bebida preparada por meio da mistura da Banisteriopsis caapi e da Psichotria viridis, quanto à primeira das plantas. (...)

Ayahuasca
As diversas preparações geralmente contêm talos socados da Banisteriopsis caapi ou espécies correlatas mais as folhas da Psichotria viridis. As plantas adicionadas à Ayahuasca ajudam a maximizar as experiências de estimulação visual e as sensações de contato com “forças e locais sobrenaturais” e divinas. Os métodos de preparo variam conforme o grupo, como um chá quente ou amassando-se junto à água fria, deixando-se em descanso por aproximadamente 24 horas. (...)
    Histórico
As origens do uso da Ayahuasca na bacia Amazônica remontam à Pré-história. Não é possível afirmar quando tal prática teve origem, no entanto, há evidências arqueológicas através de potes, desenhos que levam a crer que o uso de plantas alucinógenas ocorra desde 2000a.C.
Apesar da coleta e identificação da Ayahuasca datar de 1851, os alcalóides já eram conhecidos desde a primeira metade do século XIX, o que se deve à facilidade de extração dos mesmos, bem como aos possíveis usos clínicos: logo, a Harmalina foi isolada da Peganum harmala em 1840. Sete anos depois, a Harmina foi identificada. A “telepatina” - harmina - foi identificada na “yajé” em 1905. (...)
    Antropologia e Uso da Ayahuasca
Plantas com propriedades alucinógenas vêm sendo utilizadas com finalidades místicas e religiosas em diferentes culturas primitivas. Há relatos do uso das poções em toda a Amazônia, chegando à costa do Pacífico no Peru, Colômbia e Equador, bem como na costa do Panamá, sendo que foi reconhecida em pelo menos 72 tribos indígenas, com pelo menos 40 diferentes nomes. Entre as diversas tribos da bacia Amazônica, a Ayahuasca é percebida como uma poção mágica inebriante, de origem divina, que “facilita o desprendimento da alma de seu confinamento corpóreo”, voltando ao mesmo conforme a vontade e carregada de conhecimentos sagrados. Entre os nativos, é usada para propósitos de cura, religião e para fornecer visões que são importantes no planejamento de caçadas, prevenção contra espíritos malévolos, bem como contra ataques de feras da floresta. (...)
    Ayahuasca e Religião
No século passado, além do consumo da mistura entre as populações indígenas, várias igrejas adotaram o uso da ayashuasca em rituais sincréticos, especialmente no Brasil, onde os efeitos psicoativos são acoplados a conceitos das doutrinas Judaica, Cristã, Africana entre outras. As principais religiões deste módulo incluem a UDV (União do Vegetal), CEFLURIS (Santo Daime), Barquinha e o Alto Santo. (...)
Tais seitas incluíram a Ayahuasca em seus rituais de comunhão como um simbolismo comparável ao “pão e vinho”. Estas igrejas argumentam que a poção ajuda a promover concentração pronunciada e contato direto com o plano espiritual. (...)
    Ayauhuasca e a Expansão do Consumo
O crescente número de indivíduos que vêm experimentando a Ayahuasca de maneira descontextualizada, visitas a seitas com o único intuito de conhecer a bebida, e a atual possibilidade de se usar a Pharmahuasca: combinação sintética dos ingredientes psicoativos da Ayahuasca.
    Chá do Santo Daime (Ayahuasca)
O chá de Santo Daime é um alucinógeno. Tal propriedade se deve à presença nas folhas da chacrona de uma substância alucinógena denominada N,N-dimetiltriptamina (DMT). O DMT é destruído pelo organismo por meio da enzima monoaminaoxidase (MAO). No entanto, o caapi possui uma substância capaz de bloquear os efeitos da MAO: a harmalina. Desse modo, o DMT tem sua ação alucinógena intensificada e prolongada. (...)
    Riscos à Saúde
Pode haver sensação de medo e perda do controle, levando a reações de pânico. O consumo do chá pode desencadear quadros psicóticos permanentes em pessoas predispostas a essas doenças ou desencadear novas crises em indivíduos portadores de doenças psiquiátricas (transtorno bipolar, esquizofrenia).
-  Santo Daime e União do Vegetal
O Santo Daime é uma manifestação religiosa exótica que surgiu, no Brasil, a partir do estado do Acre, nas primeiras décadas do século XX. Seus membros fazem uso de uma bebida enteógena (droga alucinógena), o ayahuasca que, segundo eles, serviria para catalisar processos espirituais visando à cura e bem-estar do indivíduo.

"Mestre" Irineu Serra
Após fazer uso da beberagem, Irineu Serra, seu fundador, imaginou ter tido uma visão de entidades superiores que lhe ordenaram propagar o Santo Daime. Irineu concebeu apenas, muito genericamente, uma doutrina que mescla diversas tradições religiosas antigas e contemporâneas cujo pano de fundo serve apenas para justificar o uso da ayahuasca pelos seus discípulos.
A União do Vegetal (UDV) foi criada pelo baiano José Gabriel da Costa na década de 60 que havia migrado para a região Norte para trabalhar como seringueiro. Em 1959, José Gabriel teve o primeiro contato com a ayahuasca e, depois disso, começou a ter visões de suas vidas passadas e atuar como mensageiro e difundir sua doutrina. Em 1961, criou o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. A sede da UDV localiza-se, hoje, em Brasília, tem filiais em todo o território nacional e no exterior. É a doutrina ayahuasqueira mais numerosa do país, seus rituais possuem forte influência kardecista.
-  Richard Spruce
Richard Spruce, em novembro de 1852, navegando pelo Rio Negro chegou à Aldeia de Ipanoré, maloca de Urubucoará, onde assistiu à cerimônia do culto Jurupari, em que os Tucanos usavam uma bebida chamada “kapi”, erroneamente grafada “caapi”, palavra tupi-guarani que designa gramíneas, preparada a partir de uma espécie de cipó. Spruce relata que: “os brancos que tomaram caapi na forma apropriada coincidem em seus relatos sobre as sensações obtidas sob seu efeito. A vista se altera e diante dos olhos passam rapidamente visões onde parecem combinar-se tudo o que viram ou leram sobre o esplêndido e o magnífico”. Spruce embriagou-se com caxiri (bebida fermentada à base de macaxeira) e não chegou a provar a bebida “sagrada”, mas, já no dia seguinte, começou a pesquisar o seu principal componente, o cipó que denominou Banistera caapi (depois Banisteriopsis caapi).
-  Relatos Pretéritos
    Richard Spruce (1853)
Nos relatos dos viajantes a propósito das cerimônias realizadas pelas tribos sul-americanas e das invocações executadas pelos seus pajés. Há frequentes menções a poderosas drogas empregadas para provocar intoxicação ou mesmo delírio temporário. Varia o modo de administrar e ingerir esses narcóticos, que ora são reduzidos a fumaça e tragados, ora a vapor e inalados, ora ingeridos sob forma líquida. Aliás, são poucas as plantas utilizadas pelos indígenas como matéria prima de artigos de consumo, podendo-se citar apenas o fumo e as que produzem bebidas fermentadas, especialmente o milho, a banana, a mandioca e mais umas poucas.

Como tive a sorte de assistir ao uso dos dois narcóticos mais famosos, e de obter espécimes das plantas que os produzem (perfeitos o suficiente para serem determinados botanicamente), transcrevo a seguir as observações a seu respeito que anotei “in loco”. (...)
É a parte inferior do caule que se utiliza para produzir o narcótico. Uma certa quantidade dela é imersa em água e pilada num almofariz. Eventualmente é acrescentada uma pequena porção de raízes delgadas da planta conhecida como “caapipinima”. Depois de pilado e triturado, o “caapi” é peneirado e escoimado das fibras lenhosas e, em seguida, diluído numa quantidade de água suficiente para transformá-lo em bebida. Depois de pronto, adquire uma coloração verde amarronzada, e seu sabor é amargo e desagradável. (...)
Uso e Efeito do Caapi
Em novembro de 1851, fui convocado a comparecer a um “dabacury” - ou seja, a uma “festa dos presentes” - realizado numa maloca (residência coletiva) conhecida como Urubuquara e situada acima das primeiras corredeiras do Uaupés. (...)
Durante toda a noite, o caapi foi servido cinco ou seis vezes para os jovens, durante os intervalos das danças, sendo contemplados poucos usuários a cada rodada, e sendo poucos aqueles que, terminada a festa, chegaram a tomar mais de uma dose. O “garçom” - sempre do sexo masculino, já que o uso do caapi é vedado às mulheres - inicia a cerimônia de servir com uma curta corrida, vindo do lado de trás da casa, trazendo em cada mão uma cuia contendo uma porção correspondente a uma xícara de chá. Chegando diante dos que o esperam, murmura algo assim como “Mo-mo-mo-mo-mo” e se encurva pouco a pouco, até quase encostar o queixo no joelho, momento em que estende uma das cuias para o usuário, que sorve um gole. Depois vai fazendo o mesmo com os demais, até que as duas cuias se tenham esvaziado.
Passado menos de dois minutos, começam a se fazer notar os efeitos do caapi. O índio que o tomou adquire uma palidez mortal, suas pernas começam a tremer e sua fisionomia aparenta um sentimento de horror. Súbito os sintomas invertem e ele começa a suar copiosamente, parecendo estar tomado por uma fúria insopitável, ocasião em que apanha a primeira arma que encontra - tanto faz que seja um murucu (lança), arco, flecha ou facão, - sai da maloca e aplica violentos golpes no chão ou nos beirais da porta, gritando coisa como: “É assim que vou fazer com meu inimigo Fulano, se ele aparecer por aqui!” Passados uns dez minutos, cessa o efeito e o índio recobra a calma, dando mostras de estar exausto. Se estivesse em sua casa, certamente iria cair na rede e dormir até se recuperar completamente, mas aqui na festa o que tem a fazer é sacudir a sonolência e voltar a dançar. (...)
Os brancos que já tomaram caapi de maneira mais racional e relataram suas experiências foram concordes na descrição de seus efeitos, caracterizados por uma alternância de ondas de frio e calor, de medo e coragem. A visão fica turva e diante dos olhos do usuário passa a desfilar uma sucessão de imagens deslumbrantes e magníficas, lembrando cenas vistas ou lidas no passado. Subitamente, a temática se inverte, e as cenas visualizadas passam a ser horrendas e esquisitíssimas.
Foram também esses os sintomas gerais a mim relatados por mercadores civilizados do alto Rio Negro, do Uaupés e do Orinoco que tiveram tal experiência, dando-se o desconto de uma ou outra variação de caráter pessoal. Um amigo brasileiro me disse que, de certa feita, depois de ter tomado uma dose completa de caapi, enxergou a sua frente as maravilhas exóticas que lera nas “Mil e uma noites”, como se num cenário animado, mas as derradeiras cenas daquele desfile fantástico se transformaram numa sequência de imagens pavorosas dignas dos contos de horror. Na festa de Urubuquara, fiquei sabendo que a planta do caapi era cultivada de maneira suplementar numa roça situada poucas horas Rio abaixo. Fui lá um dia, com a intenção de colher alguns espécimes e adquirir uma quantidade razoável de talos já cortados e enfeixados, para poder enviá-los à Inglaterra, a fim de ser ali analisados. (...)
O caapi é utilizado pelos índios de todas as tribos assentadas ao longo do Uaupés, algumas das quais falam línguas totalmente diferentes entre si, além de terem costumes também inteiramente diversos. Já no Rio Negro, se ele algum dia foi usado, caiu em completo desuso, e também não me consta que seja empregado pelas tribos da nação Caribe - Bares, Baniuas, Mandauacas, etc. - com a solitária exceção dos Tarianas, que se introduziram ligeiramente no Uaupés, onde provavelmente aprenderam seu uso com seus vizinhos da tribo Tucano.
Quando estive nas cataratas do Orinoco, em junho de 1854, reencontrei, o caapi, com esse mesmo nome, num acampamento de Guaíbos selvagens, nas savanas de Maypures. Esses índios não só bebiam a infusão da planta, preparada da mesma maneira empregada pelos índios do Uaupés, como mascavam o talo seco, como se costuma fazer com o fumo. Aprendi com eles que todos os moradores nativos dos Rios Meta, Vichada, Guaviare, Sipapo e dos riachos intercalados entre esses Rios conhecem o caapi e o usam precisamente do mesmo modo. (...) Em maio de 1857, nas aldeias peruanas de Canelos e Puçá-Yacu, voltei a ver plantações de caapi, da mesma espécie do Uaupés, mas ali denominava-se “aya-huasca”, palavra inca que significa “videira-de-defunto”, e usado igualmente como narcótico estimulante pelos índios das tribos Zaparo, Angutero e Mazane. A bebida é também usada pelos feiticeiros quando estes são solicitados a resolver pendências, responder consultas, revelar os planos do inimigo, dizer se os estrangeiros visitantes seriam ou não confiáveis, se as esposas são fiéis, quem teria deitado mau-olhado sobre fulano que adoeceu de repente, etc. (...) Os jovens não têm permissão de usar o “aya-huasca” enquanto não atingirem a puberdade, sendo seu uso inteiramente vedado às mulheres, exatamente como no Uaupés. (...)
Eis o que posso dizer acerca do caapi ou “aya-huasca”. Lamento não ser capaz de precisar qual seria o princípio ativo narcótico que produz seus efeitos (harmina). Suas substâncias análogas mais óbvias são o ópio e o haxixe, mas o caapi parece operar no sistema nervoso de maneira mais rápida e violenta do que ambos. (SPRUCE)
-  Higino Veiga Macedo (1974)
Meu grande amigo, Coronel de Engenharia Higino Veiga Macedo, enviou o relato abaixo em que narra sua experiência com os usuários do “chá” quando chefiava a equipe de terraplenagem do 5° Batalhão de Engenharia de Construção, na Br 364, no trecho Manoel Urbano - Feijó.
    Os Peões e o Cipó
Um problema que quase se torna sério era o consumo de “cipó”, pelos peões. Subindo o Rio Envira, a dois quilômetros do porto de Feijó, havia uma maloca de índios aculturados ou “culturado com civilizados” ou, como queiram, com costumes de brancos. A etimologia de aculturado é enrolada, vindo do anglicismo, mas formada por raízes latinas e prefixo grego. Pelo dicionário, pode se ver: a+cultur+ado. Pelo prefixo “a”, grego, dá para entender que esse “a” quer dizer negação: então é a negação da cultura primitiva, para melhor ou para pior. Mas a indiada era bem civilizada. O grande líder (cacique) na época era o Seu Inácio, já com uns oitenta e tantos anos, seguido por seu filho Bruno (cacique herdeiro), já com uns sessenta anos e bote força. O Seu Inácio fora recebido por Getulio Vargas e ganhou não só uma terra demarcada como também ferramentas para lavoura, várias vezes. Segundo os maldosos, mas não muito, venderam ou trocaram por roupas, cachaça, armas, motores de popa e por aí a fora. Mas eles eram Caxinauá, descendentes de incas, dedução minha, pois cultuavam o uso do “cipó”, nome dado por eles mesmos a um chá.
O Cipó era uma combinação de uma folha colhida, por eles, num determinado dia do ano, com uma raiz, também colhida num determinado dia do ano. Aquilo era armazenado e, de tempo em tempo, era feita a cerimônia de tomar o cipó, de tomar o chá. Em Feijó, haviam muitos brancos, autoridades, que iam para a Aldeia tomar cipó com os índios. Segundo seu Inácio, contado em meu acampamento, que na verdade fora ali pedir cinquenta litros de óleo diesel, a tradição remonta a seus ancestrais antes de contato com brancos, onde eles usavam o tal chá. Se algum guerreiro de uma tribo inimiga assassinava um elemento de sua tribo e entre elas mantinham-se “centenários” anos de guerras, a tribo se reunia, aos cuidados do pajé, e tomavam o cipó. As visões alucinativas permitiam que se visse quem cometeu o assassinato e de qual tribo era. Os brancos, com familiares longes, tomavam o cipó para viajar espiritualmente e rever elementos da família. Fui convidado algumas vezes, mas nunca tive coragem. A cerimônia era mais ou menos assim. Todos se reuniam num galpão, com gente sentada em bancos ou no chão para onde o pajé levava a panela, com a infusão. Começava uma cantoria indígena, puxada pelo pajé. Em determinado momento, era distribuído um copo de vidro tipo americano com o chá. Segundo o pessoal, era muito amargo e não raro provocava vomitório imediato. Quem vomitasse repetia a beberagem. As mulheres não participavam do ritual. Bom, depois de uns quinze, vinte minutos, começava a fazer efeito. A pessoa que estava calma, serena e de bem com a vida, via coisas lindas, cidades iluminadas, pessoas amigas antigas, pais, mães, mesmo mortos. Via passado e futuro. Era uma viagem em que a pessoa ficava vendo tudo: banco, buraco, fogo, água, cachorro e junto via também o paraíso. Os que estivessem preocupados, perturbados e nervosos, viam cobra grande, jacarés tentando engoli-lo, latido de cachorro, mas saído de um bicho parecido com um jacaré... Era um constante pesadelo. O pajé não bebia o cipó. Ele continuava cantando e cuidando daqueles que, por motivo de alucinação tenebrosa, queriam correr, se ferir ou fugir. Depois de umas seis horas, o efeito passava. Numa manhã, quando eu ia para o acampamento, num sábado encontrei um filho do vizinho, parado no meio da rua, já próximo de sua casa. O efeito acabava de dar uma recidiva e ele estava tocando violão. Quando perguntei o que fazia, ele me reconheceu e disse que, das cordas do violão, saiam chispas de fogo coloridas e não som. Levei-o até sua casa e o deixei no portão, mas ele continuava a tocar.
Mas o perigo era com o meu pessoal. Numa segunda-feira, um dos operadores, conhecido por Acreano, saiu de cima do trator funcionando e saiu correndo, se batendo com o chapéu. Depois correu e subiu na máquina e a estancou, mas continuou a se bater com o chapéu e com os braços. Fui até ele e perguntei o que acontecia. Ele respondeu que um bando de borboletas gigantes o estavam atacando. Perguntei se tinha tomado cipó na noite anterior e ele me confirmou isso, mas que à meia-noite o efeito já tinha passado. Mandei que ele passasse o trator a outro operador e ele terminou aquele dia auxiliando a mecânica.
Esse mesmo ritual foi copiado pelos brancos, sempre tem um esperto, fundaram uma religião que tem alguns nomes: ayahuasca (“vinho das almas”, em quíchua, na língua dos incas peruanos); Santo Dai-me; União dos Vegetais (UDV) e outros. Mas as de maiores influências nos brancos são: Santo Dai-me e União dos Vegetais. Cada uma se apresenta como sendo a mais importante. Todas elas conseguiram cooptar simpatizantes entre os ditos intelectuais, atores, cantores, pintores, escritores e outros. Hoje há filiais pelo mundo inteiro dessas práticas, agora, religiosas.
O “Santo Daime” veio via Acre. Não há uma data precisa do seu nascimento. Foi fundada por um cidadão, negro, que se diz neto de escravos e que veio para o então Território do Acre e se instalou em Brasileia, Cidade na fronteira com a Bolívia. De Brasileia facilmente se chega a Assis Brasil, também Acre e daí ao Peru. Lá na Bolívia, até hoje a maioria dos seringueiros da Bolívia são brasileiros, o senhor Raimundo Irineu Serra, nascido em São Vicente Ferret, no Estado do Maranhão em 1892, aprendeu a usar o tal chá, com o nome de ayahuasca e que, em Feijó, a indiada chama até hoje de cipó. Passou a chamar Santo Daime porque durante a abertura da cerimônia são repetidas as palavras: “Dai-me luz, Dai-me força e Dai-me amor!”. Essa religião, via Acre, tem forte influencia católica porque o tal fundador, conhecido hoje por Mestre Irineu, falecido em 1971, diz ter recebido essa Doutrina através de uma aparição de Nossa Senhora da Conceição, em uma das primeiras vezes que tomou a bebida em Brasileia.
A outra religião, que está nessa disputa de ser a primeira e principal, é a UDV - União dos Vegetais. Foi fundada por José Gabriel da Costa, nascido a 10 de fevereiro de 1922, na localidade Coração de Maria - Município de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Foi para Salvador e depois se alistou como Soldado da Borracha e foi dar com os costados em Manaus e depois em Porto Velho, naquela época capital do Território Federal do Guaporé onde trabalhou como enfermeiro em hospital público e conheceu Raimunda Ferreira, dona Pequenina, sua esposa. Como Rondônia era muito ruim de seringal, ele acabou se deslocando para os seringais bolivianos, a partir de Guajará-Mirim. Foi num destes seringais que entrou em contato com a bebida, certamente por meio de alguns índios e ou seus descendentes, experimentando ali o vegetal, pelas primeiras vezes. Ainda em território boliviano, ao lado de Dona Pequenina, Mestre Gabriel criou, a 22 de julho de 1961, a União do Vegetal. Esta é a vertente via Rondônia.
Quando servi em Porto Velho, e até hoje tem, perto do quartel, uma comunidade dessa UDV, tive oportunidade de conhecer frequentadores de lá, funcionários do Batalhão, oriundos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré que contaram alguma coisa assim: o senhor Mestre Gabriel, na verdade, foi para a Bolívia corrido da polícia de Porto Velho. Essa religião tem uma mística ligada às ordens esotéricas com sinais de reconhecimentos, passados aos mestres. Eles se dizem discretos e não secretos. Não fazem propaganda da religião e nem vendem o chá ou os vegetais como a outra faz para que seus adeptos levem para outros estados ou países.
O Santo Daime tem sua Meca. E o local é conhecido como Céus de Mapiá. Fica à margem de um Igarapé, afluente do Rio Purus e desemboca perto da Cidade, do Amazonas, de Boca do Acre, com o nome de Igarapé Mapiá. Foi fundada uma comunidade como se fosse uma das vilas hippies, da década de sessenta, com presença de estrangeiros, políticos, e todos os de sufixo “ores”: escritores, atores, cantores, pintores... Ali, além da prática dos ritos, elas também cultivam as plantas e comercializam o material para o mundo todo. É uma fonte de renda para a comunidade.
Os vegetais que compõe o chá, que os índios de Feijó chamavam de cipó, são: a Chacrona (Psychotria viridis), um arbusto que fornecesse as folhas; o cipó Jagube (Banisteriopsis caapi). A composição é descrita como alucinógeno ou enteógeno (que proporcionam a sensação de contato com o divino). O alcalóide dimetiltriptamina (DMT) presente nas folhas da chacrona aumenta os níveis de serotonina do cérebro, proporcionando o êxtase e, segundo os usuários, a cura, o autoconhecimento, o encontro com Deus, isto é, produz uma expansão de consciência responsável pela experiência de contato com a divindade interior, presente no próprio homem. Quando misturadas e ingeridas, as plantas atuam no sistema nervoso central, provocando efeitos comparáveis aos do cogumelo e do cacto peiote (Lophophora williamsiii), popularizado pelo escritor Carlos Castañeda em obras como “A Erva do Diabo”. A Chacrona é também conhecida por Folha Rainha.
Mas a Polícia Federal de Rio Branco tinha um farto “dossiê” sobre o assunto. Não ficou provado que provocava dependência Química ou psicológica. Entretanto, havia uma comunidade que servia, antes da cerimônia, um chá dessa “erva rainha”, que a polícia afirmava não ser a Chacrona, mas sim maconha. E era servido indiscriminadamente até para crianças. Havia uma estória que, caso a criança fizesse peraltice, a mãe ameaçava dizendo: “hoje você não tomará chá” - e a criança se derretia em choro pelo castigo de não tomá-lo nesse dia. O chá viciava. A ação do cipó, como alucinógeno, é tão violenta que ilude o cérebro. O caso do meu vizinho em Feijó, por exemplo, estava havendo uma completa inversão em seu cérebro. Aquilo que era sonoro, o cérebro estava interpretando como visual. Por isso ele via o som e não ouvia o som.
Assim, tentei explicar algo sobre o cipó, porque sempre há curiosidade sobre ele e que às vezes atrapalhava o bom andamento do meu serviço. Ainda existem tribos que fazem uso desse chá do cipó em seus rituais de cura, cerimônia de iniciação e cerimônia de batismo, por assim dizer feito para crianças recém-nascidas. (MACEDO)
-  Ipadu
Ainda em Maçarabi, eu havia perguntado a Dona Isabel se ainda hoje se fazia uso do Ipadu e se ela conhecia a técnica de preparação do “psicoativo”. A gentil senhora afirmou que o uso do Ipadu foi proibido pelos missionários durante muito tempo e que, apenas nos últimos anos, o seu emprego, em cerimoniais, vem sendo tolerado pelos religiosos, na região do Uaupés.
Na verdade, o consumo do Ipadu já foi uma tradição cultural de profundo caráter místico embora, na atualidade, tenha perdido muito de seu aspecto religioso. Os nobres e religiosos Quíchua (Incas) usavam-no em virtude de suas propriedades “psicoativas”. Os espanhóis estimularam o seu consumo, tendo em vista que a coca diminuía o apetite e aumentava a capacidade de trabalho dos escravos nativos, disseminando o seu uso por toda a cordilheira. Desta maneira, a coca foi perdendo, com o passar dos anos, seu caráter religioso e mágico.
-  Cultivo e preparação da Coca
Os índios, há séculos, cultivam pequenas roças de Ipadu para o consumo próprio. As folhas são colhidas e secas em fornos e, depois de maceradas, seu pó misturado com cinzas de folhas secas de Embaúba (Cecropria sp.). O produto final é transformado numa pasta e mascado, pelos adultos, que se sentam em círculos. Quando começam a sentir o efeito da droga, os índios discutem sobre diversos problemas enfrentados pela comunidade com a esperança de poder resolvê-los com a ajuda dos espíritos invocados com a ingestão do Ipadu.

Embaúba
-  Relatos Pretéritos - Ipadu (Coca)
    João Daniel (1752)

Padu é um cipó do Amazonas ainda pouco vulgar, e conhecido, mas na verdade digno de muita estimação, e pode correr parelhas com o famigerado ginseng da China porque como me afirmaram os experimentados têm todos ou quase todos os mesmos efeitos de refazer as forças, suprir as faltas de sono, matar a fome, e sede. (...) Descobriu-se no governo de São José do Rio Negro, donde alguns curiosos já o transplantaram para o governo do Grão-Pará, e depois de bem provadas as suas virtudes será talvez o melhor chá, e a mais regalada bebida, sendo certos tantos bons efeitos, que dele se contam. (DANIEL)
    Boanerges Lopes de Sousa (1928)

(...) Como se sabe, o “Ipadu” é um tônico excitante e poderoso feito de folhas de coca reduzido a pó finíssimo e a que costumam adicionar cinza de folha de Embaúba. Depois de torrar as folhas da coca - que chamam de “Ipadu” ou simplesmente “padu” - levam-nas a um pilão feito do “mirapiranga” - que é uma das melhores madeiras de lei - onde são reduzidas a pó. (...) O “padu” é muito cultivado entre os índios do Tiquié. De uira-poço, trouxemos umas amostras. Nosso botânico, Dr. Luetzelburg, também trouxe boas amostras. Observei que o “Ipadu” é usado só pelos adultos e de preferência pelos velhos que fazem a roda, passando, de um a um, o “hato” ou “patuga”, como os gaúchos o fazem com o chimarrão. O Dr. Rice conta que os índios costumam preparar uns comprimidos de “Ipadu”, adicionando-lhe farinha de tapioca para dar-lhe consistência. Viajam dois a três dias, alimentando-se exclusivamente com eles, sem sentir fome nem sono. (SOUSA)
    Altino Berthier Brasil (1988)

A coleta da Embaúba e do Ipadu é uma atividade executada apenas pelos homens. Aliás, tanto o preparo como o consumo da droga é um ato privado do sexo masculino. As mulheres não permanecem nem mesmo nas proximidades de um homem no momento em que ele se delicia em mascar o seu Ipadu. (...) Logo em uma manhã próxima, vi um índio chegar olhando para os lados, desconfiado. Ele acendeu o fogo. Ficou longo tempo de cócoras, soprando as brasas e constatando se, realmente, eu não o estava vigiando. O fogo se espalhou na lenha, e senti um cheiro de ferro derretido - era o forno que estava pronto, aquecido, na medida do necessário. Eu pensei que ele fosse fazer farinha, já que o forno que o índio preparava era o mesmo utilizado, uns dias antes, pelas mulheres para aquele trabalho. Mas eu estava enganado. O assunto era mesmo Ipadu. (...) O índio, sempre desconfiado, colocou, então, uma boa quantidade de Ipadu sobre a chapa quente do forno redondo, e começou a mexer a folhagem com uma pá de madeira, que mais parecia um remo. Ele estava torrando as folhas, de modo que elas queimassem por igual. A operação durou menos de meia hora. As folhas não perderam de todo sua coloração verde, mas ficaram duras e quebradiças. O cheiro era forte, mas não me fez mal. Quando o índio notou que a operação tinha atingido o ponto desejado e as folhas pareciam ter perdido toda a sua umidade, elas foram transferidas para um pilão rústico, feito de tronco de árvore, mas que estava limpo e à disposição do preparador.
Ali, um outro índio começou a socar aquelas folhas. Quando ele levantava o macete, eu notava que as folhas iam se transformando em pó verde, que era recolhido com cuidado e depositado em uma cuia. Em outro recipiente, as folhas de Embaúba eram rasgadas de tal forma a separá-las completamente dos talos, e incineradas. Este trabalho era feito por um terceiro índio. Todos os participantes conservavam-se quietos, atentos, com a atenção totalmente concentrada em seu trabalho. A Embaúba foi, então, transformada em cinza, bem triturada que tinha sido. Depois aprendi que aquela cinza tinha o nome de “patu-mõé”, cuja tradução corresponde, mais ou menos, a “tempero do Ipadu”. A cinza esbranquiçada foi levada à cuia onde tinha sido depositado o Ipadu. Tudo foi misturado lentamente, com um pauzinho. Daí, a mistura daqueles dois componentes - Ipadu e Embaúba triturados - foi colocada dentro de uma bolsa de pano especial, que os índios chamam de “patu pari-sutire” e que quer dizer “invólucro de bater Ipadu”.
A sacola, uma vez cheia, foi amarrada fortemente na ponta de uma vara. O índio tomou o “patu pari-sutire” na mão direita. Agitou a vara no ar, não sei se para esfriar, ou se para algum ritual específico. Notei, então, a sacola desaparecer para dentro de outro pilão, e o índio, meio abaixado, ficou a segurar na extremidade livre da vara. Bateu vigorosamente o conjunto de encontro ao fundo e às paredes do pilão. De quando em quando ele puxava a vara, examinava a sacola e continuava o trabalho. Quando o homem notou que o pó tinha ficado fino a ponto de passar através do pano da sacola, esta foi murchando, até esvaziar-se completamente. O índio recolheu, então, do fundo do pilão, o produto elaborado.
Estava pronto o Ipadu. O pó foi transferido cuidadosamente para uma gamela e distribuído aos chefes de família que só neste momento apareceram. (...)
Os índios simplesmente tomam um punhado do pó e metem na boca. (...) Em contato com a saliva, o Ipadu se transforma numa pasta, a qual é empurrada, devagar, para o canto da boca, com o auxílio da língua. Fica uma bola armazenada na parede interna da bochecha. Aos poucos, vai se dissolvendo. O homem cuida para que isso seja feito o mais lentamente possível.
Durante a “comilança”, o índio fica com a bochecha estufada, como se estivesse com dor de dentes. Os olhos injetados.
(...) A inocência do consumo do Ipadu por parte dos índios; as ligações daquele ato com suas origens culturais; a necessidade daquela gente em vencer carências alimentares, as doenças e a solidão, - tudo isso me deu um sentimento de compreensão, e eu só poderia absolver o selvagem. Entendi o seu ritual e mais do que isso, dei por absurda qualquer analogia entre o branco e o selvagem, no que tange ao exercício daquele hábito. A doce alma do índio nada tem a ver com a falta de escrúpulos e a alma negra do dito “homem civilizado”. (BRASIL - 1989)
- Paricá
Paricá ou Epena é o nome dado pelos aborígines da Amazônia ao rapé feito com as cascas de várias espécies de árvores. Os Yanomâmis extraem a resina da casca da Virola para preparar um rapé usado em rituais religiosos. Prepara-se o rapé retirando-se as cascas e raízes exteriores e interiores da árvore e triturando-as. O material é espremido e o líquido das raspas é cozido até engrossar. A resina é posta a secar e, eventualmente, se misturam extratos de outras plantas a título de tempero.

Piptadenia peregrina
As espécies mais comuns utilizadas como alucinógenos naturais são as sementes moídas das espécies Anadenanthera peregrina (Piptadenia peregrina) e Anadenanthera columbrina (que possuem bufotenina) ou a casca pulverizada de Virola (que possui DMT). A partir destas plantas são obtidos preparados chamados de Paricá. (...)
Os rapés preparados com DMT são utilizados por diversos grupos indígenas amazônicos e do Orinoco. Como são inativos por via oral, é necessário que sejam aspirados ou às vezes soprados por um parceiro através de um longo tubo para dentro das narinas. O Paricá também é usado em clisteres anais. Antes de inalar o Paricá, o povo se reúne e canta para invocar os espíritos, com os quais se comunicarão durante a cerimônia. Durante o uso do Paricá, pode-se notar, inicialmente, um tremor dos músculos do braço e expressões do rosto contorcidas. Passada esta fase, os xamãs começam a gritar agressivamente invocando os espíritos. Essa agitação dura em média de trinta minutos a uma hora. Em seguida, os xamãs caem deitados em transe e neste momento são contemplados com visões que trarão sabedoria para seu povo.
Diversas comunidades indígenas com características culturais e linguísticas distintas utilizam o Paricá para o mesmo fim, porém com interpretações diferentes. Para os tarianas do Rio Uaupés, o Paricá provocava sonhos indicadores do futuro e nestes a mãe do sonho Kerpimanha orientava suas vidas e também ensinava sobre as relações sexuais. (Por Sabrina T. Martinez, Márcia R. Almeida, Ângelo C. Pinto)
-  Relatos Pretéritos - Paricá
    João Daniel (1752)
Paricá, é como o chamam outros pau angico, é a última espécie ínfima de paus pintados, e por isso, e porque também é muito sólido, e fino, é também precioso, e pau real, mas a respeito dos nomeados é mais grosseirão, e rústico. Tem suas máculas, que o fazem ser estimado, e buscado para várias obras, especialmente para grades grandes, e pequenas de igrejas, e o não ser mais estimado é pela sua muita abundância; e fora de ser boa madeira e pau precioso, tem muitos outros préstimos. Porque as suas cinzas, que são fortes como a cal, servem nos curtumes de solas e de toda a casta de courama, como de onças, veados e antas para descabelar o cabelo, e para engrossar, ou incorporar os couros. A casca do mesmo pau pisada ou picada para melhor largar a sua fortaleza, serve para se fazer a golda, com que aperfeiçoam os tais couros em forma que as solas parecem de atanado; e as mais finas ficam tão perfeitas como veludo, de sorte que muitos se enganam cuidando ser veludo os couros dos veados curtidos, e deles usam muitos para vestes, calções, e outras obras, que se equivocam com o veludo, especialmente sendo tintos de preto, e o vencem na duração.
Da sua fruta, que é miúda, torrada e moída, usam todos os índios por tabaco especial, que dizem, os faz végetos (robustos), fortes, e vigorosos, e por isso o preferem ao tabaco ordinário, de que ordinariamente não usam. Dão estas árvores do Paricá a goma-arábica tão perfeita, que me afirmou um missionário de muita experiência que não só a tinha visto, e mostrado a outros curiosos, mas que também usava dela, e que a há em muita quantidade, e de duas cores, branca e loura, sinal de que há duas espécies de pau Paricá. Ao tabaco que fazem de sua frutinha chamam também Paricá, não sei se tomando o nome original da árvore, ou se a árvore lhe dá o seu nome na língua do país, porque na língua portuguesa o chamam de angico. (DANIEL)
   Henry Walter Bates (1850)
Há um curioso costume dos Muras que merece ser registrado antes que eu termine esta digressão. Trata-se da prática de cheirar um pó chamado Paricá, o que é feito de acordo com um ritual peculiar. Esse pó, altamente estimulante, é preparado com as sementes de uma espécie de ingá, planta pertencente à ordem das leguminosas. As sementes são postas para secar ao sol, depois socadas num pilão de madeira e guardadas em canudos de bambu. Quando elas estão maduras e chega a época do preparo do pó, os Muras fazem uma espécie de festival de caráter semirreligioso, que os brasileiros chamam de quarentena e dura vários dias, durante o qual ficam permanentemente embriagados. Começam tomando grande quantidade de caiçuma e caxiri, bebidas feitas com mandioca e vários tipos de frutas fermentadas; contudo, preferem a cachaça quando conseguem obtê-la. Em pouco tempo eles chegam a um estado de semitorpor, quando então começam a cheirar o Paricá. Com esse fim, eles se separam formando pares, e os componentes de cada dupla, servindo-se de um canudo contendo uma certa quantidade do pó, sopra-o com toda a força dentro das narinas do companheiro, depois de fazer uma encenação e murmurar uma série de palavras ininteligíveis. O efeito que isso causa nos selvagens, habitualmente apáticos e taciturnos, é extraordinário. Eles se tornam imediatamente muito falantes e começam a cantar, gritar e pular em louca excitação. Logo vem uma reação contrária, porém, e é preciso então mais bebida para tirá-los do seu estupor; e assim eles continuam vários dias. (...) Os primeiros viajantes a percorrerem a região descobriram que o Paricá já era usado pelos Omáguas, um ramo dos Tupis que habitou outrora a região do Alto Amazonas, distante mais de mil quilômetros das terras dos Mauhés e dos Muras. (BATES)
    Richard Spruce (1854)
A primeira vez que colhi espécimes de Paricá foi em 1850, perto de Santarém, na confluência do Tapajós com o Amazonas, onde a planta parecia ser cultivada. No ano seguinte, vim colhê-la à beira do riacho Jauauari, afluente do Rio Negro, em estado indubitavelmente nativo. Mas não vi o pó preparado a partir de sementes e sendo usado senão em 1854, nas cataratas do Orinoco. Uma horda errante de Guaíbos provenientes do Rio Meta estava acampada nas savanas de Maypures e, quando os visitei, vi um velho que estava moendo sementes de “niopo”. Ele me vendeu o artefato com o qual se fabrica o pó e os instrumentos com que ele é inalado, os quais agora se encontram entre os artigos expostos no Museu de artigos Vegetais em Kew. (...)
Primeiro, as sementes são assadas, e em seguida reduzidas a pó numa tigela rasa de madeira, quase do tamanho de um vidro de relógio de parede, porém mais comprida do que larga, medindo 23,5 por 20,3 centímetros e dotada de um cabo largo que permite mantê-la presa entre joelhos. O índio segura o cabo com a mão esquerda, e com a direita empunha um pilãozinho feito de pau-d’arco (Teecomae, sp), e assim vai triturando as sementes. O pó resultante desse processo é guardado num estojo feito com um pedaço do fêmur de onça, lacrado numa das extremidades com piche. Esse estojinho é carregado como se fosse um colar, todo revestido de rizomas odoríferos extraídos de uma Ciperácea (Kyllingia odorata). É assim que se faz tanto no Amazonas como no Orinoco, pois os índios acreditam que esses rizomas sejam poderoso antídoto contra mau-olhado e inveja.
Para inalar o rapé de “niopo”, eles fabricam com um osso tirado da perna de uma garça (ou de outra ave pernalta), um pequeno instrumento parecido com um diapasão, isso é, em formato de Y, aberto em baixo e tapado nas pontas de cima com pequenos botões pretos perfurados, feitos do endocarpo de uma certa palmeira. O tubo de baixo é introduzido no estojo de “niopo”, e os braços com tampas perfuradas nas narinas do usuário, que desse modo inala aquele rapé de imediato efeito narcótico estimulante, mormente quando se trata de pessoa não habituada ao seu uso. O efeito estimulante dura poucos minutos, seguindo-se um efeito calmante mais duradouro.
Os Guaíbos levavam, pendurados ao pescoço, além do estojinho de “niopo”, um pedaço da “caapi” pois, enquanto moíam o “niopo”, costumavam arrancar um naco da “caapi” com os dentes, mascando-o com evidente satisfação. “Com uma mascada de caapi e uma pitada de niopo, que sensação de bem-estar! A gente não sente fome, nem sede, nem cansaço!”- disse-me um deles em seu espanhol canhestro. Desse indíviduo escutei que o “caapi” e o “niopo” eram usados em todas as tribos dos afluentes do alto Orinoco, ou seja, do Guaviare, do Vichada, do Meta, do Sipapo, etc.
Tempos atrás, em 1852, eu havia comprado, de um comerciante de Manaus, um dispositivo para inalar “niopo”, um tanto semelhante ao utilizado pelos Guaíbos. O comerciante o tinha trazido do Rio Purus, de uma tribo de índios Catauixis. Na ocasião, fiz a seguinte anotação em meu Diário:
Os Catauixis usam o rapé de “niopo” como estimulante narcótico precisamente como os Guaíbos da Venezuela, os Muras e outros índios do Amazonas, onde o pó é chamado de “Paricá”. Para absorvê-lo por via nasal, prepara-se um tubo curvo com um tarso de uma ave cortado ao meio, sendo as partes amarradas entre si de maneira a formar um ângulo que deixe a extremidade na boca e a outra na altura das narinas. Uma porção do rapé é colocada no tubo e soprada, entrando nas narinas. Esse mesmo princípio é utilizado para a confecção de aparelhos de lavagem intestinal, só que se utilizando o tarso de uma ave bem maior, o tuiuiu (Mycteria americana). O efeito da inalação do “Paricá” é o de induzir rapidamente uma espécie de intoxicação, cujos sintomas lembram, segundo me disseram, os produzidos pelo fungo “Amanita muscaria”. Tomado por via oral, funciona como purgante violento, dependendo da dose. Quando os Catauixis estão prestes a partir para a caça, tomam uma pequena dose de “Paricá” e ministram outra em seu cão, e o efeito em ambos, segundo dizem, é o de clarear a visão e torná-los mais atilados e alertas...
Em seu livro “O Vale das Amazonas”, Herndon nos oferece um relato de emprego de “Paricá” entre os índios Mundurucus do Rio Tapajós, repetindo o que lhe fora contado por um inteligente francês chamado Maugin, que costumava comerciar com esses índios. Segundo esse relato, eles pulverizavam as sementes de Paricá, depois compactam o pó transformando-o numa massa dura, da qual extraem, de tempos em tempos, um pedaço que voltam a reduzir a pó, utilizando-o como rapé. Para inalar esse pó, utilizam os canos de duas penas da cauda da garça-real, formando um tubo duplo, e aplicam uma extremidade nas narinas e outra no pó, inspirando-o de uma só vez. Os efeitos dessa inalação foram assim relatados por Monsieur Maugin: O índio arregalou os olhos, contraiu os lábios e suas pernas começaram a tremer. Seu aspecto dava medo. Para não cair, teve de sentar-se. Era como se estivesse completamente embriagado. Todavia, passados uns cinco minutos, recobrou-se inteiramente e voltou ao seu estado normal. (SPRUCE)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

São Gabriel da Cachoeira

Localizado no extremo noroeste brasileiro, o terceiro maior Município do país, apresenta uma série infindável de problemas de ordem social frutos de uma infraestrutura precária que os governos teimam em ignorar. 

São Gabriel da Cachoeira é um Município situado no extremo noroeste do Estado do Amazonas, na Federação Brasileira. Dista 852 quilômetros da capital do estado, Manaus. Situa-se na bacia do Alto Rio Negro. Limita-se ao Norte com a Colômbia e a Venezuela; ao Sudeste com o Município de Santa Isabel do Rio Negro; ao Sul com o Japurá e com a Colômbia. Boa parte do seu território é abrangido pelo Parque Nacional do Pico da Neblina. O Município é considerado um ponto estratégico pelo país, e por essa razão a Cidade é classificada como área de segurança nacional, pela Lei Federal n° 5.449.


Foi o primeiro Município brasileiro a escolher prefeito e vice-prefeito indígenas já que, em outubro de 2008, foram eleitos Pedro Garcia, da etnia tariana, para prefeito; e André Baniwa, da etnia Baniwa, para vice-prefeito. No Município, nove de cada dez habitantes são comprovadamente indígenas. É o Município com maior número de indígenas no país.

O Município também é conhecido como Cabeça do Cachorro por seu território ter forma semelhante à da cabeça deste animal.
Em um caso único na Federação Brasileira, foram reconhecidas como línguas oficiais, ao lado do português, mais três idiomas que foram aprovados pela lei municipal 145/2002, de 22 de novembro de 2002: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa, línguas tradicionais faladas pela maioria dos habitantes, dos quais 85% são indígenas. A experiência de São Gabriel da Cachoeira com seu pluralismo linguístico já influencia outros Municípios do Estado do Amazonas e de outros Estados da Federação.
A economia do Município baseia-se na agricultura de subsistência, nomeadamente a mandioca, a banana, o abacaxi, o abacate, a batata-doce e o limão.
No Município encontra-se sediada atualmente a 2ª Brigada de Infantaria de Selva (2° Bda Inf Sl), o 5° Batalhão de Infantaria de Selva (5° BIS) e a 21ª Companhia de Engenharia de Construção (21ª Cia E Cnst) do Exército Brasileiro. (Fonte: Instituto de Cooperação Técnica Intermunicipal - ICOTI)
- Histórico
1761  -  Fundação do Povoado e do Forte de São Gabriel da Cachoeira pelo Capitão português José da Silva Delgado.
1833  -  Elevação do Povoado de São Gabriel da Cachoeira a sede de Freguesia com a mesma denominação, conforme Decreto do Governo do Pará de 25 de junho de 1833, ainda com território pertencente a Barcelos.
1891  -  Elevação da Freguesia de São Gabriel da Cachoeira a categoria de Vila, dando-se a criação do Município com sua área territorial desmembrada de Barcelos, conforme Lei Estadual n° 10, de 3 de setembro de 1891, recebendo nova denominação: São Gabriel do Rio Negro.
1893  -  Instalação da Vila de São Gabriel da Cachoeira do Rio Negro, em 13 de maio de 1893.
1908  -  Extinção do Forte São Gabriel, no local, conforme descrição de Dom Frederico Costa, “somente ruínas, pedras espalhadas, resto de muralhas e algumas peças de artilharia inutilizadas”.
1926  -  Criação da Comarca de São Gabriel conforme Lei n° 1.223, de 4 de janeiro de 1926.
1930  -  Extinção da Comarca e do Município de São Gabriel do Rio Negro que foi integrado a Moura juntamente com Barcelos, conforme Ato n° 45, de 28 de novembro de 1930.
1931  -  Com a restauração do Município de Barcelos, o território municipal de São Gabriel do Rio Negro foi desmembrado de Moura e anexado novamente a Barcelos, conforme Ato Estadual n° 33, de 14 de setembro de 1931.
1935  -  Restabelecimento definitivo do Município de São Gabriel da Cachoeira readquirindo sua autonomia com a reconstitucionalização do Estado do Amazonas.
1936  -  Restabelecimento da Comarca de São Gabriel do Rio Negro, conforme Lei n° 92, de 31 de julho de 1936 que se reinstalou em 14 de novembro do mesmo ano.
1938  -  Elevação a categoria de Cidade conforme Decreto n° 68 de 31 de março de 1938.
1941  -  Extinção pela segunda vez, da Comarca de São Gabriel de acordo com Decreto n° 663, de 19 de dezembro de 1941, passando a Termo de Barcelos.
1943  -  O Município recebeu nova denominação: Uaupés de acordo com a Lei Estadual n° 226, de 24 de dezembro de 1952.
1952  -  Restabelecimento definitivo da Comarca de Uaupés de acordo coma Lei Estadual n° 226, de 24 de dezembro de 1952.
1953  -  Reinstalação da Comarca de Uaupés, em 7 de abril de 1953.
1966  -  O Município recebeu nova denominação: São Gabriel da Cachoeira, conforme Lei Estadual n° 526, de 6 de dezembro de 1966.
1968  -  Conforme Lei Federal n° 5.449, o Município de São Gabriel da Cachoeira foi enquadrado como “Área de Segurança Nacional”.
1990  -  Aprovação da Lei Orgânica do Município de São Gabriel da Cachoeira, em 5 de abril de 1990.
1991  -  Comemoração dos 100 anos de emancipação política do Município de São Gabriel da Cachoeira.
2007  -  Comemoração dos 116 anos de emancipação política do Município e 246 anos de criação do então Povoado de São Gabriel da Cachoeira.
- Terras Indígenas
As Terras Indígenas abrangem cerca de 80% do território municipal. A Terra Indígena Balaio, cujo relatório antropológico foi publicado no Diário Oficial da União, sobrepõe-se ao Parque Nacional do Pico da Neblina sob responsabilidade da Fundação Chico Mendes.
São Gabriel da Cachoeira é o terceiro maior Município do país: 109.185 km². Sua área é maior do que os Estados de Pernambuco (98.311,6 km²), Santa Catarina (95.346,2 km²), Paraíba (56.439,8 km²), Espírito Santo (46.077,5 km²), Rio de janeiro (43.910 km²), Alagoas (27.767,6 km²) e Sergipe (21.910,5 km²). (Fonte: ICOTI)
- Demografia
Durante a década de 1990, a taxa geométrica de crescimento anual da população de São Gabriel da Cachoeira foi de aproximadamente 4%. Em 2009, essa população é estimada em 41.885 habitantes, segundo o censo demográfico do IBGE. A maior parte desses habitantes é constituída por várias etnias indígenas como, por exemplo, os Arapaço, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Karapanã, Kubeo, Kuripako, Makuna, Miriti-tapuya, Nadob, Pira-tapuya, Siriano, Tariano, Tukano, Tuyuka, Wanana, Werekena e Yanomâmi. São Gabriel da Cachoeira é o Município com maior concentração de diferentes etnias indígenas do país. As diversas comunidades indígenas distribuem-se nos bairros da sede municipal, no núcleo urbano de Iauaretê e ao longo dos Rios que cortam o Município como, o Uaupés, Içana, Xié, Tiquié e Negro. São mais de 400 pequenas comunidades que vivem em Terras Indígenas. (Fonte: ICOTI)
- Cultura e Sociedade
A Cidade possui, em sua maioria, festividades religiosas que são promovidas ao longo do ano, como a Semana Santa, procissão, festa do padroeiro do Município (em 29 de setembro) e, até mesmo, nas comunidades indígenas coordenada e dirigida pelos devotos. Existem ainda festividades folclóricas de grande significado popular como o Carnaval, festas juninas, e o maior evento cultural é o Festival Cultural das Tribos Indígenas do Alto Rio Negro - FESTRIBAL.
Criada através do Decreto Lei N° 024 de 13 de maio de 1996, com objetivo de valorizar, desenvolver, difundir e homenagear os hábitos culturais indígenas da região, está instituída definitivamente no calendário de festividade do Município. (Fonte: ICOTI)
-  Relatos Pretéritos - São Gabriel
       José Monteiro de Noronha (1768)
Da povoação de Nazaré navega-se, por entre os mesmos cachopos, até a Fortaleza de S. Gabriel situada na margem setentrional do Rio, sobre a Cachoeira grande chamada Crocobi e superior à povoação de Nossa Senhora de Nazaré légua e meia. A sua latitude austral é de 44’31”45’’’1½. No mesmo sítio da Fortaleza há uma povoação de índios da nação Baré. Entre esta e a de Nossa Senhora de Nazaré só há, na margem do Sul, um riacho em que habitou o principal Curiana e, na margem do norte, o riacho Ionutá e mais outro de nome desconhecido. (NORONHA)
       Alexandre Rodrigues Ferreira (1783)
Antes de São Gabriel e na distância de um quarto de hora de viagem para baixo da Praia-Grande, está situada a povoação de Nossa Senhora de Nazaré de Curiana sobre a margem setentrional. Constava de nove casas ao longo dela: dirigia os índios, que aponta a divisão sétima, o soldado José Severino, cultivavam maniba e o anil: é povoação tão antiga como a fortificação, que algum dia se fez, e existiu na ilha de São Gabriel, a qual lhe fica fronteira: fundou-a o capitão José da Silva Delgado no ano 1761, que foi quando erigiu uma casa forte, para guarnição da referida ilha. Em 1784 desceram os principais Miguel da Silva e Miguel de Menezes, com o soldado Ponciano José de Lima, 19 almas do gentio Passé, das quais falecerão dez. Vencida a enseada de Curiana (26 de setembro de 1783), segue-se montar o salto da primeira cachoeira do Crocobi, que existe na chamada Praia Grande, situada na margem do norte, e acima da referida ilha de São Gabriel. Nela principia a povoação deste nome, e nela desembarcam os que se não querem arriscar na cachoeira, havendo estrada por terra até o centro da povoação. (...) Dali por diante é tanta a sua elevação que, para montar-se ao cimo do povoado, onde estão situadas a igreja Matriz, a fortaleza, e os quartéis da residência do comandante, e o da tropa da guarnição, é forçoso subir por uma escada de madeira, a qual tem por toda a sua altura 16 degraus sensivelmente distantes um do outro. (FERREIRA)
       Antônio Ladislau Monteiro Baena (1839)
Lugar subjacente ao círculo equinocial na longitude 309°57’ sobre a aba de um morro alcantilado da margem esquerda do Rio Negro 199 léguas acima da foz. Formam o número de seus moradores três brancos, dez mamelucos, oito mamelucas, 53 índios, 68 índias e dois mestiços livres. É quanto aparece de uma povoação longeva, que se compunha de duas compridas ruas, das quais uma terminava na praia grande. A boa igreja, que os Missionários Carmelitas inauguraram a São Gabriel, está assaltada de ruínas que tendem a fazê-la baquear. (...). Abaixo do mesmo forte, defronte da praia grande, demoram a décima e undécima cachoeira, das quais a de maior corpulência chama-se Crocobi, e vulgarmente do Bento. (BAENA)
      Alfred Russel Wallace (1850)
Nas primeiras horas da tarde (do dia 21 de outubro de 1850), alcançamos o povoado de São Gabriel, junto às quedas principais. Nesse trecho, o Rio torna-se mais estreito, possuindo no meio uma ilha que o divide em dois canais. O fundo do leito é formado por uma extensa laje inclinada, sobre a qual despenham-se as águas com tremendo ímpeto. Logo abaixo da corredeira, elas parecem ferventes, sucedendo-se, um após os outros, formidáveis e perigosos cachões (cachoeiras altas e volumosas). Mais abaixo, surgem vórtices e redemoinhos igualmente perigosos. Para passar por tais obstáculos, era necessário descarregar a canoa quase completamente, e depois puxá-la pelo Rio acima, o mais próximo possível da margem, por entre as águas espumejantes. Tão logo isso foi feito, o Senhor Lima e eu nos arrumamos e subimos a encosta, rumo à casa do comandante, sem cuja permissão não seria possível passar diante do forte.
O comandante era amigo do Senhor Lima. Eu trazia para ele uma carta de apresentação. Tratava-se de um senhor educado, que nos convidou para tomar café, depois do que ficamos palestrando sobre as novidades do Rio e da Cidade durante uma ou duas horas. Quando nos despedimos, fez-nos prometer que voltaríamos a vê-lo pela manhã, antes de seguirmos viagem, a fim de que pudéssemos tomar um café reforçado. Dali seguimos para a casa de um velho comerciante português que eu conhecera em Barra. Ali jantamos e pernoitamos.
Na manhã seguinte, depois de tomarmos café com o comandante, reiniciamos a viagem. Acima de São Gabriel, os rápidos tornam-se ainda mais numerosos do que antes. (WALLACE)
       Richard Spruce (1852)
Apesar de ser São Gabriel (julho de 1852) uma boa estação de coleta em virtude de sua interessante vegetação, suas desvantagens eram tão consideráveis que, se eu tivesse começado aqui minhas coleções sul-americanas, talvez houvesse desanimado de prosseguir com tal trabalho. (...) Além desses aborrecimentos, tenho enfrentado um outro aqui em São Gabriel, com o qual até então ainda não me havia defrontado. Refiro-me aos moradores. Quase toda a população local se restringe aos soldados da guarnição. Pois bem: sabe como é que no Brasil se recrutam os soldados? Vou contar. Quando alguém comete um crime punido com a pena de degredo, é recrutado e despachado para um dos postos de fronteira. Assim, dos catorze homens que compõem a guarnição de São Gabriel, não há um que não tenha cometido algum crime grave, e pelo menos a metade é de assassinos. Imagine com que sensação de segurança eu deixo minha casa e fico fora alguns dias!... Durante minha ausência, já por duas vezes ela foi assaltada, e dois galões de aguardente, além de frascos contendo melado, vinagre e outros mantimentos, simplesmente desapareceram. (...)
São Gabriel é infestada por vampiros, e minha casa, que tem um velho teto já meio arruinado, também dispõe de uma boa cota desses animais. Quando entrei nela, o chão estava cheio de manchas de sangue ressecado, que tinha sido extraído de meus predecessores por esses chupa-sangues da meia-noite. Já na primeira noite meus dois homens foram atacados por eles. Um dos índios apareceu com feridas nas pontas dos quatro dedos, sendo três de um dos pés. (...) Suas vítimas preferenciais são as crianças. (...)
Depois que aqui cheguei, ocorreu fato curioso com a família que mora na casa ao lado. As crianças de lá eram atormentadas pelos morcegos-vampiros, exibindo no corpo, a cada manhã, novas marcas de mordidas. Certo dia, ao anoitecer, uma gata apareceu junto à porta de entrada, e ali mesmo demonstrou uma perícia especial na caça de morcegos. Na noite seguinte, atraíram-na para dentro de casa e deixaram que ela ficasse no quarto das crianças. Ela se postou diante das redes e, cada vez que um morcego ali pousava, ela imediatamente se arremessava sobre ele, dando cabo ao agressor. Pela manhã, viram que nenhuma das crianças tinha sido mordida, sendo a gata promovida ao posto fixo de guarda noturno da casa. (SPRUCE)
       Boanerges Lopes de Sousa (1928)
Às 15h40min chegamos a Camanaus, a grande cachoeira que é o primeiro degrau da garganta atravessada pelo Rio Negro e que se estende até Carapanã, 49 quilômetros acima. As lanchas encostaram no porto de cima, confronte a uma casa velha de telha em que reside Elpídeo Dias. Fizemos nosso bivaque à sombra de árvores, a jusante da cachoeira. Toda a carga foi baldeada para o porto a montante, cerca de 200 metros. Os batelões foram arrastados a espia, através da cachoeira, que as lanchas desbordaram pela esquerda, contornando a ilha que lhe fica fronteira. Só no dia seguinte às treze horas deixamos Camanaus. (...)
Às dezoito horas (12 de setembro de 1928), desembarcamos em São Gabriel, cuja casaria se descortina do longo estirão dominado pela colina em que está assente a Vila. Hospedamo-nos em uma casa em construção, da firma Gonçalves&Irmão, alojando-se os praças numa outra gentilmente oferecida pelo chefe da firma, Coronel Rodolfo.
No dia seguinte, pela manhã, recebemos a visita da Missão, representada pelos Padres Noé e Francisco, com os quais mantivemos animada palestra. Recebemos, também, a visita do Tenente de polícia, Oliveira, delegado local, responsável pela Prefeitura, na ausência do serventuário efetivo Major Pessoa. Retribuímos, à tarde, a visita dos missionários Salesianos, cujo estabelecimento visitamos demoradamente. Tivemos oportunidade de constatar que a missão cuida com devotamento da educação e da instrução dos meninos e das meninas indígenas, tratando-os com muito carinho e bondade. À instrução imprimem acentuado cunho patriótico, revelado no garbo com que os meninos e meninas cantaram o hino Nacional e o da Bandeira e a presteza com que responderam às perguntas que lhes fizemos sobre datas e fatos da história do Brasil. Notamos que o mesmo tratamento era dado às crianças indígenas como aos contribuintes da Vila São Gabriel e arredores. (...)
Visitamos as oficinas de carpintaria, sapataria e alfaiataria que ainda necessitam de melhor aparelhamento, sobretudo a primeira para atender às necessidades do estabelecimento e do preparo profissional dos alunos. Há, também uma pequena oficina de ferreiro ao lado da carpintaria. (...)
Visitamos a Santa Casa dirigida pelas irmãs de Maria Auxiliadora onde vimos uma bem montada farmácia de que é encarregada uma irmã, que acumula as funções de farmacêutica e de enfermeira. A sala de cirurgia dispõe de aparelhamento satisfatório, em quase sua totalidade doado pelo Dr. Hamilton Rice. (SOUSA)
Dr. Hamilton Rice: nascido em Boston, em 1875, Alexander Hamilton Rice era neto do primeiro prefeito republicano de Boston. Formado pelo Harvard College e pela Harvard Medical School, o doutor “Ham” Rice foi um dos fundadores do Institute for Geographical Exploration na Universidade Harvard, servindo como presidente da instituição de 1929 até sua extinção, em 1952. (...) O doutor Rice era um grande desbravador do alto Amazonas e organizou sete expedições à região. Eleanor acompanhou o marido em diversas delas. Ao contrário de Fawcett, Rice acreditava na mais recente tecnologia. Para a expedição de 1924/25, levou consigo um hidravião, o Eleanor II; adotou a tecnologia de rádio de ondas curtas e filmava suas atividades. As expedições que liderava contavam com especialistas em Botânica, Zoologia, Astronomia, Geografia e Medicina. (Kenneth Maxwell)
Ao lado da classe dos meninos, vimos uma sala de armas com cabides e fuzis para a instrução militar dos adolescentes. O Padre Noé, que é reservista, era o encarregado da respectiva instrução.
Subvencionada pelo Governo Federal, há uma Escola Agrícola e Pecuária, dirigida pelos Padres Salesianos e que funciona nos próprios terrenos da missão. (SOUSA)
       José Cândido de Melo Carvalho (1949)
Acabamos de chegar a Uaupés (01 de junho de 1949). São dez horas da manhã e chove torrencialmente, fazendo lembrar Noé e sua arca, pois até descer do batelão tivemos dificuldade, tal volume d’água no momento. (...)
Chegando a Uaupés, fomos levados para a Missão Salesiana, onde os Padres nos receberam muito cordialmente. Deram-me um quarto com cama, mesa, jarro e bacia de metal e uma bilha com água potável. Barbeei-me, coisa que não fazia há dias, indo a seguir “dar uma olhadela” na Missão. (...)
O nome Uaupés é proveniente de Uaupé ou Boapé, antigo tuxaua residente com seu grupo na foz do Rio desse, no local onde hoje se ergue a povoação de São Joaquim. Esse nome ficou conhecido desde a metade do século XVIII, quando ali chegaram os primeiros bandeirantes do Pará. Uaupé é também o nome de um pássaro, a jaçanã, em língua geral. (...)
Fiz curta visita a São Gabriel, hoje Uaupés. Comprei alguma coisa que me faltava, linha, agulhas, etc (...)
Em Uaupés, existem algumas cabeças de gado, sendo digna de nota a ausência absoluta do berne e o número diminuto de carrapatos. Por outro lado, é grande a quantidade de micuins existentes no capim da povoação. (...)
Subi até o Morro de São Gabriel. Descortina-se, a perder de vista, um belíssimo panorama. Existem, ali, grandes blocos de granito, com profundos sulcos verticais em seu contorno, o que os torna muito característicos. (...)
Serviço espetacular é a subida das embarcações na cachoeira de São Gabriel. Cada embarcação é amarrada com três ou quatro grossas cordas de piaçaba, de cerca de 100 a 200 metros de comprimento. A extremidade é atada em árvores das margens. Várias pessoas (geralmente 15 a 20, para motores de mais de oito cavalos) vão puxando a embarcação, enquanto o motor é utilizado no máximo. Nessa árdua tarefa são gastas várias horas antes que seja feita a atracação no porto de cima. (CARVALHO)
-  2ª Brigada de Infantaria de Selva

Na manhã do dia 22 de dezembro de 2009, apresentamo-nos ao General-de-Brigada Ivan Carlos Weber Rosas, atual Comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, e já nomeado para a chefia do Estado Maior do Comando Militar da Amazônia. O General nos levou até o local, de formatura da Brigada de onde se tem uma bela vista do Rio Negro. Neste local estavam em posição de destaque, apontados para o Rio, três dos dez canhões que guarneciam o Forte São Gabriel. A meu pedido, o General Rosas, gentilmente, enviou por e-mail, um pequeno relato de sua vivência na área que transcrevemos abaixo.
Caro Hiram
Estamos, eu e minha mulher, há um ano e oito meses aqui na região da Cabeça do Cachorro. Confesso que chegamos um pouco assustados em 22 de abril de 2008, mas de imediato pudemos constatar que ter vindo para cá foi um maravilhoso presente que recebemos. A Cidade, embora pequena e distante, é bastante acolhedora e não nos falta nada; até chimarrão tomamos com erva comprada aqui.
A equipe de oficiais e praças de toda a brigada é excelente, o que facilita muito o trabalho. Nossa principal missão é vigiar os cerca de 900 km de fronteira com a Colômbia e os mais de 600 km com a Venezuela e para isto nos valemos de 6° PEF (Iauaretê, Querari, São Joaquim, Cucuí, Maturacá e Pari-Cachoeira) além de um destacamento (futuro PEF) em Tunuí-Cachoeira, num total de mais de 400 homens e mulheres dedicados diuturnamente à vigilância da linha de fronteira.
Como tropa de retaguarda, temos o Comando de Fronteira/5° BIS em São Gabriel da Cachoeira com mais cerca de 500 homens.
O maior desafio, sem dúvida, é manter uma logística eficiente que apoie nas melhores condições os PEF, pois lá não pode faltar nada, pois as condições de vida são difíceis e não há opções para compra de qualquer tipo de artigo, ou seja, o que não for remetido pela sede, não existirá no PEF.
Agora em fevereiro próximo estarei passando o comando da brigada e assumindo a chefia do Estado-Maior do CMA, de onde tentarei continuar apoiando as ações de vigilância na Cabeça do Cachorro, que compreende os Municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, numa área maior que os Estados de Rio de janeiro e São Paulo somados, e maior que alguns países da Europa.
Mas vamos cumprindo a missão e espero que as coisas continuem tranquilas nesta imensa faixa de fronteira da nossa querida Amazônia.
Um forte abraço, Ivan Rosas
SELVA!!!.
Depois de um longo e agradável bate-papo, fomos até a 21ª Companhia de Engenharia de Construção, comandada pelo Major Vidal, onde conversamos longamente com os irmãos de arma e fizemos questão de verificar o estado de nosso caiaque “Cabo Horn”, que estava no almoxarifado da Companhia.
Meu fiel parceiro de jornada do Solimões aparentemente estava em condições de enfrentar as águas pretas do Rio Negro. Chequei o material de reparo, resina, fibra e malha (de vidro), doadas pelo Coronel Ebling. Solicitei ao Major Vidal que, tão logo fosse possível, encaminhasse o “Cabo Horn” ao Hotel de Trânsito para que eu pudesse fazer os devidos ajustes e consertos necessários.
Guiados pelo motorista do Comandante da Companhia, realizamos um “tour” pela Cidade. Na delegacia, paramos para fazer contato com o Comandante do Destacamento da Polícia Militar, Capitão PM Lamonge. O Capitão encontrava-se em Manaus, como sempre, e o destacamento estava sob o comando do Soldado PM Heleno. O Heleno encarregou-se de estabelecer os contatos necessários para conseguir uma “voadeira” para o deslocamento do Coronel Teixeira que embarcou na viatura da PM com o Heleno enquanto eu continuava, com o motorista da Companhia de Engenharia, no meu reconhecimento. Fomos até a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).
FOIRN: é uma Associação civil, sem fins lucrativos, sem vinculação partidária ou religiosa, fundada em 1987, para lutar pela demarcação das terras indígenas na região do Rio Negro, estado do Amazonas; promover ações na área da saúde, educação e autosustentação. Tem ainda como objetivos centrais lutar pela autonomia dos povos indígenas, valorizar as culturas, a medicina tradicional, e outras atividades culturais visando à melhoria das condições de vida dos povos indígenas da bacia do Rio Negro. Compõe-se de mais de 40 organizações de base, sendo que cada uma delas representa um número variável de comunidades indígenas distribuídas ao longo dos principais Rios formadores da bacia do Rio Negro. São cerca de 750 aldeias, onde habitam mais de 30 mil índios pertencentes a 22 grupos étnicos diferentes, representantes das famílias linguísticas Tukano, Aruak e Maku, numa área de 108.000 km² no Noroeste amazônico brasileiro. É reconhecida como de utilidade pública estadual, lei n° 1831/1987. A FOIRN é uma aliança de cooperação e colaboração mútua, que respeita a diversidade cultural e religiosa da região. (Fonte: FOIRN)
A esplêndida construção de madeira guarda no seu interior belas peças de artesanato de diversas etnias indígenas do Alto Rio Negro. Mais que utensílios ou simples peças de adorno, os artefatos indígenas são elaborados não só atendendo a requisitos técnicos ou estéticos mas, sobretudo, simbólicos ou ritualísticos. Admirava extasiado cada uma das peças e vinha-me à mente os relatos dos antigos pesquisadores a respeito de sua manufatura e emprego no cotidiano e em rituais místicos. Um conjunto de cestaria, em especial, me chamou a atenção: a Baniwa, cuja harmonia de formas e cores se destacava dentre todas as demais. Os instrumentos musicais e adornos das diversas etnias guardavam um encanto especial não só em relação à sua beleza mas, sobretudo, pela aura de espiritualismo que carregavam. Mais tarde, durante nossa descida, ouvimos, dos nativos, muitas reclamações sobre falta de atuação da Federação (FOIRN) em relação a diversas comunidades e privilégios oferecidos a outras.
-  Cestaria Baniwa
As grandes cestas são, originalmente, usadas para armazenar alimentos e roupas. Para fins comerciais, são enfeitadas com grafismos coloridos. Os Baniwas afirmam que estes grafismos foram gravados pelos seus antepassados nas pedras (petroglifos), para que jamais fossem esquecidos.
A cestaria de arumã é realizada pelos homens. As fibras com a casca, sem qualquer tratamento, são usadas na manufatura de cestas mais resistentes. O colmo da planta, depois de descascado, raspado e areado, permite a manufatura de cestas coloridas; o trabalhoso processo inclui o uso de fixadores extraídos da entrecasca do Ingá e de outras árvores, que é misturado aos pigmentos desejados.
Arumã ou guarumã (Ischnosiphon spp.): planta da família das marantáceas, ocorre em regiões semialagadas. Espécie de cana de colmos lisos e retos que tem a superfície flexível e permite o corte de finas fibras que são trançadas para formar as cestas. O arumã é utilizado pelos povos indígenas amazônicos, a partir do Maranhão.
Fazer cestaria de arumã com esmero é tornar-se adulto, atestado de como sobreviver no mundo. No mito de Kowai, filho do criador Nhiãperikuli, três rapazes iniciandos são devorados porque transgridem regras alimentares. Kowai, transformado em monstro, vomita seus restos em balaios e tipitis, como se fossem massa de mandioca, colocando-os na praça da Aldeia, defronte à casa ritual, simbolizando suas “mortes” como crianças. No ritual de iniciação, os meninos Baniwa em reclusão aprendem a fazer cestaria de arumã, cujas peças serão ofertadas às kamarara, suas amigas rituais. No mesmo mito, a cestaria de arumã aparece também ligada à iniciação das meninas, que recebem o benzimento final da reclusão pisando num balaio e tendo outro cobrindo a cabeça, os quais serão removidos depois que as regras de convivência social forem transmitidas pelo benzedor. (Fonte: socioambiental)
- Tipos de Cestaria
Urutu (oolóda): são grandes cestos, sem desenhos marchetados, usados para guardar massa de mandioca ou para guardar farinha, beiju e roupa.
Balaio (waláya): os waláya são usados nos rituais de iniciação Baniwa. Os meninos aprendem a fazê-los com o intuito de ofertá-los às suas companheiras de ritual, no término do período de clausura. Os waláya makapóko (balaios grandes) são usados para recolher a massa de mandioca ou para servir beiju e farinha nas refeições.
Jarro (kaxadádali): “o termo kaxadádali, em Baniwa, refere-se ao formato barrigudo de uma cesta ou cerâmica, palavra que também se aplica às pessoas (mulheres grávidas, por exemplo) e aos animais. Consta que, para os Baniwa, este tipo de cesta tem o formato do universo. Antigamente eram feitos de cipó e usados para guardar miudezas e iscas para pescar”. (Fonte: Casa-museu do objeto brasileiro)
Peneira (dopítsi): artesanato feminino de uso diário. São de formato platiformes, circulares, com talas afastadas, usadas para peneirar a farinha, suspensas, por cordas, servem como suporte para empilhar o beiju seco.
-  Simbolismo dos Adornos Indígenas
Os adornos indígenas das várias tribos ou dos grupos étnicos que residem na bacia do alto Rio Negro, incluindo os afluentes Uaupés, Tiquié e Papuri, foram criados pelo Deus Trovão, o Deus da origem que, com seu poder, os fez aparecer desde a origem da humanidade. Não existem dúvidas de que, ainda quando se encontravam no Lago de Leite - ventre materno de todos os povos, localizado no Rio de janeiro - todos nossos ancestrais já possuíam esses adornos. De lá, foram trazidos pela canoa da transformação através do Oceano Atlântico e pelos Rios Amazonas e Negro. Nesse percurso, os ancestrais adentraram nas malocas sagradas que ficavam à beira do Oceano e dos Rios. Nessas malocas, que hoje são as serras, Lagos, pedras e lajes, os ancestrais dançaram usando adornos que lhes foram presenteados pelo Deus Trovão. Todos os grupos de nossa região possuem nomes específicos em suas línguas para o Trovão.
Para os índios, os adornos representam riqueza, vida, alegria. Eram usados para fazer festas de danças tradicionais ou rituais, organizadas pelo líder da maloca ou pelo Bayá, conhecedor dos cantos tradicionais. O uso dos adornos e as danças eram também uma forma de agradecimento. Sem eles, é como se não existisse mais vida sobre a terra. Isso foi o que sentiram nossos antepassados quando tiveram que entregar seus adornos aos missionários, como aconteceu no século passado na região do alto Rio Negro. Alguns grupos da região ainda são conhecedores de todas as danças, outros perderam completamente. As danças tradicionais são as seguintes: dança de lugar cerrado, dança macaco-da-noite, dança do bicho preguiça, dança abelha grande preta, dança wapiri, dança galho de taboca, dança do chocalho pequeno, dança de maracá, dança da vara, dança do camarão, dança da máscara, dança do cacho-de-inajá, danças dos peixes, dança do bastão de ritmo, cantos fora da maloca, cantos de brincadeira.
Essas são danças deixadas pelo Criador e constituem uma riqueza imensa dos povos indígenas desde o início de sua existência. Sob os cuidados dos Bayá e dos Kumua, os especialistas nos cantos e nas encantações, essas danças eram executadas de acordo com um calendário cerimonial, e serviam para afastar os males do mundo.
A caixa de adornos dos antigos é, para nós, a alma da maloca, assim como outros instrumentos cerimoniais, tais como: bancos, lança-chocalho, suporte de cuias, forquilhas de cigarro, Ipadu, caapi, cera de abelha. O caxiri também é a alma da maloca. Os Bayá e Kumua de antigamente transmitiam seus conhecimentos aos mais jovens oralmente, não se praticava nenhum tipo de registro por escrito. Pelo entardecer, reuniam-se na maloca para conversar. Ouvindo a fala dos mais velhos, os jovens aprendiam as cerimônias. No dia da festa, ninguém precisava de orientação.
Os Tukanos reunidos no Distrito de Iauaretê construíram uma maloca com a finalidade de receber de volta os adornos e manter a cultura viva. (Luis Aguiar - Etnia Tariana)
-  Dança da Máscara
Como não tivemos a oportunidade de presenciar as danças típicas indígenas que, na Cidade de São Gabriel da Cachoeira, são uma das mais importantes manifestações do “Festival Cultural das Tribos Indígenas do Alto Rio Negro” - Festribal - reproduzimos, então, o texto redigido pelo Major Boanerges Lopes de Souza, em 21 de novembro de 1928, que relata a dança das máscaras pelos Uananas.
Encontramos os Uananas em franca atividade nos preparativos para a festa. As máscaras recebiam as pinturas e os que as tinham prontas, desfiavam a casca de matamatá para o preparo das franjas com que se confeccionam as saias. Outros entretinham-se no arranjo dos enfeites para a dança da “acangatura” e as “cunhãs” e as “cunhamucus” davam a última demão no preparo do “cachiri”. O tuxaua nos comunicava, constantemente, a marcha dos preparativos. Concluídos estes, foi marcada a festa para a manhã de 21. Às nove horas, teve ela início, com a dança das máscaras. Nesta, só os homens e alguns “curumins” tomam parte. Metidos na vestimenta feita de entrecasca de tururi e casca de matamatá, levando aquela a pintura e a máscara que representavam os bichos da floresta, marcharam os índios em uma só fila rumo à grande maloca. Ao aproximarem-se desta, correram para ela e, num vozerio infernal, batiam os paus que empunhavam de encontro ao revestimento de palha da parede, penetrando, em seguida, no vasto salão. (SOUSA)
Matamatá (Eschweilera coriácea): árvore de 15 a 35 metros de altura. A madeira, pela sua resistência e durabilidade, é usada na construção civil. As sementes em emulsão são usadas para o tratamento nas infecções das vias urinárias.
Tururi: fibra vegetal, resistente e flexível que envolve os frutos da palmeira ubuçu, muito utilizada na confecção de artesanatos. Sua cor natural é castanho escuro.
A onça marchava na frente e parecia ser o personagem mais importante. O sapo, o papagaio, a borboleta, o rouxinol, o aracu, o araripirá e o tapuru formavam-lhe o cortejo. Não consegui interpretar os detalhes dessa interessantíssima dança, em que, ora os papagaios, ora as borboletas, marchavam solenemente, entoando cânticos alusivos às cenas que se desdobravam. O sapo, o rouxinol e os outros bichos revezam-se nas danças e cânticos; mas, incontestavelmente, os papagaios e as borboletas (dois a dois ou um papagaio e um borboleta), eram as figuras que mais predominavam. A onça, de vez em quando, aparecia e fazia um estardalhaço interessante. Nos intervalos, grupos diversos divertiam-se com a dança do carriço, alegrando a assistência. Ela é assim chamada porque os rapazes, ao mesmo tempo que dançam, arrastando, uma mulher, tocam a flauta de pan, composta de quatro, cinco ou seis carriços. Estes são feitos de talos de bambu cujos comprimentos variam de 6 a 20 centímetros, de grossura de 0,5 a dois centímetros. Os índios empunham a flauta com as duas mãos e correndo o beiço pela escala de carriços, conseguem emitir desde os mais graves, aos mais agudos sons. A música é pobre: só distingui dois temas que se revezavam. Grupos de três ou quatro pares formando fila dançavam incessantemente num canto da maloca ou no pátio; ou então, formavam roda e a dança passava a ter novo tema. (SOUSA)
-  Música do Diabo - Jurupari
       Jurupari - Moisés Tapuio
Segundo Batista Caetano, y-ur-apá-ri pode significar “ser que nos vem à rede, o pesadelo, o sonho mau”. Teodoro Sampaio, no entanto, é de opinião que iurú-pari significa “boca fechada, segredo”; conceito semelhante ao do Padre Constantino Tastevin: iu-ru-pari = máscara na boca ou no rosto. Para Coudreau o significado de jurúpará-i é “saído da boca do Rio”; e o sábio Stradelli dá a seguinte etimologia: iurú, boca, e pari, grade de talas com que se fecha a saída dos igarapés. Veja-se, também, Couto de Magalhães, para quem “Jurupari é corruptela de Jurupoari”, que significa “tirar da boca”.
Jurupari é uma denominação Tupi para um demônio particular, mas foi usada com exclusividade pelos missionários para designar qualquer demônio; até assumindo o Lugar do diabo cristão nos trabalhos de catequese dos íncolas. Aparece em outras tribos, como os Baniva, como Kowai ou Kóai, todavia possui um opositor, uma evidente criação catequética, que incorpora os conceitos religiosos do Bem; é Inapíri-Kúri ou Jesus Cristo. Os Uaupés chamam-no de Wáx-Ti ou “espíritos maus”.
A lenda diz que Jurupari é um deus que veio do céu em busca de uma mulher perfeita para ser esposa de Coaraci, o Sol, mas não diz se ele a encontrou e, segundo Orico, essa missão é inatingível. Jurupari foi o maior legislador que os indígenas conheceram, assemelhando-se a Quetzalcoaltl, a “Serpente Emplumada”, deus reformador e legislador Maia.
Enquanto conviveu com os homens, estabeleceu uma série de normas de conduta e leis morais; instituiu a monogamia, a higiene pessoal através da depilação corporal, restituiu o poder aos homens que viviam em um regime matriarcal; promoveu modificações nos costumes e na lavoura; e especialmente deve-se-lhe as festas de colheita. Tão grande foi a sua influência e tão importante seus ensinamentos que o Dr. Hurley, com muita propriedade, definiu-o como o “Moisés tapuio”.
Algumas das leis do Jurupari permanecem validas até hoje e são as seguintes:
O chefe cuja mulher for estéril poderá tomar outras para si, sob pena de perder o trono para o mais valente;
Ninguém cobiçará a mulher de outro, pagando a desobediência com a vida;
A mulher deverá permanecer virgem até a puberdade e jamais prostituir-se;
A mulher casada deverá permanecer com o marido até a morte sem traí-lo;
O marido deve permanecer em repouso durante uma lua, após o parto da mulher;
O homem deve sustentar-se com o trabalho de suas mãos;
É punida com a morte a mulher que visualizar o Jurupari, e o homem que revelar seus segredos e seus rituais.
Segundo a lenda, a mãe do Jurupari era uma índia virgem chamada Ceuci, “filha de Tupã e Zuacacy”, conforme Ernesto Cruz, e instigada pela curiosidade foi espionar os rituais, contrariando assim a lei instituída pelo filho. Para servir de exemplo de que as leis do Jurupari não podem ser transgredidas, foi condenada à morte.
A cerimônia do Jurupari tem seu ritual em fins de março, que coincide com o período em que as águas diminuem e prenunciam o verão, que começa em maio. Na verdade, na Amazônia não existe inverno e verão, o que chamamos inverno e verão é caracterizado pelas chuvas, abundantes num e escassas noutro período. Na Europa, esse período coincide com o equinócio solar, que determina o início da Primavera, durante a qual se realizava antigamente - e ainda hoje - muitos rituais pagãos.
O Jurupari é um arquétipo presente em diversas culturas, não é um privilégio Tupi, mas por ser essa a maior família índia, espalhada por grande extensão territorial, e por ser a língua Tupi-Guarania mais difundida, os pesquisadores antigos concentram nela os seus trabalhos. (PEREIRA)
       Paxiúba
Os índios da região do alto Rio Negro consideram a palmeira paxiúba como símbolo máximo de sua liturgia e que ela representa o próprio Jurupari (Filho do Sol). Do caule da exótica palmeira são fabricadas trombetas das quais se extrai um som harmonioso através do qual o Filho do Sol se comunica com seus devotos.

Socratea exorrhiza

Paxiúba (Socratea exorrhiza): palmeira da família das palmáceas. Conhecida popularmente como: castiçal, baxiúba, zancona, bombom. Alcança até 20 m de altura, com estipe solitário, de 10 a 18 cm de diâmetro, cilíndrico, anelado, suportado por um cone de até 25 raízes adventícias acuneadas, amplamente espaçadas e que chegam a atingir dois metros de comprimento. Folhas pinadas, com bainhas fechadas formando uma coroa, com 20 pares de folíolos alternos, distantes, trapezóide-oblongos, com nervuras brancacentas. Cresce em diversos habitats, sendo mais comum na floresta tropical úmida, em áreas inundadas ou em terra firme. Por ter o lenho muito resistente, é usada como ripas em construções rústicas, servindo até para caravelas de navios e bengalas. É uma espécie ornamental, além de seus frutos serem apreciados pelas aves.
       Alfred Russel Wallace (março de 1851)
Foi também aqui que vi e ouvi pela primeira vez o Jurupari, isso é, a “música do diabo”. Aconteceu durante uma festa em que havia caxiri. Um pouco antes de escurecer, ouviu-se um som de trombones e fagotes que vinham do Rio em direção à Aldeia. Pouco tempo depois, eis que surgem oito índios, todos soprando um certo instrumento muito parecido com um fagote de grandes dimensões. Havia quatro pares de tamanhos diferentes. O som que produziam, conquanto primitivo, era bem agradável de ouvir-se. Os instrumentos eram tocados simultaneamente, todos executando a mesma melodia simples. Com isso, esses índios revelavam um gosto mais apurado para a música do que os de qualquer outra tribo que conheci. Os instrumentos são feitos de cascas de árvores enroladas em espiral, tendo boquilhas de folhas.
Ao anoitecer, seguimos para a maloca. Lá dentro, dois velhos tocavam dois instrumentos maiores, movendo-se de maneira curiosa, ou para cima e para baixo, ou de um lado para outro, acompanhando esses movimentos com análogas contorções corporais. Por longo tempo ficaram tocando a mesma melodia, acompanhando-se uns aos outros de modo harmonioso e correto. Desde o momento em que se escutavam esses instrumentos pela primeira vez, desaparecem por completo todas as mulheres, sejam novas ou velhas. Trata-se de uma exótica superstição dos índios Uaupés. Segundo seus costumes, às mulheres é vedada a simples visão de um desses instrumentos. Caso contrário, será punida com a morte, e geralmente por envenenamento. Mesmo no caso de que a visão dos instrumentos tenha sido absolutamente fortuita, ou então quando houver apenas uma suspeita de que a mulher tenha visto os instrumentos proibidos, não há clemência. Dizem já ter havido casos de pais que executaram suas próprias filhas e de maridos que também fizeram o mesmo com suas esposas, tudo por causa desse crime.
Obviamente, fiquei ansioso para comprar esses instrumentos, especialmente em virtude da superstição relacionada com eles. Assim, fui falar com o Tuxaua. Ele prometeu vender-me alguns na minha viagem de volta, mas com a condição de que fossem embarcados a alguma distância da Aldeia, a fim de que não houvesse perigo de serem vistos pelas mulheres. (WALLACE)
-  Morro da Fortaleza
Após a visita à FOIRN, fomos até o Morro da Fortaleza. O Morro guarda uma história que se confunde com a própria criação de São Gabriel e, por isso mesmo, vamos reportá-la.
Após a assinatura do Tratado de Madrid, em 13 de janeiro de 1750, e da criação da Capitania de São José do Rio Negro (1755), foram organizadas diversas expedições com a finalidade de patrulhar e fortificar o Alto Rio Negro visando demarcar os domínios portugueses na área e de controlar os descimentos indígenas. O governador da Capitania, Tenente-Coronel Gabriel de Souza Filgueiras (1760/1761), enviou para a área o Capitão José da Silva Delgado à frente de um pequeno destacamento que se instalou na Aldeia de Curucui, erguendo um fortim em uma das ilhas e, logo após, prosseguiu tomando posse de diversas aldeias a montante do Negro. A povoação viria a ser elevada a Vila em 1833 com o nome de São Gabriel, em homenagem àquele governador (Gabriel de Souza Filgueiras). Logo que assumiu o governo, em dia 24 de dezembro de 1761, o Coronel Valério Correia Botelho de Andrade, preocupado com a precariedade das instalações do fortim construído pelo Capitão José da Silva Delgado, solicitou ao Governador e Capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e Castro (1759-1763) a construção de um novo Forte. A missão foi confiada ao Capitão Phillip Sturm, Engenheiro Militar alemão a serviço de Portugal. Sturm condenou, de imediato, a localização da posição fortificada na ilha e recomendou sua mudança para uma posição dominante em terra firme, o que facilitaria ao mesmo tempo a construção, manutenção, defesa e eventual reforço em caso de ataque. A construção teve início em janeiro de 1763. Em 28 de julho do mesmo ano, Sturm enviou ao governador o seguinte relato:
No que respeita à formadura desta fortaleza, conforme a primeira planta que enviei a V. Exa., mudei inteiramente aquela primeira ideia da estrela, no qual apliquei quatro baluartes, proporcionados e regulados para o pequeno terreno e forçada guarnição que a defenda. Tudo vai ser feito em boas madeiras em que tenho especial cuidado. Não remeto por ora a V. Exmª a planta e o perfil desta obra, por falta de tudo o necessário, tanto papel como tinta.
A construção de madeira deteriorou-se rapidamente e, em 1770, o governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, o Capitão-General Fernão da Costa de Ataíde Teive Sousa Coutinho, determinou sua reconstrução em pedra. Os trabalhos iniciaram-se em 1775, e a nova estrutura foi assim descrita por Alexandre Rodrigues Ferreira em 1783:
No vértice da colina cavalga a fortaleza. O que é ela verdadeiramente é um reduto construído de pedra e barro, com dois meios baluartes na frente e as cortinas que o fecham pelos lados e pela retaguarda. Guarnece-o exteriormente um tal ou qual fosso, que o não circunvala, mas cinge o lado da frente para o Rio e o da parte da povoação. A parede da porta é a cortina da frente. Contei dez peças de ferro, montadas nas suas carretas, a saber, seis de calibre de quatro e quatro de calibre de ½. Há dentro dele um quartel para a guarnição, um parque d’armas e mais petrechos de guerra, uma pequena casa de pólvora, um calabouço etc., e todas estas casas, excetuando a da pólvora, são cobertas de palha.
Pela retaguarda do reduto se levanta um outeiro que o domina e é um temível padrasto que se corresponde com ele a tiro de peça. Necessita-se, por esta parte, de um contrarreduto que cubra a retaguarda do primeiro. Pela parte do Rio, é bem defensável, porque o Rio se coangusta de modo que o que apresenta é uma estreita garganta, defendida pelos meios baluartes superiores, ficando a povoação entre a primeira cachoeira da praia grande e a segunda sobre que está levantado o reduto. Constava o seu destacamento de 60 praças. O ordinário costuma ser de 30 e nunca existem juntos, porque já escrevi que, da guarnição se destacam os praças precisos para a direção das povoações subalternas; outros se empregam nas diligências do serviço. Sabe-se que os espanhóis pretenderam introduzir-se neste Lugar antes de ser fortificado, e foi preciso prevenir as suas costumadas usurpações. O primeiro que o fortificou pela nossa parte foi o Capitão-de-granadeiros José da Silva Delgado. Veja-se o que a este respeito consta do seu assento. E é o seguinte:
O Capitão José da Silva Delgado foi destacado para o distrito das cachoeiras deste Rio, a fundar uma nova povoação, em 23 de maio de 1761. Apresentado em 6 de novembro do dito ano, depois de concluir uma casa forte na ilha de São Gabriel; um armazém na Cachoeira Grande e tomar posse das aldeias dos índios nas terras de Marabitanas, que são: São José, São Pedro, Santa Maria e Santa Bárbara, como também criar as aldeias de São João Batista, na boca do Rio Ixié; a de Santa Iabel, rainha de Portugal, na boca do Rio Uaupés; do Senhor da Pedra, na Cachoeira Grande, da parte do sul; a de Nossa Senhora de Nazaré, na enseada da dita ilha, da parte do norte; a de São Sebastião, na cachoeira chamada do Vento, da parte do norte; a de São Francisco Xavier, na mesma cachoeira, da parte do sul, e a de Santo Antônio, na boca do Rio Mariá.
Donde não só se vem no conhecimento do primeiro que guarneceu este passo, ainda que por então não fez mais que uma casa forte, erigida na ilha, mas também que algumas aldeias se estabeleceram, as quais já hoje não subsistem. Sucedeu-lhe o outro capitão Miguel de Siqueira Chaves, o qual foi destacado em 12 de outubro de 1761 e apresentou-se em 9 de janeiro de 1762, por causa de doença.
Seguiu-se o capitão Simão Coelho Peixoto Lobo, destacado em 13 de janeiro de 1762 e apresentado em 14 de dezembro de 1763. Por todos eles foi informado o Ilm° Senhor Manoel Bernardo de Melo e Castro que, no Lugar em que está situada a residência dos comandantes, se podia erigir um reduto que defendesse o passo, Rio acima e pela margem do norte, o que não se podia esperar da casa forte estabelecida na ilha. Por ordem sua, subiu a erigi-lo, em 30 de janeiro do dito ano, o alemão Filipe Strum, capitão engenheiro. Construiu-o de pau-a-pique, com dois baluartes na frente para o Rio, e esta foi a fortificação que fez e subsistiu até ao ano de 1765. Comandaram-na oficiais distintos em patentes, talentos e serviços, entre os quais os capitães Filipe Strum, Inácio de Castro Morais Sarmento, João Batista Mardel e Domingos Franco de Carvalho. Distinguiram-se particularmente o primeiro e o terceiro. Alguns deles comandaram mais de uma vez e o capitão Simão Coelho, que tinha saído a comandá-la pela primeira vez em 13 de janeiro de 1762, tornou a ser destacado para o seu comando em 2 de fevereiro de 1767. O citado capitão Filipe Strum, que subiu a fundar o reduto em 30 de janeiro de 1763, voltou a comandante em 13 de novembro do mesmo ano. Pelos fins de 1775 se deu princípio ao que hoje existe: desenhou-o o capitão engenheiro, mas não o concluiu, porque se retirou para a diligência do Rio Branco. Passaram a comandantes os oficiais subalternos que dantes eram menos; não que deixassem de ser para lá destacados, como foram alguns de que faço menção, mas não encarregados do comando.
Tais foram o Alferes Manoel Porate de Morais Aguiar, em 5 de novembro de 1761, e passou a fazer um descimento em 26 de março de 1762; o Alferes Crispim Lobo, duas vezes destacado, a primeira em 24 de dezembro de 1762 e a segunda em 30 de dezembro de 1773; o Alferes Luís da Cunha d’Eça, em 1° de julho de 1764; o Alferes Custódio de Matos Pimpin, em 9 de fevereiro de 1765; o Alferes José Henriques da Costa, em 19 de fevereiro de 1766; o Alferes Antônio de Seixas, em 26 de janeiro de 1772, etc. Da patente de tenentes, dou fé do Tenente Miguel Ângelo Ferreira, em 29 de julho de 1763; do Tenente Inácio Soares de Almeida (destacado para comandante) em 19 fevereiro de 1762, do Tenente Manuel Lobo de Almeida, em 19 de setembro de 1770, etc.
Comandaram-na depois, de entre os que lembram, o ajudante auxiliar Cleto Antônio Marques, o Alferes Joaquim Manoel da Maia Melo; o outro Alferes Francisco Rodrigues Coelho, que concluiu o novo reduto, e o Tenente Marcelino José Cordeiro, que é pela segunda vez seu comandante atual. Eu injuriaria o seu merecimento, se pretendesse informar dele; os seus serviços são as suas informações; pelo seu zelo foram estabelecidas as povoações das Caldas, no Rio Cauaburi, e de São Marcelino, no outro Rio Ixié; a de São Gabriel tem sido aumentada, a fronteira guarnecida; as ordens de V.Exmª executadas, a expedição de limites socorrida de farinhas e o novo encargo do anil desempenhado. No dia 3 de maio de 1784, chegou à fortaleza o Coronel Manoel da Gama Lobo d’Almada, na qualidade de comandante geral, da parte superior do Rio Negro; aquela foi a primeira vez, que subia a comandá-la um oficial da sua patente. (FERREIRA)
O governador da Capitania do Rio Negro, Manuel da Gama Lobo d’Almada, também fez sérias críticas à guarnição do forte:
As suas guarnições, fracas em dois sentidos, porque são diminutas e compostas pela maior parte de muito maus soldados do país, uns que são puramente índios, outros extração ou mistura deles, gente naturalmente fugitiva e indolente, falta de honra, de experiência, de capacidade necessária para uma defesa gloriosa.
A informação mais detalhada sobre o forte, porém, é a de Antônio Ladislau Monteiro Baena e data de 1839:
Contíguo a este Lugar, há um forte que se apelida como ele e que foi construído em 1763 de ordem do General do Pará, Manoel Bernardo de Mello e Castro, contra as pretensões dos Hispano-Americanos. Ele é de figura pentagonal irregular, da qual o maior lado, que defronta com o Rio, é uma cortina, que prende dois meios baluartes; no meio está a porta, que simultaneamente serve ao forte e ao quartel, o qual, com o calabouço, corpo de guarda e armaria, abraça toda a cortina. Os lados menores não têm flanqueamento (defendida por torres); eles são uma singela parede de pedra e argila que é o material de toda aquela fortificação. Falta-lhe o fosso, esplanada, e obras exteriores; não tem canhoneiras para mais de 16 peças de artilharia, e ainda essas hão de ser de calibre inferior ao meridiano, e portanto incapazes de contrabater. As guaritas são três, e de tijolo cobertas de telha. O estado das peças, das carretas e de tudo o que são anexas do forte, como o quartel, armazéns e ribeira, é lastimoso; e o armazém da pólvora é uma pequenina casa de pedra coberta de telha e enterrada no meio do recinto sem segurança nem resguardo.
Quanto ao exterior do forte, na sua espalda, surge perto uma serra (Morro da Boa Esperança), que é um ponto dominante sobre o mesmo forte, cuja situação parece apta para defender o passo ao inimigo por entestar com a duodécima cachoeira, que ali atravessa o Rio formando um boqueirão, que a veia d’água passa arremessando-se com máximo ímpeto fremente; cuja cachoeira por certo de algum modo embaraça um inimigo inexperto em passar estes obstáculos; porém ele pode iludir esta arduidade saindo em terra sem risco por cima do Lugar chamado o Caldeirão, e dali descer embuçado ao abrigo da espessura.
Ora este Lugar do Caldeirão nunca teve, nem tem um reduto de fachina, que o defenda; porquanto o Forte de São Gabriel, sem esta obra fica insuficiente, bem como no tempo da defensa é muito preciso levantar uma bateria no já referido ponto dominante, do qual se descobre o interior do Forte até à raiz do muro, e se divisam os defensores, que em tais circunstâncias estão como nus de anteparo. Há ainda outra razão de conveniência para se dever ocupar o dito ponto dominante, e é que dele se descortina uma grande extensão do Rio, e por isso é um ótimo lugar de atalaia (vigia). (BAENA)
Os únicos vestígios do forte, atualmente, são os de seus alicerces em forma de ferradura encravados na rocha. É voz corrente de que as antigas pedras do forte foram usadas na construção da Missão Salesiana. As dez peças de artilharia originais se encontram assim distribuídas: quatro peças de ½” estão na frente Fórum da Cidade de SGC, três peças de 4” no 5° Batalhão de Infantaria de Selva e as outras três no pátio de formatura da 1ª Brigada de Infantaria de Selva. O Morro da Fortaleza, como hoje é conhecido, encontra-se ocupado pela Companhia de Saneamento do Amazonas (COSAMA). No Morro também se encontra uma das atrações locais conhecida como Pedra da Anta, com seus estranhos desenhos em relevo: um pernil, víceras de animais e uma pegada humana. Acompanhado do Coronel Teixeira, subi na caixa d’água da Cosama e lá do alto desfrutamos de uma posição e uma vista singular para tirar fotografias.
-  Antevéspera de Natal (23 de dezembro)
O major Vidal providenciou para que o caiaque fosse trazido até o Círculo Militar, onde eu e o Teixeira iniciamos sua manutenção. O Teixeira notou um pequeno dano no casco do compartimento de popa, que reparei com o material doado pelo Coronel Ebling. Para evitar os problemas que enfrentei no Solimões com o nome do caiaque, Opium, e suas cores azul e amarelo que lembram a bandeira colombiana, resolvi raspar o “O” de Opium e agora navego com o modelo “pium” mais adequado ao contexto amazônico. Na hora do almoço, o Soldado PM Cavalheiro acertou com o Teixeira o deslocamento da sua “voadeira” pilotada pelo, índio Baré, de São Gabriel até Manaus.
- Morro da Boa Esperança
“Ali há um morro chamado Monte Serrat ou da Boa Esperança, serpenteado por um caminho de terra com marcos situados a cada 100 metros. Estão decorados com mosaicos que lembram os 15 mistérios do Rosário. Foram colocados ali em 1965 em comemoração ao cinquentenário da Prelazia do Rio Negro. De lá de cima, podem-se ver belas praias de areia branca e, ao fundo, a silhueta escura e misteriosa do maciço das Guianas”. (MAUSO)

O morro de aproximadamente 230 metros de altitude, a dez minutos do centro da Cidade, era conhecido antigamente como Morro de São Gabriel, depois chamado de Monte Serrat e, finalmente, Boa Esperança. Os Padres Salesianos construíram uma trilha que permite que se chegue ao topo, sem muito esforço. No alto, foram construídas as capelas de Nossa Senhora Auxiliadora e a do Cristo Crucificado de onde se tem uma vista privilegiada da Cidade e do Rio Negro. Na trilha, foram implantados, em 1965, ano do cinquentenário da Prelazia do Rio Negro, de cem em cem metros, pequenos monumentos decorados com artísticos mosaicos, representando as 14 estações da Via Sacra. Neste local, são realizadas as procissões mais importantes do calendário litúrgico.
- Lenda da Serra da Bela Adormecida
Serra da Bela Adormecida ao fundo

Dois jovens enamorados, da tribo Baré, passeavam pela mata quando foram atacados por um grupo rival. O guerreiro enfrentou ferozmente os adversários dando oportunidade de a jovem fugir. A bela índia, escondida entre as folhagens, viu seu amado ser morto pelos algozes e, apavorada, se embrenhou mais e mais na mata, se perdendo, vindo, dias depois, a falecer de inanição. Tupã, compadecido com o destino do casal, moldou a montanha de modo a representar o contorno da jovem deitada esperando eternamente pelo seu amado.
- Missão Salesiana
“A Congregação Salesiana tem as glórias, no século XX, que no período colonial se atribuíram aos Jesuítas. Como os continuadores do pensamento de Inácio de Loiola, os Filhos de D. Bosco seguem o programa do santo amigo das crianças, ampliando-o na conversão dos primitivos da Amazônia e na irradiação da fé e da civilização. São, assim, na atualidade, sem nenhum favor, os mais legítimos realizadores da grande jornada de conquista espiritual”. (Arthur Cézar Ferreira Reis)
Os primeiros missionários a percorrer as bacias do Rio Negro e do Uaupés foram os Carmelitas e, logo em seguida, os Franciscanos, ambos rechaçados pelo isolamento e as doenças tropicais. Somente os estoicos Salesianos enfrentaram o desafio. A presença Salesiana na Amazônia foi cogitada, a partir de 1908, por Dom Frederico Costa, após viagem pelo Alto Rio Negro, que encaminhou uma solicitação à Santa Sé neste sentido. Foi criada, então, em 1910, a Prefeitura Apostólica do Rio Negro e, em 18 de julho de 1914, através da bula “Christianae Religionis”, o Papa Pio X entregou aos Salesianos a catequese do Rio Negro.

Em 1915, chegaram os primeiros Padres Salesianos: Bálzola, José Canudo e José Solari. A sede escolhida para a nova missão foi São Gabriel da Cachoeira. Atualmente, os Salesianos, na Amazônia brasileira, estão presentes em três Arquidioceses (Manaus, Belém e Porto Velho) e em três Dioceses (São Gabriel da Cachoeira, Humaitá e Ji-Paraná).
A ação dos Salesianos acontece, hoje, através de três comunidades Salesianas: Iauareté, São Gabriel-Maturacá e Santa Isabel-Marauiá. São 19 Salesianos (dos quais seis tirocinantes) e dois voluntários leigos. (...) O atual projeto missionário animado pelos Salesianos incrementa o protagonismo dos povos indígenas e contempla três objetivos principais. O primeiro é interagir com os Ianomâmi (Maturacá-Marauiá) em vista do apoio à educação e ao desenvolvimento sustentável das comunidades, apoiando a formação de professores indígenas através do magistério indígena, construindo uma escola comunitária, intercultural, bilíngue, específica e diferenciada. (ISMA)
“No tope da fronteira à sobredita escada, está fundada a igreja Matriz. É uma igreja grande construída como barraca de madeira, coberta de palha, interiormente pintada com decência precisa”. (FERREIRA)
Na Missão, entrevistei o Bispo emérito Walter Ivan de Azevedo. Nascido em São Paulo, trabalhou durante oito anos em Santa Catarina e São Paulo em colégios, desenvolvendo trabalhos com a juventude. Simpático e muito prestativo, o bispo fez de bom grado o seguinte relato:
Sempre tive intenção e desejo de trabalhar como missionário. Os superiores, então, me mandaram para a Europa fazer o curso de missionário que é antropologia cultural aplicada à evangelização. Permaneci dois anos e, mais tarde, um ano me doutorando nessa matéria em Roma, na Pontifícia Universidade Gregoriana e doutorado na Urbaniana. Fui então para as missões e foi bom porque, além de ter um pouco de experiência em visitas com jovens junto às tribos no Mato Grosso, tinha também esse cabedal teórico ou, digamos assim, fundamental e científico para abordar as missões. Vim para cá, primeiro como simples missionário em Rondônia, por quatro anos, a partir de 1976.
Depois desse período me fizeram inspetor provincial dos Salesianos da Amazônia. Visitando as casas paroquiais do Pará, Amazonas e Rondônia, pude conhecer bem a Amazônia. Depois de seis anos de inspetor, me fizeram bispo dessa região (SGC) que é uma região onde os habitantes são 90% indígenas e a maior parte dos outros caboclos, de modo que eu estava no meu ambiente mesmo. Trabalhei aqui como bispo diocesano e depois como emérito durante 20 anos. Nesses últimos três anos, estou trabalhando com seminaristas em Manaus que são os futuros missionários. Quando eu tenho tempo, uma vez por ano, eu fujo para cá para continuar minhas visitas a aldeias, principalmente a tribo Ianomâmi, a “nação” Ianomâmi que é a mais primitiva ou seja, aquela que teve contato mais recente com os civilizados”.
“A multiplicação das reservas indígenas, exatamente sobre as maiores jazidas minerais, usa o pretexto de conservar uma cultura neolítica (que nem existe mais), mas visa mesmo à criação de uma grande nação indígena. Agora mesmo assistimos, sobre as brasas ainda fumegantes da Raposa-Serra do Sol, o anúncio da criação da reserva Anaro, que unirá a Raposa/São Marcos à Ianomâmi. Posteriormente a Marabitanas unirá a Ianomâmi à Balaio/Cabeça do Cachorro, englobando toda a fronteira Norte da Amazônia Ocidental e suas riquíssimas serras prenhes das mais preciosas jazidas”. (Gelio Augusto Barbosa Fregapani)
O Bispo emérito Walter, graças a um pequeno “escorregão” durante sua explanação, deixa bem claro de como o conceito de “nação indígena é recente e que ainda não foi inteiramente absorvido pelos clérigos mais antigos. O bispo editou diversos livros, dentre os quais “Pinceladas de Luz na Floresta Amazônica”. O livro, como ele próprio diz, não é uma narrativa de viagens, muito menos a biografia de um missionário; é tudo aquilo que ele conheceu de bom e de belo na natureza, mostrando, principalmente, o homem da Amazônia.
-  Hidrelétrica de São Gabriel
“Em 1966, a revista ‘Américas’, da Organização dos Estados Americanos (OEA), publicou um artigo do oficial reformado da marinha uruguaia, Homero Martínez Montero, que apresentava essa idéia em detalhes e acrescentava o interesse de conectar a Bacia do Prata com a do Amazonas e esta, pelo canal do Cassiquiare”. (MAUSO)
Há uma grande preocupação, por parte dos moradores de SGC, em relação à construção de obras que facilitem a navegação e gerem energia na região das cachoeiras. Os textos abaixo relatam esta antiga preocupação e, além disso, servem para mostrar a dinâmica das relações internacionais já que, naquela época, os interesses dos EUA e Venezuela não eram tão conflitantes como os de hoje.
Há uma antiga pretensão norte-americana de fazer desaparecer as cachoeiras de São Gabriel através de obras de engenharia hidráulica relativamente simples, estabelecendo a navegação franca entre Manaus e a foz do Orinoco, no Caribe, com a utilização do canal de Cassiquiare. Essa idéia vem sendo esposada pela Venezuela, naturalmente por influência dos norte-americanos. O General Tasso Villar de Aquino, uma das maiores autoridades em geopolítica, considera que essa solução não interessa ao Brasil, quer sob o ponto de vista econômico, quer sob o militar. No primeiro caso, o fluxo comercial internacional entre Manaus e Belém praticamente desapareceria. O Atlântico seria alcançado bem mais ao norte, reduzindo substancialmente a distância Brasil-Estados Unidos e isolando por completo o porto de Belém. No segundo caso, abrir-se-ia uma via de acesso direta ao coração da Amazônia brasileira - Manaus - o que as cachoeiras de São Gabriel impedem. (BRASIL - 1987)