MAPA

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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Rio Juruá


A inconstância tumultuária do rio retrata-se ademais nas suas curvas infindáveis, desesperadoramente enleadas, recordando o roteiro indeciso de um caminhante perdido, a esmar horizontes, volvendo-se a todos os rumos ou arrojando-se à ventura em repentinos atalhos. (...) ou vai, noutros pontos, em “furos” inopinados, afluir nos seus grandes afluentes, tornando-se ilogicamente tributário dos próprios tributários: sempre desordenado, e revolto, e vacilante, destruindo e construindo, reconstruindo e devastando, apagando numa hora o que erigiu em decênios — com a ânsia, com a tortura, com o exaspero de monstruoso artista incontentável a retocar, a refazer e a recomeçar perpetuamente um quadro indefinido...
(Euclides da Cunha - À Margem da História)

A Expedição General Belarmino de Mendonça percorrerá, nos anos de 2012 e 2013, os 2.975 km de extensão do Médio e o Baixo Juruá, desde a confluência com o Rio Breu (9°24’45,07”S / 72°42’59,66”O) até sua foz no Solimões (2°37’53,06”S / 65°45’16,94”O) além de percorrer o curso de alguns de seus principais tributários. Seguiremos a rota da Comissão Mista Brasileiro-peruana de Reconhecimento do Rio Juruá, comandada pelo então Coronel Belarmino Mendonça, em 1905, que fez um reconhecimento hidrográfico detalhado desde a sua foz no Solimões até a foz do Breu e daí para cima um levantamento expedito do Alto Juruá. A Comissão, na sua “Memória Descritiva”, dividiu o curso do rio de acordo com suas condições de navegabilidade.


Bacia Amazônica - Rio Juruá em destaque

Memória Descritiva

Rio Juruá, seu curso, sua divisão

A zona percorrida pela Comissão Mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do rio Juruá ou “Hyuruá”, vai da foz as cabe­ceiras desse Rio entre as Latitudes extremas do 2°37’ e 10°09’ S e as longitudes de 65°45’ e 73°15’ Oeste. O seu curso total mede aproximadamente 1.773 milhas marítimas ou 3283 quilômetros. Pode ser dividido na razão de­crescente das aptidões que oferece à navegabilidade em Baixo, Médio e Alto Juruá.

O Baixo Juruá compreende o trecho da foz à confluência do Tarauacá e mede cerca de 917 milhas ou 1697,5 quilômetros.

O Médio Juruá vai dessa (confluência do Tarauacá) à confluência do Breu com 690 milhas ou cerca de 1277 quilômetros.

O Alto Juruá estende-se do encontro do Breu à nascente principal no Cerro das Mercês em pouco mais de 166 milhas ou 308 quilômetros aproximadamente. (MENDONÇA)

O Juruá afluente da margem direita do Rio Amazonas com cerca de 3.283 km de extensão desde sua nascente peruana, no Cerro das Mercês, a 453 metros de altitude, é considerado o mais sinuoso dos rios da Amazônia e do Planeta. O Vale do Juruá engloba sete municípios amazonenses e quatro acreanos cuja história remonta às numerosas nações indígenas de origem Pano e Aruaque.

A navegação é realizada regularmente desde sua foz, no Solimões, até Cruzeiro do Sul, AC, numa extensão de 2.464 km. Da foz até Eirunepé, AM (1.650 km), as profundidades são superiores a 2,10 metros. Entre Eirunepé e Cruzeiro do Sul pode-se contar ainda dessa profundidade, no período de águas altas e médias (dezembro a maio), e entre 2,10m e 1 m, nos meses de águas baixas (setembro a novembro).

Na época de águas altas a navegação é feita até Taumaturgo de Azevedo, 330 km a montante de Cruzeiro do Sul, e, eventualmente, até a fronteira com o Peru.

O apoio logístico ao longo da hidrovia é deficiente e a navegação noturna não é recomendada. O tempo de viagem, da foz até Cruzeiro do Sul, supera 14 dias. As embarcações que efetuam o abastecimento de Cruzeiro do Sul são balsas de 1.000 toneladas, na época de cheia, e 300 t, na vazante. Não há instalações portuárias ao longo da hidrovia. A navegação comercial é feita pelos “comboios” que transportam combustíveis, chatas e “regatões”, que atendem aos ribeirinhos.

O rio Juruá é fértil em “sacados” e tem declividade inferior a 5 cm/km.

Sacados: lagos marginais onde os rios represam o excedente das suas grandes cheias.

As cidades mais importantes no curso da via são: Carauari, km 610 (21.000 habitantes); Eirunepé, km 1.650 (26.000 hab.); Cruzeiro do Sul, km 2.464 (57.000 hab.). (Fonte: Paulo Roberto C. de Godoy/Antônio Paulo Vieira – Hidrovias Interiores)


Rio de "meandros" e sacados
 - Um “Rio Desordenado, e Revolto, e Vacilante ...”

Embora o texto de Euclides da Cunha, que encabeça este artigo, se refira ao Rio-mar e não ao Juruá penso que a descrição lhe cabe mais que perfeitamente. Com toda a tecnologia, fotografias aéreas e tantos outros recursos de que hoje dispomos ninguém jamais foi capaz de descrever com tanta propriedade os Rios da depressão amazônica como o incomparável Euclides da Cunha. O Juruá com suas infindas curvas, seus incontáveis “sacados” permitem que, “engarupados na anca da história”, recuemos ao passado e acompanhemos a sua eterna, incansável e permanente labuta de construir e reconstruir seu curso. Aqui ele retifica uma longa curva, rompendo o laço e buscando um atalho transformando a grande alça em belo lago em forma de ferradura, mais adiante insatisfeito ele volta a invadir o “sacado” há tanto tempo abandonado trazendo-o, novamente, para seu leito principal. É a inconstância tumultuária a que se refere Euclides.

- Relatos Pretéritos

Os primeiros expedicionários, do século XVII, que desbravaram as águas do Rio-mar fizeram apenas breves relatos das embocaduras dos grandes afluentes que se lançam no Amazonas sem se aventurar a percorrê-los. Historiadores e geógrafos, dos séculos XIX e mesmo do início do século XX, omitiram o Rio Juruá da relação dos principais afluentes da Margem Meridional do Solimões considerando-o um tributário menor.

Antigos relatos apresentam um Juruá prenhe de mistérios e lendas, habitado por tribos de indígenas anões e outras cujos indivíduos possuíam rabo. Os comentários sobre seus aspectos geográficos eram totalmente incipientes e amiudados, alguns autores ao compará-lo com o Jutaí consideram-no inferior a este em extensão e vazão, outros atribuíam-lhe uma extensão de apenas 2.000 km (61% do total).

Desfolhemos, pois, ainda que brevemente, as amareladas páginas da história deste Rio que há séculos vem povoando o imaginário popular.


Vista aérea do Google Earth - Sul do Estado do Amazonas

             Cristóbal de Acuña (1639)

LX

O FIM DA PROVÍNCIA DOS ÁGUA E DO RIO CUZCO

(...) No entanto, como digo, ainda que não pudéssemos avistar essas nações, avistamos a boca do Rio que, com razão, podemos chamar de Cuzco pois, de acordo com um regimento desta navegação que vi de Francisco de Orellana, está a Norte-Sul com a mesma cidade de Cuzco. Entra no Amazonas a cinco graus (2°37’52,19”S / 65°45’19,28”O) de altura a vinte e quatro léguas do último povoado dos Água (Omáguas).

Os nativos chamam-no de Juruá, e suas margens estão muito povoadas. Entrando-se por este Rio acima, pelo lado da mão direita, a tribo que aí habita não é outra senão a que eu já disse que habitava as ribeiras do Yetaú que, estendendo-se até suas margens, fica como que isolada entre ambos os Rios. E é este, se a fantasia não m engana, o Rio por ode Pedro de Úrsua desceu do Peru. (ACUÑA)

           Charles-Marie de La Condamine (1743)

VIII

(...) Nós empregamos cinco dias e cinco noites de navegação para ir de São Paulo a Coari, não contando dois dias aproximadamente de estada nas missões intermediárias de Iviratua, Tracuatua, Paraguari e Tefé. Coari é a derradeira das seis povoações dos missionários carmelitas portugueses; as cinco primeiras são formadas dos restos da antiga missão do Pe. Samuel Fritz, e composta de um grande número de diversas nações, a maior parte transplantadas. As seis acham-se na margem austral do rio, onde as terras são mais altas, e a abrigo de inundações. Entre São Paulo e Coari, encontramos vários grandes e belos rios, que vêm esgotar-se no Amazonas. Do lado do sul os principais são o Jutaí, maior que o Juruá, que o segue, cuja embocadura de 362 toesas (705 m) pude medir (...) (CONDAMINE)

           José Monteiro Noronha (1768)

124. Pouco mais de vinte léguas acima de Parauari desemboca na margem Meridional do Amazonas o Rio Iuruá chamado vulgarmente entre os brancos Juruá, em dois graus e meio de Latitude Austral, descendo do reino do Peru, com direção do Sul, para o Norte. É abundante de salsaparrilha. O seu curso é dilatado, e o seu interior pouco penetrado pelos brancos. Dele se tem extraído muitos índios para os lugares de Alvelos, e Nogueira, pelos quais e pelos que o têm navegado sabe-se haver nele muitas nações de índios, das quais as mais conhecidas são: Katauixí, Uacarauá, Marawá, antropófagos, Katukina, Urubu, Gemiá, Dachiuará, Maliá, Chibará, Bauari, Arauari, Maturuá, Marunacu, Kuriá, Paraú, Paraú, Paipumá, Baibirí, Buibaguá, Toquedá, Puplepá, Pumacaá, Guibaná, Bugé, Apenarí, Sutaã, Kanamari, Aruná, Yochinauá, Chiriiba, Cauana, Saindayuuí, Ugina, a que também chamam Coatatapiiya, isto é, nação de certos monos chamados Coatá. Na parte mais superior deste Rio afirmam constantemente os índios haver uma populosa Aldeia de Umauas, ou Cambebas. As armas dos índios do Juruá são: esgravatanas (zarabatanas), arcos, e flechas, lanças, e tamaranas, que são como os Cuidarus do Japurá. As flechas, e lanças envenenadas.

125. Os índios das nações Cauana e Ugina ficam mui superiores a catadupa (cachoeira) do Rio, e distante da sua barra. Dos da nação Cauana dizem os índios o mesmo, que alguns geógrafos dos Groenlandos, e Lapões, isto é, que são de estatura curta, que apenas excederá a cinco palmos. O que dizem dos da nação Ugina ou Coatatapiiya, é mais notável, porque afirmam terem todos caudas e que procedem de Índias, que se fecundarão com os monos chamados Coatá. Seja o princípio qual for, eu sempre me inclino a que é verdadeira a notícia das caudas, por três motivos. O primeiro, por hão haver razão física que dificulte as caudas. Segundo, porque inquirindo eu vários índios oriundos e descidos do mesmo Rio, que viram e trataram com os Uginas, sempre os achei constantes, só com a diferença de dizerem uns que as caudas são de palmo a meio, e outros, que chegam a dois palmos e mais. O terceiro, por me afirmar o Reverendo Padre e Frei José de Santa Teresa Ribeiro, religioso Carmelita, e vigário atual do Lugar de Castro de Avelãs, que vira um índio descido do Rio Iupurâ, que tinha cauda, cuja história lhe pedi atestasse com uma certidão jurada, que passou e conservo em meu poder, do teor seguinte:

“Frei José de Santa Teresa Ribeiro, da Ordem de Nossa Senhora do Monte do Carmo da antiga observância etc. Certifico e juro, “In verbo Sacerdotis”, e aos Santos Evangelhos, que, sendo eu missionário em a antiga aldeia de Parauari, que ao depois se mudou para o Lugar que hoje é de Nogueira, chegou à dita aldeia, no ano de 1751, ou 1752, um homem chamado Manoel da Silva, natural de Pernambuco ou da Bahia, vindo do Rio Japurá com alguns índios resgatados, entre os quais trazia um índio bruto, infiel, de idade de trinta anos, pouco mais, ou menos, do qual me certificou, o nomeado Manoel da Silva, que tinha rabo. E por eu não dar crédito a tão extraordinária novidade, mandou chamar o índio e o fez despir com o pretexto de tirar algumas tartarugas de um curral onde eu as tinha, para deste modo poder eu examinar a sua verdade. E com efeito vi, sem poder padecer engano algum, que o sobredito índio tinha um rabo da grossura de um dedo polegar, e do comprimento de meio palmo, coberto de couro liso, sem cabelos. E me afirmou o mesmo Manoel da Silva, que o índio lhe dissera que todos os meses cortava o rabo para não ser muito comprido, pois crescia bastante. E só não examinei a nação do índio nem a parte certa onde habitava, nem se também tinham rabos os mais índios da sua nação. Porém haverá quatro anos, pouco mais ou menos, chegou-me a notícia de que no Rio Juruá há uma nação de índios com rabos. E por tudo ser verdade, passei esta de minha letra e sinal.

— Lugar de Castro de Avelãs quinze de Outubro de mil setecentos e sessenta e oito.

— Fr. José de S. Theresa Ribeiro”.

126. Na distância que há entre o Parauari e o Rio Juruá acham-se pela ordem com que vão escritos: o Lago Cupaçá comunicado com o Juruá; o Canal chamado Giparaná, formado por uma Ilha vizinha à margem do Rio; os Riachos Iauató, e Acaricoara; o Canal Maicoapaní semelhante ao Giparaná; a Boca superior de Acaricoara e o Riacho Guará. (NORONHA)

           Johann Baptist von Spix (1819)

Com tempo variável, passei diante das embocaduras do preto Lago de Cupacá e dos pequenos Rios Jauató e Baré, e pelos canais, formados por Ilhas, de Comatiá e Mucuapanim, chegando ao Rio Juruá. Este Rio, de águas um tanto mais claras do que as do Solimões até agora é ainda muito pouco conhecido, e não é navegado no interior das terras. Na sua foz, tem quase um quarto de légua de largura. É habitado pelos índios Catauixis, Catuquinas, Canamarés, Caripunas, etc., e é incrível ali a abundância de cacau e salsaparrilha. O suco adocicado da polpa envolvendo as amêndoas do cacau dá uma espécie de vinho, que é bebida muito refrescante. Uma singular lenda refere-se a homens de cauda curta, “coatás tapuias” que, segundo dizem, vivem no Juruá. Embora essa lenda seja geralmente espalhada no Solimões, não pude, entretanto, colher informação segura a respeito. Mais exata deve ser outra lenda, a da existência de uma tribo de índios anões, a dos Cauanãs, cujos indivíduos teriam apenas três a quatro palmos de altura. Pelo menos vimos na Barra (Manaus), um índio do Juruá que, embora já com vinte e quatro anos de idade e bem conformado, só tinha três pés e quatro polegadas de altura. Se esta estatura pequena é hereditária na tribo, ou se deve atribuir a uma casualidade, como a da índia albina, que observamos em Barra, e um segundo caso, que vi em Tarumá – deixo por decidir. (...)

Nota II – O Juruá (Pagan chama-o Amarumayo) é até hoje mal conhecido pelos brasileiros, pois as numerosas tribos (Monteiro cita 32 e a mim indicaram como as mais importantes dos Marauás, Catuquinas, Catauxis, Canamarés, e Arão) existentes nas suas margens são guerreiras e inimigas dos brancos. Quase todas se servem de armas envenenadas, e só em pequeno número foram trazidas para as colônias. As expedições, que para colher salsaparrilha e cacau, sobem uns vinte dias de viagem no Juruá, não chegam ainda às cachoeiras, para as quais se calculam trinta dias de navegação. A correnteza do Juruá é mais impetuosa do que a do seu vizinho de Oeste, o Jutaí. A largura de sua foz, de acordo com a medição de La Condamine, é de 362 braças. As terras, por onde ele corre, segundo referência dos habitantes, são baixas e, em grande parte, cobertas de mata. (SPIX)

           Antônio Ladislau Monteiro Baena (1839)

Entre as cabildas que moram no sertão do Rio Juruá, há uma denominada Ugina, da qual se refere que todos os homens têm cauda em consequência das mulheres terem congresso com os macacos chamados coatás, e por isso chamam a estes selvagens Coatátapiá. Vê-se no roteiro manuscrito do Doutor Arcipreste José Monteiro de Noronha, natural do Pará, que o seu autor inclina-se a ter isto por exato; e para corroborar os fundamentos da credibilidade desta notícia, ele produz o transunto de uma certidão jurada aos Santos Evangelhos do Reverendo Padre Frei José de Santa Thereza Ribeiro, religioso da Ordem calçada de Nossa Senhora do Carmo, que vigariou em 1768 a Igreja de Castro de Avelans.

Cabildas: tribos, associações de famílias que vivem no mesmo lugar.

Arcipreste (archipresbyter): decano entre os presbíteros de um arciprestado, responsável pela correta execução dos deveres eclesiásticos e pelo estilo de vida daqueles que estão sob sua autoridade.

No mesmo Rio Juruá há outra cabilda nominada Cauána, cujos indivíduos pela sua acanhada estatura são comparáveis com os anões. (...)

Juruá: Rio que volve das proximidades de Cuzco, dirigindo-se do Sul ao Norte com uma andação dilatada e impetuosa. São pretas as suas águas; é penhascoso; tem salsaparrilha e cacau; nele há uns silvícolas chamados Cauánas que parecem anões, pois são de tão curta estatura que não passam de 5 palmos verticais; há também outros silvícolas denominados Uginas, que têm rabo de 3 a 4 palmos, assim o recontam muitos; o crédito, porém que aplicar se lhe deve à discrição do judicioso fique. A posição geográfica da foz deste Rio é o paralelo austral 2°45’ (2°37’52,19”S) cruzado pelo meridiano 311°36’.

Por ele subiu a capital do Peru em 1580, tendo descido pelo Jutaí, o General Pedro de Úrsua, Cavalheiro Navarrez, 2° descobridor do Amazonas, de ordem do Vice-Rei Marquês de Canhete, para explorar minerais, frutos e silvícolas do Alto Amazonas. (BAENA)

           Francisco Adolpho de Varnhagem (1854)

SEÇÂO XXXIV

O PARÁ-MARANHÃO DURANTE O MESMO PERÍODO (1630-1654)

Também Acuña trata, pelos próprios nomes que ainda hoje conservam, dos Rios Jutaí e Juruá, cujas águas navegáveis iam até o alto Peru; declarando que por um destes rios baixara Pedro de Ursúa, em 1560, com o dito Aguirre; o que temos por mui pouco provável, sendo mais natural que baixassem pelo Huallaga. Em todo caso, já nas vizinhanças das fozes desses rios, bem como na do Purus (denominado por Acuña dos Cuchiguaras), que também é rio que vem de longe, os índios usavam de “estolicas” ou palhetas, armas de arremesso conhecidas pelos do alto Peru; sendo igualmente mui provável que os vestígios de industria de tecidos e usos de vestuários e mais indícios de certa civilização que se encontraram entre os Águas, ou Omáguas (nome que significa Cabeças chatas, como em língua geral se traduziu depois por Cambébas, de Akam e pebas) mais acima, especialmente entre as fozes dos já então denominados Napo e Putumayo, fossem igualmente procedentes do Peru, e não de algum galho motsca ou muisca, descido das bandas da atual Nova-Granada, como se tem dito. Também trouxeram o conhecimento da extração da goma elástica, que por essa banda chamam cáucho; donde veio a palavra “cautchuc (VARNHAGEM)

           Robert Southey (1862)

O Madeira e o poderoso Amazonas, mencioná-los basta; dos rios que correm do lado do Novo Reino e da Guiana já demos noticia, mas o Purús, o Coary, o Tefé, o Juruá, Jutaí, Javari são tais que cada qual deles passaria na Europa por uma corrente de grande magnitude, medindo o mais pequeno dentre eles mais de trezentas braças na sua boca. Supunham-se antigamente as nascentes nas montanhas do Peru, mas é isto impossível, salvo havendo no sertão grande ajuntamento de águas, como a Lagoa de Xarayés, onde tantos rios vêem unir-se para formar o Paraguai, por quanto averiguou-se existir por detrás deles todos uma comunicação entre o Ucayali (principal corrente do Amazonas) e o Mamoré por intermédio do Lago Rogagualo, na Província dos Moxos, e do rio da Exaltação. Se os rios desta Província vêem daquela lagoa, ou têm mais ao Norte suas nascentes, não se descobriu ainda, tendo a abolição da escravidão dos índios feito desaparecer o principal motivo pelo qual se exploravam os Rios no coração do continente, e aventurando-se os Portugueses de Solimões raras vezes muito longe naquela direção, e nunca além dos limites das tribos suas aliadas. (SOUTHEY)

           Barão de Santa Anna Nery (1899)

O Juruá de 2.000 km de extensão, já era conhecido em meados do século XVI: foi por ele que Pedro de Úrsua desceu, em 1560, por ordem do Marques de Castanhete, Vice-rei do Peru, e foi aí que perdeu vida, assassinado por dois de seus oficiais, interessados não só em saqueá-lo, mas também por sua mulher, a bela e infeliz Inês. Este Rio tinha sido abandonado há cerca de 30 anos; desde então, tornou-se um dos mais prósperos e veremos mais tarde, que é servido por linhas regulares de vapores em um percurso de 1.500 km. Seus afluentes – o Andirá, o Tarauacá, o Gregório, o Moa ou um – são muito frequentados.

Linhas de navegação a vapor para o Juruá: Companhia Inglesa do Amazonas, Bernau e Cia, Melo e Cia e a Araújo Rosas e Cia. (NERY)


Bibliografia:

ACUÑA, Christóbal de. Nuevo Descubrimiento del gran Rio de las Amazonas - Espanha - Madrid, 1891 - Ed. García.

BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio Chorographico do Pará - 1839 - Brasil - Brasília, 2004 - Senado federal.

CONDAMINE, Charles-Marie de La. Viagem na América Meridional Descendo o Rio das Amazonas - Brasil - Brasília, 2000 - Senado Federal.

MENDONÇA, Belarmino. Reconhecimento do Rio Juruá (1905) – Fundação Cultural do Estado do Acre, 1989.

NERY, Frederico José de Santa Anna, Barão de Santa Anna Nery. O País das Amazonas – Livraria Itatiaia Editora Ltda - Editora da Universidade de São Paulo, 1979.

NORONHA, José Monteiro de. Roteiro da Viagem da Cidade do Pará até as Últimas Colônias do Sertão da Província (1768) - Brasil - São Paulo, 2006 - Livraria Itatiaia Editora Ltda - Editora da Universidade de São Paulo.

SPIX e MARTIUS, Johann Baptist Von Spix e Carl Friedrich Philipp Von Martius. Viagem pelo Brasil 1817 - 1820 - Brasil - São Paulo, 1968. Edições Melhoramentos.

SOUTHEY, Robert. Historia do Brasil - Editora Melhoramentos, 1977.

VARNHAGEM, Francisco Adolpho de. História Geral do Brasil – Espanha, Madrid. Imprensa da V. de Dominguez, 1854.

domingo, 19 de agosto de 2012

Viagem ao Redor do Brasil (1875 – 1878)

Dentre as inúmeras viagens pretéritas pelo Rio Madeira esta, escrita pelo então Coronel João Severiano da Fonseca, integrante da Comissão de Limites entre o Brasil e a Bolívia, é, sem dúvida, a que mais me cativou. Reproduzi, neste livro, três delas por julgar terem sido as mais marcantes.
Nesta o insigne Patrono do Serviço de Saúde do Exército descreve os costumes e compila um glossário do vocabulário linguístico das diversas etnias indígenas com as quais a Comissão entrou em contato. A obra além de mostrar a participação dos nativos como auxiliares na exploração e colonização do território, narra com detalhes as dificuldades enfrentadas nas passagens pelas Cachoeiras e ilustra com gravuras as rotas utilizadas pelos expedicionários para ultrapassá-las.
-  João Severiano da Fonseca
    Fonte: www.exercito.gov.br
João Severiano da Fonseca, nascido a 27 de maio de 1836, em Alagoas, foi médico, militar, escritor, historiador e diplomata. Ingressou na carreira das armas dois anos após seu doutoramento, em 1862.
Tomou parte na Campanha do Uruguai, apresentando-se como voluntário, embora doente e ainda em licença para tratamento. De substancial valor foi seu desempenho em Salto e Paissandu, marcos iniciais de um ciclo glorioso, que prosseguiria na Guerra da Tríplice Aliança. Ao longo desse conflito, não lhe faltaram louvores em profusão de seus chefes, assinalando a excelência do serviço prestado ou da tarefa bem cumprida. Inúmeras foram as condecorações que recebeu, sendo o único oficial do Corpo de Saúde condecorado com a Ordem do Cruzeiro. Fez toda a Campanha da Tríplice Aliança vivenciando e sofrendo as dificuldades impostas pelas condições climáticas, que variavam do intenso calor no verão às chuvas prolongadas na primavera e ao intenso frio do inverno. Como se isso não bastasse, atendeu as epidemias de varíola e cólera, lutando contra a precariedade do estado sanitário da tropa. Aplicou-se, incansavelmente, contra os piores inimigos da guerra, que eram as doenças infecto-contagiosas. No meio dessa terrível guerra, estava o Patrono sempre zeloso, humanitário e inteligente.
Como filho de militar, trazia no sangue a vontade de lutar pela Pátria. Ele e seus ilustres dois irmãos, Hermes Hernesto da Fonseca e Manuel Deodoro da Fonseca, conseguiram retornar aos seus lares e continuar a carreira no Exército. Infelizmente, não tiveram a mesma sorte seus outros irmãos, major Eduardo Emiliano, Tenente Hypólito e Alferes Afonso Aurélio, que faleceram em combate, nas batalhas de Curupaiti e Itororó.
Eclético e dotado de invejável inteligência, foi colocado à disposição do “Ministério dos Estrangeiros”, a fim de fazer parte da Comissão de Limites entre o Brasil e a Bolívia. Membro dos mais cultos da Comissão, soube o Dr Fonseca coligir incontáveis observações, especialmente de caráter científico, no decurso de seus três anos de peregrinações através das províncias limítrofes com a Bolívia. Esse repositório de observações constituiria, mais tarde, matéria para o seu precioso livro “Viagem ao redor do Brasil”.
Promovido a General de Brigada em 1890, chegou ao mais alto cargo do Corpo de Saúde, com o título (da época) de inspetor-geral do Serviço de Saúde do Exército. Afastou-se da ativa quando eleito Senador, retornando à Inspetoria-Geral em novembro de 1895.
O General de Brigada João Severiano da Fonseca faleceu em 1897, no Rio de Janeiro. Sua insigne figura foi escolhida Patrono do Serviço de Saúde em 1940, a qual foi homologada em decreto de 13 de março de 1962.
-  Viagem ao Redor do Brasil (1875 – 1878)
Capítulo IV
As Cachoeiras
I
Iniciamos a navegação, por um trato de mais de quatrocentos quilômetros, toda atravancada de Penedos, Corredeiras, Cachoeiras e Saltos, que, impedindo-a completamente em alguns pontos, dificultam-na imenso no resto. Esses tropeços variam conforme a estação e a força das águas, que aumentam ou diminuem o número das Cachoeiras, tanto como o seu ímpeto e braveza. Cachoeiras há dificílimas de transpor, na enchente, que nas águas baixas são pouco sensíveis, e vice-versa; e é isso o que faz variar o seu número para os viajantes, dos quais uns contam vinte e uma, outros dezenove, outros menos ainda; sendo nestes casos as restantes designadas como simples corredeiras.
São altas Guajará-mirim, Guajará-açu, duas da Bananeira, Pau-Grande e Laje, no Mamoré; Madeira, Misericórdia, e duas do Ribeirão, Araras, Pederneiras, Paredão, Três-Irmãos, Salto do Jirau, Caldeirão do Inferno, Morrinhos, Salto do Teotônio, Macacos e Santo Antonio. Há ainda duas perigosas sirgas entre as Cachoeiras do Ribeirão e Araras, denominadas da Pedra-Grande e dos Periquitos, bem assustadoras no tempo das cheias.
Essas denominações foram-lhes impostas, segundo diz Baena, pela Comissão de limites de 1782, que assim as consignou nos seus Mapas; sendo que anteriormente eram conhecidas pelos nomes de Panelas, Cordas, Papagaios, Javalis, Tejuco, Tapioca, Uainumu, Mamoriné, Tamanduá ou Arei, Maiari, Paricá, Arapacoá, Coati, Guara-assu, Natal, Gamon e Aroaiá, também chamada S. João.
A travessia das Cachoeiras é quase sempre feita à sirga e algumas vezes à toda força de remos. Quando à sirga, parte dos tripulantes salta nos penhascos laterais, espiando a embarcação com dois grandes cabos à proa; outra parte, por água, ora nadando, ora apoiando-se nos Penedos, aguenta-a com outra forte espia, que pouco a pouco vão dando de mão, para dar seguimento ao baixel (pequeno navio ou barco). À proa vão os dois mais possantes e experimentados remeiros, armados da zinga, grande vara que empregam muitas vezes em vez de remos, para dar impulso à embarcação, desviá-la dos penedos e também para aguentá-la na marcha: sobre a tolda, o piloto, empunha o leme, dando a direção conveniente, mudável (mutável) a cada instante, porque a cada instante o Penhasco e o rebojo lhe estão na frente.
Descida das Cachoeiras (Fonseca)
Quando a travessia é a remos, o que se faz nas Corredeiras ou Cachoeiras de pequenos saltos, vão todos os remeiros à postos, estugando-se (picando a voga, apressando-se) nas remadas; ora enterrando os remos, ora raspando apenas a superfície das águas, conforme as vozes do comando do piloto: “raspa, ou rema duro”: na proa, o remador de mais confiança tem em mão o remo grande, assim chamado por ser sua pá de três decímetros sobre dois e meio de largo, o qual só é empregado nas ocasiões difíceis em que o bote, impelido como uma flecha pela força da corrente, tem de mudar de direção, entre os Escolhos (penedos), o que, então, faz com uma rapidez pasmosa; soçobrando (naufragando) no caso contrário.
Do concurso uniforme de todos depende a salvação da embarcação e de tudo o que conduz: perícia do piloto, pujança e rapidez de movimento do manejador do remo grande e uniformidade de ação em todos os outros remeiros. Se aqueles se descuidam por um instante, se destes algum afrouxa, tornando subitamente mais fraco o esforço de um lado do que do outro, rompe-se o equilíbrio na marcha, e a perda é inevitável.
Felizmente, esses passos difíceis são rápidos; tal a força vertiginosa da corrente: mas, apesar disso, quando — passado o perigo, os remeiros afrouxam o manejo, é a água das Cachoeiras, que os cobre, que oculta o suor que os banha; tal o esforço empregado. Sua posição, além de perigosa, é incomoda: sendo toldadas as canoas, deixam, apensa (pendente), um baldrame de um palmo, mais ou menos, de largura, onde eles se colocam mal assentados, com uma perna dobrada, e a outra pendente e dentro d’água. Nada tendo que os ampare nos banzeiros ou grandes escarcéus que os rebojos formam, e que dão à embarcação movimentos desordenados, têm por única garantia de salvação o passarem o braço num gancho de pau preso na tolda, o que nem sempre os livra de serem arrebatados pelo marulho (agitação das ondas).
Guajará-mirim (Fonseca - Google)
É notável nessas paragens de Cachoeiras o movimento das águas: vê-se o Rio dividido em três zonas: no meio, a corredeira, onde a velocidade é enorme, e lateralmente os remansos imóveis como água estagnada; e entre estes e aquela uma outra corrente em sentido inverso da do Rio, sendo digna de observação tal diferença de movimentos em superfície tão unida, e cuja a separação é por assim dizer linear.
Quando, algumas vezes, o remo grande não consegue desviar com suficiente ímpeto o baixel da corrente para o remanso, a embarcação penetra apenas a meio, é com supina (excessiva) dificuldade que a tripulação consegue fazê-la avançar; tornando-se necessário rebocá-la a nado, por isso que não só o remanso nenhuma resistência oferece à ação dos remos, como a força da corrente e os rebojos, na zona imediata, tendem a arrastar a popa para a corredeira.
Jamais passam as embarcações carregadas nas Cachoeiras, e raro nas corredeiras. O mais conveniente é folgá-las na proa, deixando à popa a carga necessária para não caturrarem (balançarem) nos banzeiros e alagarem-se.
As principais Cachoeiras são, de ordinário, na volta dos Rios; sendo no ponto mais saliente da volta a sua maior força e também o maior perigo, por isso que os escarcéus (vagalhões) são aí maiores e as ondas espaldeiam a (investem contra os flancos da) embarcação.
Conhece-se a aproximação da Cachoeira pela maior velocidade que as águas vão adquirindo: os Portos são sempre imediatamente juntos ao perigo; e as vezes a corrente é, já, bem veloz, ao chegar-se ao ponto onde se deve abicar. Manobra-se, então, com a maior rapidez, energia e segurança de vista, para cair-se no remanso: abica-se e descarrega-se. Ao menor descuido pode a embarcação garrar (ficar a embarcação à mercê da água) e ir despenhar-se na Cachoeira. Quando esta é de salto impossível de ser transposto, varam-se as embarcações por terra, de um ponto ao outro.
II
O Guajará-mirim é uma das que mais variam, desaparecendo quando as águas do Mamoré se avolumam. Seu trajeto é breve, mas perigoso, por ser o Canal muito estreito. Fica este à margem esquerda, logo encostado à grande laje que a borda (C).
Assim que abicamos, foi o piloto Gomes reconhecer o passo, enquanto se procedia ao descarregamento do bote; indo as cargas conduzidas por um pequeno caminho (D) de duzentos e cinquenta metros de extensão, onde são Portos as pequeninas enseadas, marcadas com as letras A e B. Uma cordilheira de penedos, com uns cento e cinquenta metros de largura, atravessa o Rio de lado a lado, alargando-se em suas margens em duas enormes lajes de aparência diorítica, cuja maior é já designada à esquerda. Deixava ver em alguns lugares a formação porosa de uma espécie de canga envernizada (quartzo ferruginoso) semelhante ao fonólito (rocha vulcânica). O Rio, que era de cerca de quatrocentos metros, tem aqui dobrada largura. O caminho vai beirando quase a orla da barranca; a terra vegetal descobre-lhe xistos argilo-talcosos, sem estratificação conhecida.
Às 14h30, nossa embarcação desce à sirga, contida pelos grossos cabos à proa e popa que a guarnição aguenta, para não deixá-la ser tomada pela torrente; para o que os nossos homens ora seguem por cima das lajes e penhascos maiores, cheios de pontas e depressões, ora à nado na correnteza, ora agarrando-se aos penhascos ou socorrendo-se uns aos outros para não serem levados no cachão das águas. Receosos dos perigos da travessia, que pela primeira vez arrostávamos, desembarcamos todos à exceção do 1° Tenente Frederico que, digno Oficial do Mar, quis por si próprio conhecê-los e estudá-los. Três minutos durou a travessia; e o bote veio abicar e receber a carga no Porto de baixo.
Os engenheiros Keller colocam a Guajará-mirim, à 10°44’32,8” de Latitude Sul e 22°3’42” Longitude Oeste do Rio de Janeiro; dando-lhe a altura de 144,06 metros (na verdade 118 metros) sobre o nível do Mar; Edward D. Mathews dá 510 pés ou 155,04 metros, alturas que entretanto me parecem mui fracas.
Aqui encontramos o resto de uma canoa de um desventurado negociante, chamado Pinheiro, que há ano e tanto subia com dois botes carregados de gêneros do Pará; e em viagem perdeu quase toda a tripulação de febres malignas.
Baldo de recursos e não tendo outro remédio a dar, abicou aqui; fez um rancho, onde depositou todo o seu carregamento, e seguiu Rio acima a buscar novos remadores, deixando gravado numa árvore seu nome e o motivo por que aí ficava a sua carga, a qual confiava à proteção dos passageiros: tal como Napoleão, e com o mesmo êxito, aliás, — confiou-se à generosidade dos ingleses, na falta de cousa melhor.
Quando, dois meses passados, apenas, aí voltou, nada mais viu senão o rancho vazio e os restos do bote, tais quais hoje nós mesmos vemos. Vivem nestas regiões os índios Jacarés, tribo pacífica, e que as vezes vem em socorro aos viandantes: uns atribuem-lhes o roubo, outros a viajantes bolivianos que por aí passaram.
No dia seguinte 6, terça-feira, saímos da Guajará-mirim, por volta das 6 da manhã e pouco depois de meia hora abicamos ao Porto de cima (A) da Guajará-açu, também a margem esquerda e bastante parecida com aquela, com a diferença, apenas, que o seu qualificativo tupi indica. Dista uma Cachoeira da outra nove quilômetros, mais ou menos. Descarregou-se o bote, que desceu à sirga.
Guajará-açu (Fonseca - Google)
A estrada das cargas é de uns quatrocentos metros; mas nas atuais circunstâncias de vazante do Rio pode-se-lhe encurtar a distância num terço, levando-se, como se fez, as cargas pelo pedregal da margem.
Às 2 da tarde, continuamos a derrota. Com um seguimento de doze minutos descobrimos para NE um morrote que disseram-nos ser o da Cachoeira do Madeira, em frente à foz do Beni. O Rio já tornou-se piscoso; sendo digno de reparo a falta, quase absoluta, de peixe que encontramos nestes dias, mesmo nos remansos da outra Cachoeira, lugares que por serem de águas mortas são muito piscosos. Hoje tivemos algumas Piraíbas (Brachyplatystoma filamentosum), e Jaús (Zungaro jahu), de mais de metro e meio, algumas Traíras e Batuqueiros, a melhor espécie dos Pacus, muitas Piranhas e dois peixes, novos para mim, o Cascudo, espécie de Acará, e que é peixe muito comum nos Rios de Mato Grosso. Já se vê que o dia não foi mau para nós, que, sem sermos gastrônomos, bastante necessidade tínhamos de refazimento (provimento) da dispensa; e veio amplamente compensar-nos das misérias passadas.
À 7 (quarta-feira) partimos, logo às 5h30. Meia hora depois avistamos as primeiras lajes, Ilhotas avançadas da grande Cachoeira das Bananeiras, uma das maiores e mais respeitadas dos dois Rios. Às 7h40 passamos dois pequenos arroios, à direita e esquerda, à que se impuseram os nomes de Clemente e José Pires, em honra dos dois nossos excelentes auxiliares o piloto e o proeiro, manejador do remo grande. Uma hora depois, com uma velocidade de nove milhas por hora abordamos ao Porto superior da Cabeça da Cachoeira (A), à 3,5 léguas do Guajará.
Cabeça Bananeiras (Fonseca - Google)
Esta se estende por perto de dez quilômetros, apenas separada por um pequeno trato despido de rochas e parceis; o que fê-la considerar-se uma só, distinguindo-se-lhe as divisões com os nomes de Cabeça e Cauda.
Ricardo Franco demarcou a cabeça, isto é, o Porto A, aos 10°37’, e o Porto B, aos 10°33’S. O Sr. Keller dá-lhe a altura de 137,3 metros (109 metros) sobre o Mar.
É a Cachoeira das Bananeiras, uma formidável corredeira, com saltos e passos dificílimos umas vezes, e outras impossíveis de transpor na Cabeça há necessidade de varar as embarcações, isto é, de conduzi-las por terra do Porto A ao B, qualquer que seja o estado do Rio; e a Cauda, também oferece muita dificuldade, sendo todavia vencida, quase sempre, à sirga.
Chegados ao Porto de cima, A, da cabeça, ás 6h35, e afiançando alguns da tripulação que na vazante a corredeira perdia muito da sua força e dava Canal, que o nosso bote podia transpor facilmente; descarregou-se este, e, às 10 horas, começou a descer à sirga. O Canal ficava próximo à orla direita de uma grande Ilha, quase à meio Rio: diziam haver, também, outros mais chegados à margem esquerda e procurados nas enchentes extraordinárias.
Apesar do trajeto daquele Canal (C) ser de uns seiscentos à setecentos metros, o bote só alcançou chegar ao Porto B, no dia seguinte, ao meio-dia. O varadouro é de duzentos e vinte metros: no Porto B há um bom local para acampamento, junto à uma pequena abra (baía), com Praia de fina e branca areia, onde se desliza um veiozinho de excelente água.
Carregando de novo, desceu o bote às 2 da tarde; tomou direção à margem direita, passando entre uma Ilha, que logo aí se encontra e à margem esquerda, sondo esse Canal, que é, entretanto o melhor, ainda atravancado por um pequeno salto de palmo de altura logo em seus começos.
A montaria, que de tanta utilidade e necessidade nos era, desapareceu hoje, na passagem da Cachoeira, salvando-se a nado seus dois tripulantes. Vai-se-nos na pior ocasião, agora que os mantimentos nos vão escasseando; visto que com ela contávamos para os reconhecimentos do Rio, o exame dos passos difíceis e dos Canais, e também para prover-nos de peixe e de caça.
Cauda Bananeiras (Fonseca - Google)
Às 2h45 chegamos à Cauda, ou segunda parte da Cachoeira, formada de um sem número de Ilhotas e penedos, onde, na extensão de uns seis quilômetros, há necessidade de descarregar-se a canoa, de modo a folgar a proa. Saltaram também as mulheres, o criado e o servente.
A remos, raspando com uniformidade, força e presteza, a superfície das águas, deslizou-se o bote com o ímpeto de uma flecha, até que as vozes enérgicas e rápidas do piloto: “Remo grande! e — Raspa duro!” deu-nos a entender que estávamos num rebojo, ou com rochedo à proa: o proeiro Clemente enterrou o remo grande, a guisa de leme; os remeiros, dobraram de força e rapidez, mas roçando apenas a tona d’água; e o bote mudou de rumo, com uma prontidão e docilidade, a primeira vista, impossível em tão forte e vertiginosa corrente; fazendo-se em menos de seis minutos a travessia de mais de dois quilômetros dessa corredeira.
Nesta estação é isso mais fácil, dizem os navegantes; mas nas enchentes há necessidade de descarregar-se toda a embarcação. No Porto (B) abicou-se: a noite carregou-se o bote e às 5h23 do dia 9 seguimos viagem.
Quase uma hora depois se passava o Rio Preto, de quarenta metros (90 metros) de foz, à margem esquerda e junto à um morrote. Às 7h10 chegava-se ao Porto de cima da Cachoeira do Pau-Grande, cerca de vinte quilômetros abaixo das Bananeiras, onde descarregou-se completamente a embarcação para passai-a à sirga, no que gastou-se menos de duas horas.
Pau Grande (Fonseca - Google)
O caminho por terra é de trezentos e sessenta metros: formoso e aprazível é o acampamento do Porto inferior (B), assombrado por gigantes gameleiras ou sapopembas. Uma delas, e a maior, jaz por terra, parecendo ter tombado há pouco tempo, tão viçosa ainda está: mede trinta e um palmos e duas polegadas de circuito, dois metros acima do colo; dando espaço suficiente para sobre seu tronco passearmos, era alguns metros, meus doas companheiros e eu, á par uns dos outros. Cobrem-no inúmeras parasitas, entre as quais uma formosa “echmoea discolor”, em plena florescência. Tem esta Cachoeira cerca de um quilômetro de extensão: dizem ser terrível nas cheias dos Rios. Nas cercanias do acampamento encontrei o conamby (phyllantus c.), narcótico empregado pelos índios; e a spilanthes oleracea, ou jambú, também conhecida por agrião do Pará. 

Laje (Fonseca - Goole)

Aparelhado o bote, pusemos-nos em marcha às 14h10. Às 14h51 chegamos à Laje, à pouco mais de seis quilômetros abaixo da precedente. Apresenta-se-nos como uma corredeira de uns mil e duzentos à mil e quinhentos metros, inçada de penhascos e lajedos como os da cauda das Bananeiras; mas, em extensão menor. Saiu o nosso excelente piloto a reconhecer o estado atual da Cachoeira e procurar-lhe Canal; o que teve de fazer por si só, saltando pedrouças, galgando penhascos, atravessando lugares difíceis, ora ajudando-se de uma vara, ora de uma corda, que passava na cabeça de um cachopo (obstáculo), segurando nas duas pontas, uma das quais soltava, logo que era vencido o passo; colhendo-a toda, para empregar do mesmo modo mais adiante; trabalho de iminente risco, mas de extrema necessidade, por faltar-nos qualquer outro meio para tais exames. Afinal voltou satisfeito do reconhecimento, e às 15h46 desceu o bote com todo o seu carregamento; deslizando-se em vertiginosa carreira na corredeira, que foi vencida em cinco minutos, havendo mister do auxílio do remo grande. Na força das águas só a sirga pode ser vencida.
Às 4 da tarde passamos pelo Ribeirão da Laje, de sessenta a setenta metros de Barra (40 metros), à margem direita. Areias, repousando sobre argila pardacenta, com núcleos de silex, encobrem a formação geológica, que, entretanto bem se revela, poucos passos adiante, nos penhascos da Cachoeira.
Às 16h27, avistamos a foz do Beni, cerca de uma légua abaixo da laje, em cujo ponto de confluência, fundeamos às 5 horas em ponto.
Entre esse ponto e a Laje encontramos um bote boliviano, que subia quase já sem remadores, tendo perdido cinco, três dos quais, nos dois últimos dias, deixara enterrados na margem próxima. Ainda conduzia dois bastante enfermos, um deles agonizando. Deu-se-lhes alguns gêneros de refresco e ministrou-se-lhes medicamentos: o que temos feito sempre que encontramos necessitados, não somente doentes, mas, também, esses degredados do resto do mundo, que, afeitos à sociedade e conhecedores do benefício da medicina, no-los pediam como uma providência do futuro e recebiam-nos como um dom do céu.
III
A reunião das águas do Mamoré e do Beni dão origem ao grande Madeira, o mais possante dos tributários do Rio-Mar. Por perto de quatrocentos quilômetros desce encachoeirado, num meandro infinito de Ilhas, Penhascos e Cachopos, rumorejante e precipite (apressada); dando ao cabo desse pedregal, em Santo Antonio, uma diferença de cem metros abaixo do nível daquela confluência.
Seu primitivo nome era Ucaiári ou Ucaiali, vocábulos que dizem exprimir o mesmo que a denominação que hoje tem; e Irury, o Rio que treme, chamavam-lhe os Caripunas. Também na “Chorographia Histórica”, do erudito Dr. Mello Moraes (tomo II), lê-se que “na Instrução secretíssima (de 1 do setembro de 1772), com que S. M. manda passar à capital de Belém do Grão-Pará o Capitão-general João Pereira Caldas, ordena-lhe o Marquez de Pombal que estabeleça a Quinta Feitoria na duodécimo Cachoeira do Rio Madeira, em frente às fozes dos dois notáveis Rios Beni e Enym”, nome que pela primeira vez vejo dado ao Mamoré. Sobre Ucayali, alguns querem que esse termo seja tradução de Rio branco, o que não é desarrazoado em vista da cor das suas águas, tão barrentas como as do Mamoré; e isso quando dão também o nome de Rio preto a todos os de água clara, cristalina e pura, pela cor que aparentam ao confrontarem com os grandes Rios lodacentos a que afluem.
O nome Madeira, quer tradução de Ucayali, quer não, é-lhe muito próprio, pela quantidade enorme de madeiros que acarreta em seu curso; e por forma tal que, depositados nas baixantes sobre os parceis e cachopos e aí acomodados pouco a pouco, à medida que as águas vão crescendo, vão formando Ilhotas e tem formado Ilhas.
Enredados os troncos de árvores imensas, uns contra os outros; presos e como que arpoados aos penhascos; comprimidos e estreitados pela violência das águas; adquirem tal solidez na sua base de pedra que, as vezes, resistem vitoriosamente à fúria da torrente. Todos os detritos leves que as águas conduzem, os hydrophitos, que se desprendem das margens, as areias que vem em suspensão, a argila, a marga (greda argilosa calcária), aí se acumulam: aparece uma vegetação nova, e a nova Ilha apresenta-se com os caracteres de terra firme; caracteres que nem sempre perduram, desagregando-se a Ilha com as enchentes e descendo o Rio.
Ao Beni chamaram também Rio dos Troncos, pela mesma razão.
A palavra Beni quer dizer Rio, torrente d’água, ba-eni, no dialeto Ariocali e dos Caripunas; e é tão oriunda da grande família Tupica, a primeira povoadora da metade Oriental da América do Sul, que vêm associado a açu: Ueneaçu é a denominação que tem o Alto Rio Negro. Ao Rio Purus chamam também Beni os Pamaris.
O Vale do Madeira é um dos mais extensos do universo.
Começa nas escarpas dos Andes, tendo por limites laterais o araxá mato-grossense e o do Purus, e vai reunir-se ao do Amazonas. Chandless coloca suas vertentes a 1088 pés acima do nível do Mar.
É o Beni de um curso de 1200 quilômetros, isto é, quase igual ao do Mamoré. A Comissão de Limites do século passado dá a este 200 léguas, e 205 ao Beni; léguas de 20 ao grau.
Forma o Beni na sua embocadura duas Ilhas em seguida uma a outra; delas, a maior de quinhentos a seiscentos metros; ambas situadas a meio Rio. Sua foz medirá pouco mais de um quilômetro.
Os Srs. Keller colocam-na a 10°20’ Latitude Sul e 22°12’20” Longitude O. do Rio de Janeiro, e dão-lhe de altura apenas 122,45 metros sobre o nível do Mar.
A junção dos dois Rios, ele e o Mamoré, formou uma Ilha, da Confluência, onde os antigos planejaram a construção de um Forte para atacar e defender coisa nenhuma, mas atestar o senhorio do Mamoré e Madeira, como o Forte do Príncipe atesta o do Guaporé.
No arquivo militar existe um Mapa com o título: Planta do Forte que se construiu, na Boca do Rio Madeira, junto da sua confluência com o Mamoré.
Os antigos supuseram ser o Beni o Alto Madeira, e deram-lhe o mesmo nome de Ucayari, pela mesma razão de acarretar profusão de madeiros, em qualquer época, mormente nas enchentes. Pertencem-lhe com efeito quase todos os que o grande Rio conduz; sendo mui escasso, senão nulo, o contingente que o Mamoré, seu outro braço, lhe fornece; indo ele despejá-los no Amazonas, que por sua vez levando-os ao Oceano, as correntes marinhas vão depô-los até nas costas de Noruega e nos icebergs do polo.
Como já vimos, supõe-se que anteriormente a 1722 fora o Madeira percorrido por aventureiros em busca de escravos índios. Baena pretende que subira por ele, mas só até o Manicoré, o Capitão-mor do Pará, João do Barros Guerra, pelo correr de 1716. Narra a subida de Palheta, em 1723, de ordem de João da Mala da Gama, Governador daquela Capitania, por notícias obtidas de bandeirantes que tinham já ali ido em busca dos índios, e que diziam haver habitações de gente europeia acima das Cachoeiras; pelo que foi Palheta até a foz do Mamoré, encontrando uma canoa de índios castelhanos e um mestiço que os conduzia até a Aldeia da Exaltação dos Cayoabas, situada entre os Rios Iruéname e Manigue; sendo, porém, notável, que de volta ao Pará nada dissesse sobre o Beni e o Guaporé, que tanto na ida como na descida — não podiam passar-lhe desapercebidos.
Mesmo a crer-se o Padre Patrício Hernandes, dataria essa navegação do tempo de Ñuflo de Chaves, que por este Rio desceria quando abandonou seu estabelecimento de Santa Cruz, por meados do século XVI. Mas, poucos visos tem de verdade essa asserção quando se medita na admiração que causou em Belém a chegada de Manoel Feliz de Lima em 1743; admiração que fora sem motivo se esse caminho já tivesse sido descoberto.
Ñuflo de Chávez (1518–1568): conquistador espanhol e fundador de Santa Cruz de la Sierra, em 26 de fevereiro de 1561. Alguns autores afirmam que Ñuflo desceu o Rio Bauré, Mamoré, Madeira e Amazonas chegando até o Oceano.
Tem o Madeira de largura na sua origem cerca de três quilômetros; coberto literalmente aí, em todo o leito, de Penhas (rochas; penhascos) e Cachopos. Seu curso é de perto de mil e quatrocentos quilômetros, dos quais mais de mil de livre navegação. O Beni é formado pelas águas descidas dos Andes entre Custo e Potosi: seus principais afluentes são o La Paz, Chalumairi, Maquiri, Ortuiche, Apolobamba e Madidi.
A navegação do Madeira foi entretida principalmente pela Capitania de Mato Grosso nos seus melhores tempos de prosperidade. Cedo, porém, os Muras e os Mundurucus romperam em hostilidades, idênticas às dos Payaguás e Bororós, com as monções do Rio Paraguai, e o comércio e a navegação foram-se entibiando (enfraquecendo).
IV
Vamos notando, com alguma apreensão, que os Rios, que já deviam ir enchendo, continuam a baixar, e muito. Sabido como é difícil a travessia pelos muitos cachopos que atravessam toda a esteira dos Rios, subiu-se o Beni para ver se nos daria uma livre passagem, para descermos por sua margem esquerda ao Madeira, mas não se encontrou passo até além do três léguas; tornando-se cada vez mais difícil o seu trajeto, e daí em diante impossível.
Sábado 10, com alguma dificuldade, logramos entrar no Madeira, cortando a Barra do Beni, para investigar, nas proximidades do ponto de confluência da sua margem esquerda, o lugar conveniente para o estabelecimento do marco limítrofe, conforme um artigo das instruções, que exigia que fosse ele colocado:
1° à margem esquerda do Madeira, junto á confluência;
2° em frente ao curso do Mamoré, e
3° matematicamente no paralelo 10°20’.
Mas a natureza, que não fora ouvida nessa determinação, tinha resolvido diversamente. O ponto matemático não ficava em frente ao curso daquele Rio; e ainda o terreno era de tal maneira, que o marco nem podia ser construído junto à confluência, nem mesmo no ponto matemático. Pelo que não houve outro remédio senão deixar desatendida a determinação Ministerial, e ficou-se a quase uma légua (4.439,5 metros) do Beni; único local onde se encontrou terreno firme, e ainda assim não mui próprio, por ser sujeito às grandes enchentes do Rio; sendo entretanto o que mais correspondia aqueles exigentes quesitos.
Já nesta noite dormimos na Província do Amazonas; que a ela de direito pertence toda a margem esquerda do Madeira, como de fato também possui a outra toda.
A embarcação teve de ir completamente descarregaria, de tudo o que não foi concernente á ereção do marco; ficando toda a mais carga na Ilha da confluência, cuja latitude demarcou-se, depois, aos 10°22’30,26”.
Soberba mataria de madeiras preciosas cresce nesses sítios, povoados também de quantidade inaudita de pássaros, especialmente araras, papagaios e periquitos, cuja algazarra indescritível só à noite cessava.
Junto ao local escolhido, caia no Madeira um pequeno regato de águas cristalinas, das quais o encontro é sempre para nós uma fortuna, por serem as águas do Beni iguais às do Mamoré, e por conseguinte mesmas as do Madeira. Há no Sítio abundância da copaíba e de outros óleos preciosos como a hymenoea spectabilis (óleo vermelho) e o rnyrocarpus frondosus (o. pardo); laurineas preciosas, angelins, ucuúbas, e a negra e duríssima biriba, cuja estopa aproveitou-se para o calafeto do bote.
Já aparecem as colossais sumaúmas (chorisia ventricosa) e a mangubeira (erythrina), que dão um caráter típico à região; do mesmo modo que algumas maparajúbas (rhizophora?) de excelsa altura; castanheiros e o tauari (castanha-do-pará), cujas franças (conjunto de ramificações menores e mais altas das árvores) excedem a altura das demais árvores da gigante floresta e cujas raízes grossas e chatas, prolongam-se desde a altura de dois metros até o solo, afetando a forma de triângulos retângulos.
Entre os arbustos, encontra-se alguma poaia (plantas eméticas e rubiáceas), uma formosa cufeia (família das litráceas) de flores róseas, uma gloxinia (planta que sobressai pelo colorido rico de suas folhas aveludadas e grandes flores em forma de campânula) de flores rubras, fetos gigantes, maiores que os dos terrenos “noruégos” de Minas e do Rio de Janeiro, mas sem dúvida dos “trichopteris excelsa”; lindas epidendreas (espécies de orquídeas) e “arethusas”, “pseudo-catleyas” e lélias (orquídeas brasileiras), tillandsias (gênero botânico pertencente à família das Bromélias) de todas as espécies, duas espécies de baunilha, a mexicana e o baunilhão, e uma formosa “liliácea” ou “alstroemeria”, Aurea Alexandrina, já encontrada por mim, em 1861, em Minas Gerais, e que desde essa data até agora não logrei tornar a ver; algumas orquídeas, uma “amomacea” mui semelhantes nas flores à “alpinia nutans”, mas de fibras inodoras; algumas “resteaceas” e “eryocaulons” e “maranthas”, famílias de que são riquíssimas essas regiões.
Muita caça nos bosques: e tal cópia (abundância) de mutuns, que vinham ao nosso próprio acampamento, onde eram mortos, entre as barracas. Vi pela primeira vez e próximo ao meu pouso um ninho do beija-flor troglodito, num buraco na barranca. Criava dois filhinhos ainda implumes e muito feios, que a mãe todas as manhãs trazia fora da toca para aquecerem-se ao sol: no dia em que, arrastando-se sozinhos até a porta, já iam experimentando as forças, uma cobra os devorou. Muita cópia também de outros beija-flores, entre as quais um assemelhado ao “esmeralda”, o “petasophoro cornutus”, com seu topete cor de fogo, e que é uma das mais brilhantes variedades da família, e que aí vi pela primeira vez vivo.
Madeira (Fonseca - Google)
V
No dia 18 de novembro, domingo, ficou erigido o marco aos 10°21’13,65” de Latitude Sul, e 22°14’37,65” de Longitude Oeste do Rio de Janeiro. Desde o dia 13 chovia copiosamente; e com muito trabalho e cuidados, pôde-se obter a sua construção em tal tempo e em tal terreno.
Às 8 horas da manhã, saímos por entre o intrincado labirinto de rochedos e Ilhas de madeiros, a carregar o bote na Ilha da Confluência, onde aportamos às 9h30; e por igual caminho descemos para o Porto superior da sexta Cachoeira, Cachoeira do Madeira, na margem direita, onde abicamos ao meio-dia, com uma hora de navegação de abrolhos (rochedos quase à flor da água). Entre a Ilha da Confluência e ele ficam outras duas Ilhotas, por entre as quais passa o Canal: nós, porém, passamos pela esquerda da mais externa, tomando a face Norte do morrote que avistámos do Guajará, junto à qual é o Porto.
As cargas seguiram por um caminho de duzentos e cinquenta metros; o bote desceu completamente leve, beirando a margem do Rio. A sirga foi bastante trabalhosa; e a embarcação esteve por algumas horas engasgada numa pedra, em Sítio onde o Rio faz um salto de quase meio metro, já no fim da sirga. Com o emprego de uma talha fê-la o 1° Tenente Frederico o remontar novamente a corrente e descer por um canalete (Canal pequeno ou rego por onde corre a água), mais junto à margem. Nas enchentes é essa Cachoeira pior, havendo necessidade de sirga desde o Mamoré.
Com exceção das duas primeiras Cachoeiras, a passagem, isto é, os Canais, que vamos encontrando melhores, são sempre pela margem direita.
Choveu ainda todo o dia. O acampamento é bom, debaixo de altas sapupembas e junto a extensas praias de areia. Na mata adjacente bastante cacau, do verdadeiro e do cacauí: aí vi pela primeira vez o arbusto do guaraná, paulinia sorbitia, frutescente (que começa a frutificar), com seus cachos de bagas rubras.
A Cachoeira ocupa toda a largura do Rio, desde a entrada do Mamoré, e segue por mais de meia légua. Nos pedregais de sienito notam-se buracos ovais e elípticos, de um palmo de longo, em grande quantidade e as vezes reunidos em grupos.
Sienito: rocha eruptiva, de textura granular, formada de feldspatos alcalinos e anfibólios, com nenhuma ou pequena quantidade de quartzo.
As rochas destas Cachoeiras são de formação plutônica e revelam à primeira vista sua origem vulcânica, modificada, talvez, pelo metamorfismo. Difíceis algumas, para mim, de classificar pelo duvidoso dos sinais de apresentação, noutras o “facies mineralógico” designava-as satisfatoriamente. As grandes lajes “trachyticas”, quase lisas, de cor férrea ou do negro luzidio do alcatrão, são formadas, em muitos lugares, de camadas superpostas, mais ou menos onduladas, com rebordos curvilíneos; como se tivessem provindo de uma mataria em fusão, espessa, derramada em grandes jatos, formando lençóis; os quais se esfriassem, antes de alcançarem as últimas o espaço em que as primeiras se estenderam. Grandes penedos, uns prismáticos, outros arredondados, ora diques de diorito (espécie de rocha ígnea composta de feldspato e anfíbola) e de elvan (rocha dura de origem ígnea), ora blocos soltos; uns partidos ao meio por uma só fenda, as vezes de mais de braça de largura, aparecem aqui e ali; do mesmo modo que grandes caldeirões, buracos perfeitamente redondos, abertos na laje, cuja formação facilmente se explica pelo atrito do seixos rolados em pequenas depressões, as quais pouco a pouco, pelo movimento das águas e o correr dos séculos, vão se aumentando e arredondando.
Não é, porém, tão fácil a explicação para os buracos elípticos de algumas dessas lajes, e dos quais já acima se falou; todos das mesmas dimensões, e quase dispostos em direções uniformes, uns após os nutres, em duas e três fileiras; pelo que trazem à lembrança, ainda que sem semelhança alguma, as pegadas do homem. São mais notáveis as das Cachoeiras do Madeira, Bananeira, Ribeirão e Paredão: suas dimensões são um a três decímetros de longo, sobre um terço mais ou menos de largura e quase outro tanto de profundidade; conservando sempre a forma elipsóide. Serão sítios primitivamente ocupados por Corpos de fácil desagregação ou decomposição pelas águas, e que com o tempo ficassem vazias? Essas lajes, apesar de como que envernizadas pelo atrito das águas, e brilhantes de negro polido metálico, não é difícil classificá-las pela sua textura e sistema de aglutinação. São porhyros amphibolicos, obsidianas, sienitos, petro-silices, etc., rochas todas feldspáticas (de mineral duro, laminoso, composto de sílica alumina e potassa, que entra na constituição do granito). A canga (minério de ferro argiloso, pardacento) aparece em altos calotes, vermelho-negros, o que lhe valeu o nome túpico (relativo aos índios Tupis) tupanhonacanga; do mesmo modo que em outras Penhas sobrelevam-se diques de eurito (ou felsito - rocha ígnea, macrocristalina, densa, semelhante ao sílex na fratura, que consiste quase exclusivamente em feldspato e quartzo) compacto a irromper crostas metamórficas, ou que mostram-se engastados à rocha de gneisse (Rocha estratificada composta de feldspato e mica) em decomposição, cujas crostas derruídas pelo tempo deviam ter-lhes sido comuns. Nos grandes caldeirões, a seco, não são raros os conglomerados de seixos dioríticos, principalmente de dioríto negro, pequeninos, e que me pareceram aglutinados a ajudas do hidrato de ferro.
Misericórdia e Ribeirão (Google)
Trouxe comigo algumas amostras mais notáveis dessas rochas, e bem assim dos seixos intercalados nas falhas das lajes; onde um novo processo de aglutinação deles com a areia do Rio e as argilas, que este traz em suspensão, constitui um pudding (pudim) tão concreto e firme, que, apesar da tendência que têm as águas para desunir, e não agregar as areias, já resiste ao emprego da força para dividi-lo; rochas de sedimento raras nos lugares onde as águas passam com fúria, mas muito frequentes nos seus remansos.
Em uma destas Cachoeiras, creio que na das Bananeiras, encontrei um pedaço de carvão vegetal, lameloso, de camadas paralelas nitidamente acentuadas, e completamente petrificado, revelando grande antiguidade. Está no museu do Instituto Arqueológico Alagoano. Em todo o trajeto encachoeirado dos Rios só nos foi dado ver e investigar os terrenos mais adstritos à margem onde chegávamos; sendo que quanto á fronteira, nem ainda a distância nos foi possível calcular, tão atravancado é sempre o Rio nesses pontos de inúmeras Ilhas e Cachopos.
Uma observação curiosa aí fizemos, entretanto, e que não me parece mero efeito de óptica: nessas regiões das Cachoeiras, as águas do Rio são sensivelmente mais elevadas do nível ainda mesmo quando se deslizam unidas e calmas, sem marulhos nem escarcéus; o que se explica pelo obstáculo que os parceis o põem à água que desce, e que portanto aí se detém e avoluma.
VI
Às 5 da tarde de 19 saímos: andou-se uma hora num bonito estirão, livre de escolhos. No lugar onde pernoitamos vimos a sepultura recente de um dos remadores do bote boliviano, encontrado na entrada do Mamoré.
À 20 saímos às 5 da manhã, e duas horas depois descíamos pela Cachoeira da Misericórdia, tão terrível nas cheias, que mereceu tal nome; o qual é uma revelação da angústia porque passam os seus navegantes; sendo então tão furiosa a sua corrente, que alguns botes tem perdido o governo e ido precipitar-se na Cachoeira imediata, com a qual nesses tempos se emenda. À “quelque chose malheur est bom” (Há males que vêm para bem): a extrema rasante do Rio livrou-nos desta Cachoeira, como espera o nosso piloto nos livrará de outras; sendo, porém, triste a compensação que outras nos trarão.
A Misericórdia apresentou-se-nos como uma enorme laje, à margem direita, estendendo-se triangularmente para o Rio, onde se intrometia até quase seu meio. Na margem fronteira vê-se outra, menor. O Rio vai perfeitamente canalizando entre ambas; e nossa gente só teve que forçar remos e raspar duro para aguentar a rapidez da corrente e os balanços dos banzeiros.
Seguindo nossa derrota, às 8 chegamos a Cachoeira do Ribeirão, que é uma das mais temidas. É também à margem direita; o Porto de cima à esquerda de um morrote. É igualmente dividida em cabeça e cauda, aquela formada por grandes Lagos cobertas de blocos de diorito, soltos, outros formando diques, alguns partidos e alguns prismáticos. Nota-se aí a existência dos caldeirões e buracos elípticos da que acima falo.
Não dá Canal em tempo algum, havendo sempre necessidade de varar as embarcações. A nossa, que tão mal vai de saúde, causa-nos sérias apreensões, por essa nova viagem por terra. Descarregou-se-a numa grande e mais ou menos lisa laje, de uns oitenta metros de largura, que prolonga-se da base do morrote; e sobre roletes foi conduzida numa distância de trinta e poucos metros, de onde fez-se-a sair um pouco para galgar a aba direita do monte, subindo por ele uns cem metros. Aí topou-se outra laje, lisa, de 25 metros de largura, e à uns quinze, apenas, do Ribeirão, donde a Cachoeira tirou o nome. Não foi difícil o varadouro; com, apenas, dez homens fizemo-lo em outras tantas horas. Cuidou-se logo, antes de por o bote n’água, em tomar-lhe as costuras e fendas, com a estopa de tocari (castanha-do-pará) que trazemos de prevenção, e quando a nado, ratificar-lhe os concertos.
À boca do Ribeirão há algumas pedras, perigosas agora, em tempo de seca, por trancarem-no quase inteiramente. Não contávamos com esse transtorno; entretanto, após, difícil labutar, conseguimos vencê-lo ás 8h44 do 23.
Passava este Sítio, antigamente, por aurífero; e essa foi sem duvida a raia que levou Caetano Pinto a nele estabelecer, em 1799, um Posto Militar, destacado do Forte do Príncipe, e também um aldeamento do índios e escravos da coroa; com o fim de plantar e fornecer mantimentos aos navegantes, e garantir, por certo, os quintos do ouro. Era o destacamento de S. José do Ribeirão, ou segundo outros, de S. José do Montenegro. Durou até 1832, e ainda vêm consignado em alguns Mapas, notadamente no Atlas do Senador Candido Mendes, e Mapas de Ponte Ribeiro.
Ricardo Franco demarcou o começo da Cachoeira aos 10°11’S, e a cauda em 10°10’.
No local do acampamento, bastante agradável, há uma espécie de grumixameira, que só cresce nas pedras tendo suas raízes e parte do tronco debaixo d’água: o fruto assemelha-se nas cores à mangaba, mas é terrivelmente ácido. Deles fazíamos ótimos refrescos. A árvore é de galhos muito nodosos e irregulares, nimiamente fortes e flexíveis. É uma eugenia, notável por ser aquática. Talvez seja a mesma de que trata o grande Vieira, na sua Carta ao Padre Provincial Francisco Gonçalves, escrita em 5 de outubro de 1653, dando conta da sua exploração no Tocantins:
Aqui deu lugar o Rio a que se remasse um bom espaço até que demos em uma ladeira de pedra e água muito comprida, pela qual foi necessário irem subindo as canoas como por uma escada, à pura força de cordas, de braços e de gente, já fincando-se sobre umas pedras, já encalhando-se, já virando em outras. Foi esse trabalho excessivo, principalmente por ser tomado no rigor do sol; e para que fosse de alguma maneira vencível proveu a Divina Providência esse lugar de umas árvores não muito altas, nascidas nas mesmas penhas, as quais supriram nesta escada como de “maynús”, em que os índios se firmavam para poderem tirar pelas cordas e sustentarem-se a si e à canoa, contra a força da corrente. São estas árvores por uma parte tão fortes, que basta fazer preza em uma para suster a canoa contra todo o peso da água, e por outra tão flexíveis, que, se é necessário passar a canoa por cima dos ramos e ainda das mesmas árvores abatidas, cedem e tornam a surgir sem quebrar. Como nascem nas pedras a na água, parece que das pedras tomam o duro e da água o flexível, e de ambas o remédio para vencer a mesma dificuldade que ambas causam. Dão uma fruta semelhante e menores que as goiabas e araçás do Brasil, de que se duvida se são espécie, mas não se comem nem pode-se comer porque são duras como as pedras de que nascem.
A descrição quadra perfeitamente a grumixameira citada, notando-se-lhe apenas a diferença no fruto que aqui é brando, e si não se come é por ser nimiamente ácido, mas presta-se à excelentes refrescos, que suprem perfeitamente as limonadas.
Em quarenta minutos fomos chegados ao Porto superior da cauda (E), uns três quilômetros abaixo. Levou-se toda a carga por um caminho (G) de cerca de dois quilômetros, cortado de igarapés, que mostram pelos taludes serem fortes nas enchentes, e agora estão quase enxutos.
Numa grande gameleira vimos gravadas, em altura, mais ou menos de 3,5 metros, as palavras “Talento e Valor”, por algum viajante tão cônscio dos seus méritos como alheio à presunção. Tais, porém, fossem as dificuldades com que lutasse, e a habilidade com que as desfizesse, que a natural satisfação o levasse a lançar esse brado aos pósteros. Modesto, não quis deixar seu nome por sobrescrito; e eu, pachorrento cronista desta viagem, não sabendo, mas acreditando razoáveis tais predicados a quem se anima dirigir, sem ser como nós, obrigado, pela força das circunstâncias, viagens dessas — por estas Cachoeiras —, consigno o episódio.
Desde a tarde de 24 que começou a descer o bote. A sirga vai sobremodo difícil, estando o Rio extraordinariamente baixo. Somente às 5h10 de 26 pode-se abicar ao Porto F.
Às 10h30 da manhã seguinte, saímos; tendo-se previamente ido reconhecer a sirga da Pedra Grande, três quilômetros abaixo; a qual em tempos de água converte-se em possante Cachoeira.
Araras (Fonseca - Google)
Às 11h0, passamo-la à sirga e sem novidade. Outros dois quilômetros, adiante, tivemos também a sirga dos Periquitos, que goza da mesma reputação, e que passamos do mesmo modo. As duas constituem uma das dificuldades mais custosas de vencer, na Cachoeira do Ribeirão. Como já vimos, teve este ponto fama de aurífero: e Baena relata que João Fortes Arzão, apresentara ao terceiro bispo do Pará, D. Miguel de Bulhões, ouro e pedras preciosas nela e em outras dessas Cachoeiras achadas, pelo correr do ano de 1758.
À 1h30 avistamos a nona Cachoeira, Araras, cujo Canal se foi reconhecer; sendo encontrado mau, por seco: pelo que tomamos para o da margem esquerda, onde entramos ás 3h40, com grande perigo, mas livrando-nos felizmente após dezoito minutos de travessia nimiamente violentada pelos marulhos e escarcéus; graças, sobretudo, ao muito tino e sangue frio do nosso piloto José Pires.
Conhecem alguns esta Cachoeira pelo nome, também, de Figueiras, além do de Tamanduá que Baena lhe inculca, e Arey, como a trataram outros; mas o que mais lhe quadra é indubitavelmente o de Araras pela infinidade desses pássaros e ainda de papagaios, periquitos, maitacas, jaçanãs, etc., que, povoando todo esse sertão, têm aqui guarida especial; e levam, enquanto dura a luz do dia, a encher os ares de seus atroadores gritos. Os Srs. Keller colocam esta Cachoeira aos 9°55’5,8” de Latitude Sul e 22°15’20” de longitude Oeste. Dista do Ribeirão uns 27 quilômetros.
Às 5 horas da tarde, paramos na mesma margem; e no dia seguinte, 28, saímos, ao alvorecer, debaixo de repetidos e copiosos aguaceiros, que, desde ontem à noite, se têm sucedido a pequenos intervalos. Com vinte minutos de seguimento deixamos, à mão esquerda, o Paredão das Araras, amontoado de rochas de grés, superpostas de modo à semelhar um muro.
Às 9h10, passa-se o Abuná ou Rio Preto (9°40’14,94”S / 65°26’47,13”O), na margem esquerda. É o ponto mais Ocidental do Madeira, assim como o que lhe está fronteiro será o da Província de Mato Grosso. É aquele Rio de uns sessenta metros de largo na embocadura, e dista uns cinquenta quilômetros da Cachoeira das Araras, uns cem da foz do Beni; e mais de mil e trezentos da foz do Madeira. Os geógrafos da Comissão do século passado calculam essa distancia em 229 léguas de 20 ao grau.
Pederneiras (Fonseca - Google)
Às 11h30, chegamos à Cachoeira Pederneiras, a qual presentemente consiste numa crista de rochedos que atravessa o Rio de lado a lado, deixando-lhe quatro Canais.
Dá-lhe começo uma grande laje á margem direita.
Passa por má a sua travessia nas baixas águas; pelo que decidimos que se proceda a reconhecimento dos Canais. O piloto opina pelo central e os remadores pelo da direita, que fica encostado à grande laje: prevalece esta opinião e segue-se pelo Canal indicado, obliquando-se o mais possível para tomar a esquerda de uma Ilhota que fica fronteira ao central, indo assim sair-se no prolongamento do segundo Canal.
Vence-se a força da Cachoeira em dois minutos; ficando o bote alagado pelo embate dos fortes escarcéus que sofreu.
Os antigos demarcaram-na aos 9°31’20”; sua distância a das Araras é de uns sessenta e cinco quilômetros.
Um pouco abaixo da Pederneiras cai à margem esquerda do Madeira um Ribeirão, conhecido dos antigos pelo nome de Arapongas ou Ferreiros.
Duas horas e meia depois, passamos por um pequeno morro que nos ficou à esquerda, já estando à vista a Cachoeira do Paredão, distante três e meia léguas da Pederneiras.
Às 2h20, da tarde abicava-se no Porto (A); descarregou-se o bote o foi-se reconhecer a Cachoeira e verificar qual o Canal mais favorável.
No dia seguinte, 29, passamo-la. É mui semelhante na disposição dos escolhos às duas precedentes: é a mesma crista de penhascos atravessando o Rio, começando na grande laje da direita que vai até quase meio Rio. Na oposta elevam-se, bem fronteiros à Cachoeira, dois morrotes. É mais torrentosa e veloz do que aquelas outras.
Aliviou-se completamente a proa: saltaram as mulheres como de costume; mas estando nós ainda em terra, soltou-se a embarcação antes que embarcássemos, e teve de continuar a derrota.
Paredão (Fonseca - Google)
Vimos, então, e podemos avaliar o perigo à que se expõem essas embarcações, que passam como uma seta levada pela impetuosidade da corrente; ora sacudidas pelas ondas como se fossem uma cuia, ora caturrando feiamente e desgovernando, por ficar o leme fora do seu elemento. O nosso velho e estragado bote por três ou quatro vezes seguidas sofreu esse risco, sendo os marulhos a espaldar os remeiros tão fortes que encobriam o bote, afigurando-se-nos que o soçobrava.
Felizmente a ansiedade, apesar de parecer mui longa, foi de poucos minutos: o remo grande entrou em jogo; e o bote, deixando sua carreira precipite, rodou sobre si e caiu no remanso, vindo abicar na face direita da grande laje (B).
Apresentava-se esta, agora, com uma largura de cento e vinte o seis metros; faziam-lhe uma cintura, junto à margem, duas pequenas abras (fendas) que são-lhe os Portos, tendo aí apenas 85 metros de largo.
Essa penha é um dos mais magníficos espécimes de rocha, com suas camadas superpostas, reveladoras do estado de liquefação em que foram aí depositadas; parecendo, assim úmidas do Rio, grande derrama de mel espesso e quase a cristalizar, que vai lentamente escorregando em largos panos sobre camadas já solidificadas; o que ainda parece revelar, ou que a cristalização foi mui rápida, ou mui demorados os jorros da mataria em fusão. Mais próxima ao Rio perde esse caráter, e em vez de sua lisura e polimento torna-se grandemente anfractuosa (tem sucessivas saliências) sobre ela elevam-se diques de diorito, penhascos de três e seis metros de altura, enquanto que próximo afundam-se abismos, ou patenteia a rocha erosões largas e profundas, que serão bons Canais quando as águas as cubram suficientemente. A laje termina no Rio por um desses rochedos, de quatro metros de alto, o que vai orlando-a em toda a sua extensão. Na porção rasada, encontram-se a caldeirões circulares, com metro e mais de diâmetro e fundo, e as pequenas escavações elípticas, do tamanho das observadas nas outras Cachoeiras. Algumas das lajes são coloradas de vermelho luzente, talvez devida ao trióxido de ferro; outras negro-luzidias, devendo essa cor ao óxido daquele metal ou ao peróxido de manganês. Aparecem aqui e acolá ainda blocos fendidos longitudinalmente, e que guardam um paralelismo notável entre as faces da fenda, onde as saliências de uma correspondem às reentrâncias da outra.
Três Irmãos (Google)
Uns cinquenta metros abaixo da Cachoeira, e à mesma margem nota-se outro paredão, como o das Araras, formado de rochas superpostas de grés e gneise, afetando a forma dos “trapps”, com tanta naturalidade que se assemelha a uma velha muralha em ruínas. A textura de seu gneise assemelha-se ao basalto, mas a fratura é mais conchoide. Foi esse aglomerado o que deu o nome á Cachoeira.
Daí em diante até à Cachoeira dos Três Irmãos, que dista quarenta e quatro quilômetros, vai o Rio todo inçado de pedras, principalmente para o lado esquerdo ; o que no tempo de vazante, qual o de agora, determina fortes e incômodas corredeiras. Pôde-se avaliar o que será na força das águas.
VII
Já se vão vendo, por este trecho de Rio, pequenas barracas ou palhoças dos seringueiros, desabitadas presentemente, e servindo apenas de sinal de propriedade e pouso quando aí trabalham. A terceira que enfrentamos e que é a maior, tem em volta de si uma plantação de milho e mandioca. Pertence ao Sr. José Ignácio, morador logo abaixo. No seringal da margem esquerda há outra palhoça, que parece ser habitada, ou pelo menos frequentada. Extensa morraria segue por essa margem adiante.
Às 10 horas, encontramos um bote boliviano, que subia, e saudou-nos com dois tiros de espingarda e rufos de um tambor. É uma manifestação de polidez e atenção idêntica à saudação de bandeira e salvas dos navios no Oceano, e que, aqui, é uma verdadeira demonstração da alegria de encontrarem-se homens civilizados em regiões deles tão pouco concorridas.
Às 10h20, passamos duas barracas e roças, e pouco depois abicamos à margem direita para fazer-se nosso almoço. Em frente começa uma grande Ilha com roçados de milho e mandioca, e algumas bananeiras e canas. Aqui soubemos que o bote encontrado era boliviano e vinha de Santo Antonio da Madeira, donde partira ha seis meses tendo tido grande demora junto à Cachoeira do Caldeirão do Inferno, por haverem-lhe fugido os remadores.
Às 12h50 saímos. Passamos, à margem direita, o Sítio de José Ignácio, na encosta de um morrote fronteiro àquela Ilha. Estamos a uns quarenta quilômetros do Paredão, e pôde-se dizer que já aqui começa a Cachoeira dos Três Irmãos, tão temível no tempo das cheias, e que agora quase nenhuma diferença faz do curso natural do Rio, tão insignificante vai sua corredeira. Às 13h20, já tinha-mo-la passado.
Abaixo do Sítio de José Ignácio fica um Ribeirão, que suponho seja o Mutum-paraná, onde viviam, há bem pouco tempo, os Caripunas, mansos, outrora tão solícitos em ajudar os canoeiros nos difíceis transes dessas Cachoeira. O patrão do nosso bote, que não trouxera da Bolívia remadores suficientes para esta navegação, fiava-se nestes índios para os varadouros do Jirau e Teotônio; pelo que subiu o Ribeirão: mas voltou como fora por não havê-los encontrado. (...)
A um quarto de hora do Mutum-paraná há outra barraca, a mesma margem; e mais abaixa, onde termina a Ilha, outras duas, uma em cada orla do Rio. A margem direita se eleva aí numa Colina, com um morrete que não vem descrito nos Mapas. São muitos e extensos os seringais e cacauais destas comarcas dos cacaus a espécie silvestre, de que já falei, chamada cacauí, é desprezada, apesar de ser agradabilíssima no gosto e mui refrigerante. O Rio continua ainda atravancado de Ilhotas e cachopos.
Às 15h20, enfrentamos a outra barraca, à margem esquerda pertencente a bolivianos: meia hora depois duas outras, uma grande do mesmo lado, e outra pequena na margem oposta e junto a um morrete, onde começa um estirão, em cujo fim aparecem três outros morros, na mesma margem. Às 5 horas fundeamos na direita, adiante de uma pequenina barraca e em frente a outra maior, do lado oposto do Rio.
Sexta-feira, 30, saímos á hora costumeira, e poucos momentos depois deixávamos, á direita, uma plantação de milho e bananas, e duas barracas, onde apareceram duas mulheres. Às 7 horas, passávamos uma outra palhoça, à esquerda, e poucos momentos depois uma segunda. O Rio aqui mede, atualmente, uns quatro quilômetros de largura.
Às 7h44, entramos na cabeceira do Salto assim chamada por já começarem as águas a encachoeirar e correr precipites por entre os penhascos do Rio.
Segue-se por uns dez minutos a sirga, para passar uma corredeira difícil; e depois a remos, até dobrar a volta do Rio, aí mui angulosa, e onde, perto, está o Porto do Salto (A).
É esta a mais forte de todas quantas Cachoeiras temos passado, e a mais bonita, só tendo superior a do Teotônio, que é a segunda logo adiante. Fica também a quarenta e cinco quilômetros da dos Três Irmãos. Os antigos demarcaram-na aos 9°21’; os Srs. Keller em 9°20’5”S e 21°54’22”O. O Rio, depois de espraiar-se em quatro quilômetros de largura, estreita-se junto a uma pequena morraria de Colinas, numa volta á SE e desce por dois Canais, um a meio Rio, de cerca de trezentos metros, inçado de abrolhos e levantando formidáveis escarcéus ou banzeiros, e outro encostado à margem direita, de vinte à trinta metros de largo, que se precipita em vários saltos em escada, até um último de três metros, mais ou menos, de altura.
Jirau (Fonseca - Google)
Em tempos de cheia cobre todo o lajeado da margem, e forma outro canalete numa erosão que agora se vê no pedregal descoberto. Ha três para quatro anos, chegando aí três botes, o último não pôde, em tempo, encostar no Porto de cima, e quando, já a meio comprimento no remanso tinha ainda o resto na corredeira, esta fê-lo girar sobre si, arrebatou-o e foi despenhá-lo por este canalete. Deu-se então um episódio notável, a ser exato o que nos contaram: o patrão desse bote era filho do chefe da frota, que enlouqueceu ao ver o filho arrebatado: entretanto este salvou-se agarrando-se, no meio da força da corrente, a uma grumixameira d’água; e um índio, levado ainda com vida ao remanso oposto, pôde galgar uma pedra à esquerda do salto, donde foi também salvo.
Semelhante a quase todas as outras Cachoeiras, é esta formada por uma estreita crista de rochedos, que ligam os morros das margens, os quais não distarão entre si mais de quinhentos metros. À esquerda do Rio elevam-se quatro ou cinco Colinas e duas à direita; sendo maiores as que ficam no prolongamento do salto. O morro da direita oferece nos flancos as duas abras (A e B), que servem de portos para o varadouro. Este é de perto de oitocentos metros; bastante áspero e difícil na subida, e perigoso na descida, de qualquer modo que se o considere, pelo declive do terreno e pedregulhos que o atravancam. Cerca de trezentos metros bifurca-se o caminho, seguindo o varadouro por uns cem metros ainda, e outro caminho, para um terceiro Porto (B), único em que as embarcações podem carregar; descendo à sirga, e completamente leve, do fim do Porto do varadouro até aí, na distância talvez de quinhentos metros.
Começou-se a varar à tarde: no dia seguinte tinha-se conseguido subir apenas uns quarenta metros, partindo-se cabos e espias por várias vezes. Já estávamos tão afeitos a esses transtornos, que nossa resignação era verdadeiramente a do Evangelho: nesse andar só nuns doze dias, pelo menos, conseguiríamos vencer o varadouro, dado que nossos homens não afrouxassem, ou que não sobreviesse algum empecilho novo.
Varadouro do Salto do Jirau (Fonseca)
Felizmente, e quando menos contávamos com tamanha felicidade, ao meio-dia de 2 de dezembro, vimos aportar aí três botes com uns cinquenta homens e trinta mulheres, índios, e o dono, o Sr. D. Angel Chaves, e sua esposa, que vinham do povo de Trinidad para exploração da goma-elástica; e que, encontrando o varadouro ocupado, ajudou-nos da melhor vontade, e com tanta eficácia, que às 4 da tarde estava nosso bote a nado. Ainda nessas tarde passaram-se dois botes de D. Angel, e o último na manhã de 3, fazendo-se então, descer todo o carregamento para o Porto das cargas (B). Desceram os botes a sirga por um cavalete encostado á margem, e onde a corredeira é bastante forte.
D. Angel partiu primeiro, que era de nossa delicadeza ceder-lhe o passo. Vêm continuar seus trabalhos nos seringais; sua situação é abaixo da Cachoeira do Caldeirão do Inferno. De maneiras mui lhanas (francas; sinceras) e polidas, ele e sua senhora muito nos cativaram por sua amabilidade; e tanto mais soubemos apreciar esse encontro, quanto há longos meses não tínhamos a dita de praticar, já não digo com gente civilizada,mas com gente alguma. Às 11 horas, tinha chegado uma canoa do seringueiro João Ignácio. Cedemos-lhe o pouso e às 4h30 partimos.
Os dois acampamentos do Salto são bastante feios e agrestes; no de cima ha ainda vestígios da Aldeia de Balsemão, estabelecimento de Luiz Pinto em 1768, com índios Pamas.
Esse Capitão-general seguia do Pará para tomar conta de seu governo: com ele vinham quatrocentas e vinte duas pessoas, em quarenta e cinco canoas: se era gente de mais para puxar as canoas nos varadouros, não o era menos no consumo dos mantimentos; de que lhe foi de grande socorro a Aldeia do Salto Grande, estabelecida pelo Juiz Teotônio. À imitação desta, fundou a daqui; ordenando igualmente a plantação de mandiocas, milho, etc., para socorrimento dos navegantes.
Caldeirão do Inferno (Fonseca - Google)
É notável que esta Aldeia, como outras a beira destes Rios, cuja existência foi tão transitória, e das quais não se encontram quase vestígios, sejam ainda indicadas nos Mapas modernos; sendo mais admirável que lhes dê existência o do engenheiro residente da Estrada de Ferro do Madeira ao Mamoré, Edward D. Matthew no seu Map. to ilustred “Up the Amazon and Madeira Rivers trough Bolivia and Peru”; o cuja residência era tão perto, o cuja natureza de serviço lhe deveria ter dado pleno conhecimento desse território.
Nosso bote deixou o Canal entre a margem direita e uma grande Ilha, por pedregoso, e cortou diagonalmente a corrente até meio Rio, em cujo fio seguiu. Desde que entramos no Madeira temos notado que as noites tornam-se bastante frescas; tão frescas quão cálidos os dias; regulando do 30° a 34° centígrados a temperatura destes, e 16° e 20° a daquelas.
VIII
Caldeirão do Inferno. Às 17h10, chegamos ao alto desta Cachoeira, que fica a pouco mais de légua da precedente. Deixamos à esquerda o Porto de cima (A), que é onde costumam descarregar as embarcações; e seguindo por uma veloz corredeira, no Canal próximo a essa margem, fomos parar numa ponta de pedras (G), fronteira a extrema superior de uma grande Ilha, a primeira da Cachoeira.
Aí tirou-se grande parte da carga, folgando-se sobre tudo a proa; e o bote desceu á reconhecer o Canal, entre aquela Ilha e outra da esquerda, o qual fica em seguida e em frente à corredeira.
Nesse ponto o Rio como que se dobra sobre a esquerda, espraiando-se consideravelmente de modo que, medindo apenas quatrocentos metros de largo, toma agora largura mais que dupla, seguindo por vários canaletes entre as margens, e quatro Ilhas que aí se apresentam como que enfileiradas em uma mesma linha.
Infinidade de cachopos eriça os leitos desses canaletes, e os faz encachoeirados: parecendo os principais de seus penhascos, pela posição que tomam, os cabeços de uma grande laje que atravesse todo o Rio, da qual são as Ilhas os pontos culminantes.
É formosíssimo o quadro que aí se desenrola aos olhos do espectador, que nessa ocasião esquece os perigos aí iminentes para só atender ao belo da perspectiva; beleza ainda aumentada pelo movimento contrário das águas, que trazem os hidrófitos (plantas aquáticas) numa dança contínua, fazendo suas pequenas e virentes (verdejantes) Ilhotas subir e descer em duas linhas contínuas, paralelas e quase contíguas, ao passo que quedam-se estacionárias as que por uma mais violenta impulsão da corrente entraram no remanso, onde o movimento está nulificado (anulado).
Dessas Ilhas, a mais chegada à margem esquerda chamaram os antigos Ilha dos Padres.
No tempo das águas o canalete seguido é o do meio, em continuação do grande Canal da esquerda, por cuja corredeira descemos. É, aqui, entre as Ilhas, conhecido pelo nome de Canal dos Perdidos; entretanto, passa pelo melhor de todos, apesar do aterrorizador da denominação. Dele, também foi que proveio a Cachoeira o título que tem pelos grandes rebojos, correntes desencontradas e rodamoinhos que, no fim desse Canal, formam as suas correntes com as dos Canais laterais; os quais, estreitando-se o Rio logo abaixo dessas Ilhas, convergem todos naquela direção.
Tendo-se verificado estar a grande laje que, no começo do Canal dos Perdidos (E) atravessa o Rio, muito a flor d’água, e impossível de ser transposta, foi o prático reconhecer os outros dois Canais, o entre as Ilhas e o encostado à margem esquerda, opinando pelo último.
Aliviada, ainda mais, a proa do bote, remontou-se o Rio para buscar de novo o curso da corredeira; aproveitando-se agora a orla em que o movimento das águas é em sentido oposto. Desceu a embarcação, despedida como uma flecha até a extrema da ponte de pedra, onde descarregara; e aí, com ajuda do remo grande, mudou rapidamente de direção à esquerda, indo abicar em uma pequena Praia (B) fronteira ao segundo Canal.
Descarregou-se completamente o bote; costeou-se o Rio em toda a volta que faz com as cargas, levando-se-as ora pelos pedregais (lugar onde há muitas pedras) e areias da barranca, ora por dentro do mato, até um local em baixo (D), na linha de terminação das Ilhas e Canais, onde o Rio se estreitava, seguindo, então, no leito natural.
Nessa margem pernoitamos; e terça-feira, 4 de dezembro, logo às 4h30, desceu o bote à sirga, encostado ao continente. Apesar de completamente descarregado, muitas vezes bateu e ficou preso nas pedras, chegando todavia, ao Porto de carregar-se, oito horas depois.
Abstraindo do perigoso da travessia, é essa Cachoeira um dos trechos mais formosos do Madeira, com esse espraiado e suas formosas Ilhotas tão iguais e tão bem alinhadas.
Por todos, exceto pelo segundo canalete da margem direita, tem-se navegado, conforme as ocasiões; e, apesar da preferência que geralmente dão ao dos Perdidos, o seringueiro Ignácio de Araujo, que os tem explorado com interesse, adoptou (escolheu) aquele outro por encurtar muito o caminho, apesar de ter um salto, do dois ou três palmos, e de ser forte a sua correntada.
As héveas, o tocari e o cacau abundam extraordinariamente; e quase que com igual riqueza há copaíba, salsaparrilha e cravo. Sobre as cimas das altíssimas florestas distingue-se a fronde do tocari, alta às vezes de trinta metros. Mas, o que mais frisa a feição toda característica da flora destas paragens é a sumaumeira (chorizia ventricosa das stercularineas), formosa árvore, notável pela corpulência de seus ramos, os quais conservam grossura descomunal até quase seus últimos esgalhos.
Nem aqui, nem nas Cachoeiras da Laje e do Ribeirão, encontrei as pedras com inscrições de que fala Keller, “rock covered with spiral lines and concentric rings, evenly carved in the black gneiss... a perfect inscription whose straight orderly lines can be thought the result of lasy Indianus.—Hours of Idleness”.
Vamos traduzir, na íntegra, as observações de Franz Keller a que faz referência João Severiano da Fonseca lembrando, porém, que a maioria dos amazônicos caudais são prolíficos em Inscrições Rupestres e Petróglifos e que estas normalmente foram gravadas pelos ancestrais indígenas nas vazantes e que ficam, por isso, total ou parcialmente submersas no período das cheias.
Enquanto os índios trabalhavam arduamente nos barcos para a última das corredeiras, eu segui a altitude Meridional do Sol e encontrei na escalada sobre as rochas da margem direita, outra “pedra escrita”, coberta com linhas em espiral e anéis concêntricos, uniformemente esculpidas no material tipo gnaisse preto e semelhantes as do Caldeirão. Procurando mais, descobri uma inscrição perfeita, cujas linhas retas ordenadas dificilmente podem ser consideradas o resultado de índios preguiçosos Horas de Ócio”. Estes caracteres foram esculpidos num bloco liso muito duro de 3 pés e 4 polegadas de comprimento e de 31/4 pés de altura e largura. Estava em um ângulo de 45°, apenas 8 pés acima da linha d’água, e perto da borda da segunda Cachoeira menor, a Cachoeira do Ribeirão. A seção transversal dos caracteres não é muito profunda, e sua superfície é tão desgastada quanto à da inscrição encontrada mais abaixo. Em alguns lugares estão quase apagados pelo tempo e podem ser vistos distintamente apenas com uma luz favorável. Uma cobertura de esmalte marrom escuro, encontrada em toda a superfície das pedras às vezes agrupadas pela água, cobre o bloco bem uniformemente, tanto nos glifos (grego glúpho, esculpir, gravar) côncavos como nas partes intocadas, que muito tempo deve ter se passado desde que algum Índio paciente tenha despendido longas horas para cortá-la com seu cinzel de quartzo. Como as linhas da inscrição correm quase perfeitamente na horizontal, e como as figuras próximas ao Caldeirão e a Cachoeira das Lajes estão muito pouco acima da marca da água, a posição atual do bloco parece ser a original.
Infelizmente o nosso conhecimento da história da raça dos índios Sul-Americanos, antes da Conquista, é tão limitado (exceto, talvez, algumas tradições meio míticas, em relação ao Império dos Incas) que mesmo os mais importantes períodos da história, as andanças dos Tupis, por exemplo, são mais caracterizadas através de hipóteses inteligentes do que pelos fatos históricos. Sabemos das grandes expedições de conquistadores dos Incas. Pode ser que as inscrições no Vale do Madeira estejam conectadas com estas; ou serão ainda mais antigas? (KELLER)
Franz Keller – Cachoeira do Ribeirão
Este engenheiro dá a Cachoeira a altura de 92,8 metros sobre o Mar; e determinou sua posição em 9°15’40”S e 21°52’14”O.
Saímos às 2 da tarde. Com poucos minutos de viagem passamos as barracas de Ignácio Araujo, em número de seis; sendo aquela em que habita de sobrado e coberta de zinco. Deste ponto, olhando-se para os Canais da Cachoeira, o dos Perdidos parece calmo, e bem ásperos o segundo, da predileção do seringueiro, e o quarto, imediato ao por nós seguido.
Numa Ilha, próxima à vivenda de Araujo, há outra barraca, e pastos, onde vimos alguns cavalos e cabras. As barracas dos empregados vão surgindo, aqui e ali, à medida que avançamos, ora numa ora noutra margem do Rio, margens sempre de risonha aparência.
Duas horas, mais, de viagem, e deixamos à esquerda o Maparaná, Riacho de uns trinta metros de foz; e uma hora depois, a Esperança, bela e risonha situação, de D. Angel Chaves, o nosso amável companheiro, no salto do Jirau; colocada numa alta barranca, que devassa longo e formoso estirão do Rio. Essa pitoresca vivenda é também de sobrado, construiria e forrada quase toda de taquaruçus (taboca-gigante) e espigues (espigas) do carandá (carnaúba); cercada de varandas, cujas colunas de palmeira sustentam o teto. Cercam-na umas seis barracas de trabalhadores, pequenas o sem elegância.
Assistimos ao preparo da borracha; aceitamos o jantar com que D. Angel nos obsequiou e pernoitamos no Porto; agradecendo-lhe a delicadeza e extrema amabilidade com que nos queria agasalhar.
Morrinhos (Fonseca - Google)
D. Angel colhe de quatro a cinco mil arrobas de borracha, tendo empregado no serviço uns cento e cinquenta trabalhadores. Mostra-se desanimado dessa indústria, que diz, só aproveitar aos consignatários; os quais recebem o fruto desse trabalho por um preço quase nulo, que mal chega para satisfazer os juros dos empréstimos feitos aos seringueiros; sendo necessário muito esforço da parte destes e encontrarem mui ricos seringais, para conseguirem livrar-se das dívidas. E acrescentou— “Eis a razão porque ainda vim matar-me nesta indústria”.
Fronteira a situação da Esperança fica a Ilha de Sant’Ana, já consignada nos Mapas dos antigos.
IX
Às 5 da manhã de 5 de dezembro, deixamos o Porto da Esperança. Às 8h10, passamos, à margem direita, o Jaci-paraná, de cinquenta metros de largo, na Barra. Keller dá-lhe a Latitude Sul de 9°10’9” e a Longitude de 21°42’20”, do Rio de Janeiro.
Seguimos pelo braço à esquerda de uma comprida Ilha, conhecida pelo mesmo nome do Rio. Às 8h30, começamos á sentir as águas mais velozes, próximos da Cachoeira dos Morrinhos. Nessa altura fica a barraca do seringueiro Pastor Oyolas, muito aprazível à vista, mas em terrenos baixos. Dizem colher de três a quatro mil arrobas de goma; empregando sessenta a setenta trabalhadores.
Era, há poucos anos, uma das mais bonitas habitações dessas paragens; mas, foi completamente devorada pelas chamas em 1875.
Na outra margem, aparecem a pequenos intervalos três outras situações que nos indicaram como pertencendo aos Srs. Nicomedes, que tem uns quinze operários e colhe seiscentas arrobas; Justino, com vinte e cinco e colhendo mil; e Luigi Zárate, com vinte e tirando número igual de arrobas.
Dão nome à Cachoeira três morrotes à margem direita e um à esquerda, que se erguem fronteiros ao ponto, onde, pouco mais ou menos, a fúria das águas se abranda. Ao invés das outras, nesta Cachoeira o Rio se alarga um pouco, arqueando-se suas margens em largas reentrâncias. Uma grande Ilha cercada de Cachopos, principalmente na ponta inferior, está quase a meio Rio. Próxima à margem esquerda, que é lajeada, estende-se uma restinga de talvez sessenta a oitenta metros, com um Canalete que só dá passo nas enchentes. O Canal que tomamos é o que fica entre a restinga e os Cachopos à esquerda da Ilha.
A Corredeira começa uns quatro quilômetros acima da Cachoeira: por ela descemos, e com auxílio do remo grande, caímos no remanso, acima da restinga, e junto à laje da margem esquerda (A): tirou-se toda a carga, que foi levada por um caminho de pedregais ao outro Porto (B), uns duzentos metros abaixo. Voltou o bote águas acima a buscar de novo a corredeira, e por ela precipitou-se, passando em dois minutos, entre a restinga e a Ilha, e quebrando rapidamente à esquerda, para abicar no Porto B, onde recebeu as cargas.
Keller determinou-lhe a posição em 9°1’45” Latitude Sul e 21°20’57” Longitude Oeste. Dista cerca de onze léguas da do Caldeirão. Seus arredores são ricos de seringa, cacau, salsaparrilha, cravo, baunilha, copaíba e puchuri (Nectandra puchury), sendo extraordinária a produção da salsaparrilha. Aí pernoitamos. Já ouve-se distintamente o estrondo da queda do Teotônio.
Entre essas duas Cachoeiras dá Baena a existência de uma Povoação de Santa Rosa, fundada em 1728, da qual nenhuma outra notícia temos; parecendo impossível que esse escritor assim se enganasse em data, nome e posição, confundindo-a com a do Balsemão, fundada em 1768, no Jirau.
Saídos às 5h10, do dia 6, às 8 horas passamos a Canal uma forte corredeira, onde há, de ordinário, necessidade de sirgar-se. Já é cabeceiras do grande salto, a cujo Porto superior (A), fomos chegar às 9h40. É também na margem direita, e dista dos Morrinhos umas cinco léguas. Keller dá-lhe a altura de 83,4 metros sobre o nível do Mar; sua Latitude é de 8°52’, segundo Ricardo Franco e Ferreira; Keller dá-lhe a Longitude de 21°30’57”O.
Como no Jirau, no Salto do Teotônio o Madeira estreita-se numa garganta. Um morrote se eleva na margem direita, assentado sobre uma grande laje, com penhascos e recifes que vão quase unidos até um terço do Rio; na esquerda, adianta-se outra laje quase na mesma extensão; e entre uma e outra, três fileiras de cachopos, uns altos, outros a flor d’água, formam os degraus de uma escada, deixando ver uns quatro canaletes intermediários. Cerca de trezentos metros da primeira fileira baixa o Rio do nível, talvez em toda a largura, fazendo um salto de dois metros no segundo canalete da direita, igualmente eriçado de cachopos e penhascos.
Cem metros adiante, despenha-se num segundo salto de três metros; e a outra distância igual, em terceiro, que é o maior, com quase do dobro de altura, o qual lança-se com grande estrondo, mais aumentado com o que os outros fazem.
Teotônio (Fonseca - Google)
Nas enchentes esses saltos diminuem de altura; mas forma-se um novo, e igualmente violento, nas fundas erosões que apresentam as rochas da margem direita. Cerca de trezentos metros abaixo dos saltos, uma outra restinga atravessa o Rio de lado a lado, formando duas Ilhotas estendidas na largura do Rio, e enfrentando a lajeados de ambas as margens.
Os portos de embarque e desembarque (A e B) distam uns quinhentos metros, um do outro. O varadouro é de 550 metros, e sobe a galgar a encosta do morrote, cuja altura é de uns 15 metros. O Porto B é um saco de pouco mais ou menos trezentos metros de fundo e sessenta de largo, formado pelas duas lajes acima descritas, a do salto e a da restinga, e estendendo-se para a direita, onde forma uma linda Praia de areia branca, com um corregozinho de pura água que por ela se desliza, águas sempre apreciáveis nessas viagens de Rios lamacentos. O Canal da descida vai beirando essa segunda laje, onde há ainda um salto de palmo e meio de alto, e de muita velocidade na corrente.
É importante de ver-se essa catadupa do alto das rochas, onde se escavam as erosões, agora patentes; bem como o vasto lençol de águas acima do salto, tremendo e como que em ligeira ebulição, tão alto fica em relação ao observador, aparência que justifica o nome de Irury, que os índios lhe davam.
Às 6 horas de sábado, 8 de dezembro, terminou-se a coração do bote e às 10 horas seguimos; vendo-nos um pouco atrapalhados naquele canalete, cuja correnteza e os rodamoinhos quase nos levam para o falso Canal a meio Rio, onde a perda é certa. Com trabalho conseguiu-se atracar à grande laje junto ao salto, e espiada voltou a embarcação novamente ao Porto, donde saiu, melhor assegurada, pelo canalete.
Teve essa Cachoeira o nome de Padre Eterno, como também já vimos que era conhecida dos antigos pelo de Salto Grande. Esse que a distingue hoje é uma justa comemoração e homenagem aos esforços que fez o primeiro Juiz de Fora de Vila Bela, Teotônio da Silva Gomes, para aí haver uma fonte de socorro aos navegantes, fundando em 1758 um aldeamento com índios Pamas, sob a invocação de Nossa Senhora da Boa Viagem.
Mas, pouco durou: as correrias dos Mundurucus e Muras afugentaram pouco a pouco os navegantes e os aldeões; e já em 1802, a crer-se Baena, o Comandante do ponto do Grato, Capitão Marcelino, mandava, em 5 de novembro, uma guarda para nesse ponto vigiar a navegação. Em 1814, por Carta Régia de 6 de setembro — determinou-se a criação, aí, da Povoação de São Luiz — que não foi levada a efeito; apesar dos esforços do benemérito Ricardo Franco, que muito trabalhou para realizá-la.
Sirga dos Macacos (Google)
A Sirga dos Macacos. Às 11 horas notávamos que o Rio aumentava de velocidade, e em poucos minutos chegávamos a esse ponto, terrível nas grandes águas pelos inúmeros Cachopos, que alastram o Rio e o encachoeiram. Apenas houve necessidade da sirga por um quarto de hora; seguindo o bote sem maior novidade. Fica a pouco mais ou menos oito quilômetros do Salto do Teotônio.
S. Antonio (Fonseca - Google)
Santo Antonio. À 1 hora da tarde chegamos à Cachoeira de Santo Antonio; e dobrando uma ponta, à margem direita, em que o Rio se ensaca como na do Caldeirão do Inferno, seguimos, por um quarto de hora, até o Porto do desembarque (A). Tem esse braço do Rio Cerca de quilômetro e meio: o lado esquerdo é formado por duas grandes Ilhas e outras menores, que, atualmente, quase se ligam, tão estreitos são os filetes d’água que as separam.
Ao avizinhar-se da Cachoeira o Rio multiplica de velocidade: era frente ao leito há ainda duas grandes Ilhas, entremeadas de cachopos, quase iguais e paralelas como as do Caldeirão. Entre elas é que passa o Canal seguido pelos navegantes, até uma terceira Ilha (D), cuja direita tomam, para buscar o meio do Rio.
Chamavam os índios Aroyá esta Cachoeira; e os portugueses por corrupção Aroeira e também S. João.
Tínhamos vencido, em vinte e quatro dias, apenas, a região das Cachoeiras, passagem tão rica de perigos e horrores, como de peripécias extraordinárias e cenas admiráveis “qu’on est bien d’avoir une fois contemplées, mais dont on ne désire nullement courir une second fois lês danger”. Do Porto do desembarque ao posto militar de Santo Antonio gastamos vinte e cinco minutos; estando o caminho quase de todo inviável.
Está Santo Antonio aos 8°49’2,6”, Latitude Sul, e 21°29’8” Longitude Oeste do Rio de Janeiro, segundo Keller, que também lho dá, apenas, a altitude de 61,6 metros acima do Mar, e novecentos e um quilômetros de distância da foz do Madeira, quando Mathews dá-lhe 250 pés ou 76,8 metros.
Eleva-se numa barranca alta de trinta e seis metros à margem direita do Rio. Foi o primeiro estabelecimento do Madeira, fundado, em 1728, pelos Missionários dirigidos pelo Jesuíta Padre João de Sampaio, segundo narra Baena, dos quais alguns subiram as Cachoeiras e foram até as missões espanholas de Mamoré e Baures, e outros desceram a missionar nas margens do Jamari. À esse Padre Sampaio deve-se também a fundação da Aldeia Trocano, hoje Vila de Borba.
Pertence Santo Antonio de direito à Província de Mato Grosso, cujos limites ainda ficam muitas léguas ao Norte, e de fato, à do Amazonas, que é quem fiscaliza toda a região do Madeira, e a provê de guarnição, autoridades civis e eclesiásticas. Aí deve começar a via férrea, corretivo das dificuldades do comércio e navegação das Cachoeiras; estrada, mal aventurada, já duas vezes iniciada, e duas vezes morta. Compõe-se de várias casas, umas cobertas de zinco, outras de palmas, havendo mesmo uma de sobrado, onde nos alojamos.
Junto à ribanceira há um grande barracão, depósito do materiais, mantimentos e medicamentos da Companhia da Estrada de Ferro, grande parte dos quais estão deteriorados e em breve estarão completamente perdidos. Sobre o terreno vêm-se milhares de trilhos, alguns dormentes, restos de guinchos e guindaste a vapor, cujas peças aparecem aqui e ali esparsas, algumas quase enterradas, e outras sem dúvida completamente.

Cachoeiras do Rio Madeira (Autor)