MAPA

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sábado, 4 de agosto de 2012

“Bandeira” de Francisco de Mello Palheta

Na Bacia do Madeira, Francisco de Melo Palheta, experimentado homem dos sertões amazônicos, subindo o Rio, em 1722, em missão oficial, verificou o exercício da soberania lusitana em toda a extensão da grande artéria. E atingindo as missões espanholas jesuíticas de Moxos, complementando a sondagem política que estava realizando, intimou os Missionários a abandonar aquelas posições, afirmando-lhes que estavam operando em terras pertencentes à Coroa Portuguesa. Não fosse obedecida a intimação e os governantes paraenses possuíam matérias para obrigá-los a executar o que lhes determinava (REIS, 1948).
Embora se tenha notícia de que, por volta de 1650, a “Bandeira dos Limites de Antônio Raposo Tavares” tenha descido todo o Rio Madeira e alcançado Belém três anos depois de ter saído da Vila de São Paulo, não existe nenhum registro de sua porfia pelas Cachoeiras do Rio Madeira. Missionários e militares penetraram, mais tarde, no vale do Madeira, mas sem percorrê-lo por inteiro, por isso, a “Bandeira” de Francisco de Mello Palheta é considerada a primeira e uma das mais importantes realizadas no século XVIII.
-  Francisco de Mello Palheta
O jornal “A Tribuna”, de Santos, São Paulo, na sua edição especial, de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade publicou interessante matéria sobre o café onde surge a figura de Palheta. O artigo foi baseado no livro “A antiga produção e exportação do Pará” do escritor Manuel de Mello Cardoso Barata. Reproduzo fragmentos de ambos os textos que aludem ao insigne militar.
A Tribuna” relata:
Francisco de Mello Palheta, o Bandeirante do café - Dentre as zonas do nosso gigantesco solo, coube ao Pará a prioridade do cultivo da preciosa rubiácea; e a Francisco de Mello Palheta a glória de ser o portador de mil e tantas bagas e cinco espécimes dela, desde a Guiana Francesa até aquela circunscrição da nossa pátria, então simples possessão portuguesa. Por ocasião do ingresso do café, ali, era Governador o Capitão-general do Estado do Maranhão e Grão-Pará, João da Maia Gama, que havia sucedido, em 1727, a Bernardo Pereira de Berredo, o conhecido autor dos Annaes Históricos do Maranhão. Houve, a esse tempo, necessidade de mandar-se à fronteira, assim como a Caiena, para quaisquer entendimentos com os franceses da Guiana, uma ligeira missão de caráter oficial. A fim de dirigi-la, foi escolhido o Sargento-mor (posto que hoje corresponderia a Major) do exército colonial e brasileiro de nascimento, Francisco de Mello Palheta, que já se salientara muito, em 1722-23, na exploração do Rio Madeira, e que também tinha o posto de Capitão-Tenente da Guarda Costa, sendo assim militar de terra e Mar. Pois bem, ao retornar a expedição da Guiana, trazia consigo o seu esforçado Comandante mil e tantas frutas e cinco plantas do vegetal alienígena, que se tornaria, de futuro, o tesouro da agricultura nacional. Que a Mello Palheta se enderece, pois, a gratidão de todos nós, brasileiros, pelas meritórias consequências da sua ação prestimosa e relevante. E aqui seja dito de passagem: De Clieu, o introdutor do café na Martinica, (...), já teve, em Fort-de-France, a devida consagração, enquanto que a memória de Palheta ainda espera a homenagem que indeclinavelmente lhe deve a nacionalidade.
Assim é narrada a viagem da expedição:
Deixando Belém em 1727 (maio) - conforme opinou o denodado Sargento-mor, chegando a Caiena, conheceu de perto a valiosa rubiácea, que já viçava havia alguns anos. Percebeu, logo, com aguda perspicácia, os magníficos proventos que adviriam para a Pátria e a Real Coroa do vegetal exótico, e procurou sem tardança obter mudas e bagas novas.
É de crer lhe custasse isso riscos e sacrifícios, pois entre os franceses se adotara o terrível monopólio holandês, a ponto do Governador decretar que ninguém desse aos portugueses café capaz de reproduzir-se.
Galanteria de uma dama francesa - A insciência (falta de saber) do modo exato por que foi conseguido na Guiana o café introduzido no Brasil, em maio de 1727, pelo audaz explorador, e bem assim a alta valia dessa façanha, contribuíram para tecer-se em torno do caso uma sorte de lenda - propalada pelo bispo D. João de S. José, prelado Beneditino, depois de sua viagem e visita ao bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763, escreveu na “Viagem e visita do sertão em o bispado do Grão - Pará em 1762 e 1763” e aceita por escritores subsequentes:
Aqui vimos, pela primeira vez, a árvore do cacau, plantada pela natureza, de que estas linhas do Rio abundam nas vizinhanças de Gurupá, são assim das árvores do café, pois todas desta espécie têm sido plantadas, e primeiro vindas de Caiena, em tempo do Governador do Estado - João da Maia -, o que se deveu à generosidade de uma francesa, mulher do Governador da Praça, que, sabendo a proibição e estudo com que andavam os seus nacionais para que se não comunicasse a um português, de quem ignoramos o nome, e só sabemos ser Palheta, que ali se achava, indo este visitar seu marido, e saindo todos a passeio, ela generosamente lhe ofereceu, em presença do esposo (que se sorriu) uma mão cheia de pevides (sementes) de café, praticando a galanteria de ser a mesma que lhas introduziu no bolso da casaca, obrigando-o de tal sorte que lhe não sobejaram as expressões com que mostrou agradecer muito à madame esta franqueza e bizarria; e logo em Belém se repartiram pelo Governador e homens de negócio, entre os quais não foi dos segundos Agostinho Domingos, natural do Arcebispado de Braga, junto às Caldas do Gerez, e casado em Belém, homem de muita honra, verdade e cabedais, cujo procedimento autoriza bem as suas cãs (cabelos brancos) na avançada idade de oitenta anos, de quem recebemos imediatamente essa espécie, quando nos mostrou seus cafezais do Rio Guamá. (A Tribuna, 26.01.1939)
Damos sequência com o texto de Manuel de Mello Cardoso Barata:
(...) não é verdadeira, nem verossímil, a versão, propalado pelo bispo D. Frei João do São José de Queiroz e repetida por outros escritores, de que as sementes de café trazidas por Francisco de Mello Palheta foram-lhe dadas pela mulher do Governador de Caiena (Claude D’Orvilliers), a qual, por galanteria, metera no bolso da casaca (do colete, dizem outros) de Palheta uma mão-cheia delas, na presença do próprio Governador.
Sabendo-se, porém, que esse mesmo Governador havia ordenado, por um bando (anúncio público), que pessoa alguma desse aos portugueses (Palheta e seus companheiros de viagem) “café capaz de nascer”, não se pode crer que a própria mulher desse Governador transgredisse a ordem dada, e na sua presença, mesmo por galanteria, descabida e criminosa, no caso.
Além disso, Palheta trouxe “mil e tantas frutas e cinco plantas de café”, que naturalmente não poderiam ter caído em todos os seus bolsos, da casaca ou do colete.
Pela petição dirigida por Palheta ao seu monarca, alegando serviços prestados, e solicitando concessão de favores, podemos verificar como ele próprio conta o caso do café, de modo que não se pode pôr em duvida a veracidade da sua afirmativa. Nenhuma referencia faz ele à aludida galanteria da senhora D’Orvilliers, o que parece não deveria ter tido ele motivo para calar, e antes para referir com louvor. A verdade através curiosa petição de Mello Palheta - Acham-se os meandros do problema, no entanto, positivamente iluminados por uma petição do próprio Palheta, inserta nos “Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará” (Cod. de Alvarás, Cartas Régias e Decisões. Reinado de D. João V. 1734), reproduzida no livro de Manuel de Mello Cardoso Barata, conforme se lê a seguir, e dirigida a D. João V:
Sr. - Diz Francisco de Mello Palheta, Capitão-Tenente da Guarda-Costa, que ele, Suplicante está atualmente ocupado no serviço de Vossa Majestade e somente com quarenta e oito militares de soldo; fazendo gastos excessivos e experimentando grandes perdas, como na viagem do descobrimento do Rio da Madeira, fez de gasto um conto, e duzentos mil réis; porque o mandou o Governador João da Maia Gama ao do descobrimento até as Índias de Espanha, como fez, até chegar à Cidade de S. Cruz, e nas grandes Cachoeiras teve três alagações em que perdeu tudo quanto levava, e depois foi mandado pelo nosso Governador a correr à Costa e à Vila de Caiena; fazendo também grandes gastos, sem que das viagens fizesse negociações algumas; e vendo o Suplicante que o Governador de Caiena deitava um bando à sua chegada que ninguém desse café aos Portugueses capaz de nascer, se informou o Suplicante do valor daquela droga, e vendo o que era fez diligências por trazer algumas sementes com algum dispêndio da sua Fazenda, zeloso dos aumentos das Reais rendas de V. Majestade; e não só trouxe mil e tantas frutas que entregou aos Oficiais do Senado (Vereadores da Câmara Municipal) para que as repartissem com os moradores, como também cinco plantas, de que já hoje há muito no Estado; e como o Suplicante se acha muito falto de servos, e tem mil e tantos pés de Café, e três mil pés de Cacau, e não tem quem lhos cultive, e se acha com cinco filhos, peço a vossa Majestade lhe faça mercê conceder por seu Alvará cem casais de escravos de Sertão do Rio Negro, ou outro qualquer, que se lhe oferecer, como também mandar se dêem ao Suplicante cinquenta Índios das Aldeias de Cahabe (por Cacté, hoje Bragança), Mortigure (por Murtigura, hoje Vila do Conde), Simouma (por Sumauma, hoje Beja), Bocus (por Bócas, hoje Oeiras), Caricurú (por Uricurú, hoje Melgaço), Mongabeiras (por Mangabeiras, hoje Ponta de Pedra), Camutá, Gorjones (por Guaianas, depois Lugar de Vilar, hoje extinto), para fazer os ditos resgates; e como o Suplicante está alcançado, e não tem com que comprar o necessário da Fazenda dos resgates, mandar se lhe dê tudo o necessário da Fazenda dos resgates para que depois o Suplicante inteire, e pague da mesma viagem o custo que fizer.
E. R. Mcê. (Excelentíssima e Reverendíssima Senhoria)
Esta petição não foi assinada, nem datada, segundo era costume do tempo em que ainda não se tinha inventado o imposto do selo; mas, a julgar pela data da Ordem Régia, que é de 16 do fevereiro de 1734 (original, no Cod. e Arquivo Público do Pará), junto à qual por cópia enviada, por cópia autêntica, ao Governador do Estado, para informar, deve ter sido escrita provavelmente em 1733. (BARATA)
-  No Encalço da Narração
Após concluir minha jornada pelo Rio Madeira solicitei aos meus amigos que me ajudassem a encontrar a “Narração da viagem do descobrimento que fez o Sargento-mor Francisco de Mello Palheta no Rio Madeira e suas vertentes...”. A mobilização foi impressionante e em seguida obtive a informação desejada. Vou reportar apenas as duas primeiras que chegaram, coincidentemente, no mesmo dia (01.04.2012).
A primeira de um velho amigo e um ícone da Engenharia Militar Brasileira, o General de Brigada Tibério Kimmel de Macedo, autor da obra “Eles não viveram em vão”, que conta a epopeia do 5° Batalhão de Engenharia de Construção:
(...) Abaixo, vai a mensagem que mandei para meu amigo Emanuel Pontes Pinto, historiador residente em Porto Velho. Espero que ele te possa ajudar. Neste texto que mando, abaixo, há uma referência à obra de Capistrano de Abreu. Quem sabe poderás encontrar, ainda, um exemplar da dita cuja. (...)
Em, em seguida (04.04.2012), o grande pioneiro comunicou que:
(...) Acabo de receber o livro “Caiari” que me mandou o Dr. Emanuel Pontes Pinto. O Anexo II traz o relato da Expedição do Palheta. (...)
A segunda foi a do Professor Doutor Dante Fonseca, da Universidade Federal de Rondônia, historiador e escritor renomado a quem tive a honra e o privilégio de conhecer e entrevistar em sua residência em Porto Velho, RO, antes de meu périplo pelo Madeira:
ABREU, J. Capistrano. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989, você encontrará o anexo “A Bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira”.
Graças ao empenho dos caros amigos compilei a Narração da Viagem de Palheta e publiquei na imprensa o artigo - “Bandeira” de Francisco de Mello Palheta. Alguns amigos pesquisadores, mais afeitos aos “detalhes”, não gostaram do título afirmando que não havia sido uma “Bandeira” e sim uma “Entrada”. Informei, então, que baseara o título do artigo na minha fonte, o Anexo ao livro do grande historiador João Capistrano Honório de Abreu, que o denominara “A Bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira e o Documento da Narração da Viagem”.
Embora geralmente se defina como “Entradas” as expedições oficiais, organizadas pelo governo da autoridade colonial e como “Bandeiras” as que tinham motivação particular, organizadas pelos colonos, sabe-se que algumas das supostas “Bandeiras” recebiam subsídios das autoridades coloniais com o objetivo de não acirrar os ânimos castelhanos, deixando, portanto esta definição bastante permeável. Grande parte dos historiadores portugueses não se preocupam com este tipo de distinção generalizando as incursões pelos sertões brasileiros somente como “Bandeiras”.
-  Contexto Histórico
Em 1714, o Governador da Capitania do Maranhão João de Maia da Gama, foi informado pelo Padre Bartolomeu Rodrigues, da Missão de Tupinambarana, da existência de índios predadores e de europeus no Alto Madeira, embora não tivesse condições de confirmar se estes eram espanhóis ou portugueses, além disso, D. João V, Rei de Portugal, já manifestara o desejo de tomar posse de todo o Vale do Rio Madeira. Em 1715, os Tora e Mura declararam guerra aos colonos luso-brasileiros expulsando-os do Baixo Madeira. O Governador do Grão-Pará determinou ao Capitão João de Barro Guerra que os expulsasse da Foz do Rio Madeira. O Capitão João de Barro perseguiu os Tora, Rio Madeira acima fazendo-os recuar até a altura de Manicoré. No período de 1718 a 1722, os Mura foram atacados pelas tropas de resgate comandadas pelo Capitão Diogo Pinto Gaia que conseguiu aprisionar mais de quarenta guerreiros conduzindo-os para Santa Maria de Belém do Grão-Pará (Belém). O Governador João de Maia decidiu, então, organizar uma Bandeira ao Rio Madeira, que deveria percorrê-lo, desde a Foz até a nascente, confiando o Comando da Missão ao Sargento-mor Francisco de Mello Palheta. A Bandeira era formada por 30 Soldados e 98 índios flecheiros embarcados em 7 canoas, e devia realizar o levantamento da fisiografia do Vale do Rio Madeira, descobrir suas nascentes, contatar pacificamente os nativos e levantar as atividades econômicas e políticas dos colonos e religiosos lusos e espanhóis.
Em 1722, setenta e dois anos depois de Raposo Tavares, Mello Palheta sobe o Rio Madeira, enfrentando suas Cachoeiras, uma odisséia que foi relatada por um dos membros de sua expedição, que permanece anônimo, e publicada, pela primeira vez, nos números 19 e 20, ano I, de 11.10.1884 e 24.11.1884, da Gazeta Literária, Rio de Janeiro, sob o título:
Narração da viagem do descobrimento que fez o Sargento-mor Francisco de Mello Palheta no Rio Madeira e suas vertentes, por ordem do Senhor João da Maia Gama, do Conselho de Sua Majestade, que Deus guarde seu Governador e Capitão-general do Estado do Maranhão,
desde 11 de novembro de 1722 até 12 de setembro de 1723.
Em 11.11.1722, a Bandeira partiu de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, chegando a Foz do Rio Madeira, no dia 02.02.1723, navegando Rio acima até o dia 19, aportando em Jumas onde iniciaram a construção de um Arraial onde edificaram uma Igreja dedicada a Santa Cruz do Irumá, quartel, armazém, casas e seis canoas menores capazes de realizar a travessia das Cachoeiras.
Partiu a tropa da Cidade de Belém, Praça do Grão Pará, a 11 de novembro, em que veio o próprio General despedir-se do Sargento-mor e Cabo (Palheta), acompanhado da nobreza da terra; e já despedidos demos uma salva geral, e emproando as proas ao Norte que seguíamos Leste-Oeste, nos fomos despedir de Nossa Senhora do Monte Carmo, a quem nos encomendamos e a tomamos por estrela e nossa advogada, para com seu patrocínio vencermos este impossível e um descobrimento de todos tão desejado.
A continuar nossa derrota se seguia a galera “Santa Eufrozina” e “São Ignácio”, em que vai o Cabo, que esta é nossa capitânia; seguia-lhe a galeota do Padre Capelão com a invocação de “Santa Rita e Almas”, e a esta, a canoa “São José e Almas”, que serve de armazém em que vai o maior computo de Soldados; a esta se seguia a galeota “Menino Deus”, em que vai o Sargento com mais a infantaria, e por último a galeota “Santa Rosa”, em que vai o Capitão de infantaria da mesma tropa servindo de Almirante.
Fomos buscando o Rio Mojú, e seguindo por ele a nossa jornada até o estreito do Igarapé-mirim, que desemboca no Rio dos Tocantins, onde está fundada a Vila de Cametá, em dois graus ao Sul; nessa dita Vila estivemos três dias, à espera da infantaria volante que dela nos acompanhou e levamos de guarnição; e daqui demos ordem a partir buscando o rumo que havemos de seguir pelo grande Rio das Amazonas, o qual é um dos maiores que no mundo se tem descoberto, que corre de Leste a Oeste; e o seguimos até embocarmos pelo famoso Rio da Madeira (ou Rio Venes, como é chamado Beni pelos espanhóis das Índias de Espanha no Reino do Peru), que nele agora descobrimos, e corre este de Sul a Norte, pelo qual fizemos entrada, a 2 de fevereiro de 1723, e gastamos dias de boa marcha 17 até aonde nos aposentamos (abrigamos) a fazer Arraial em uma tapera do gentio Iumas, sítio admirável em tudo, assim para a nossa segurança, como em o necessário no qual o Cabo se lhe pusesse por invocação Santa Cruz de Iriumar, onde fizemos Igreja, armazém, Corpo da guarda e casas necessárias; aqui mandou o Cabo repartir a infantaria em duas esquadras, donde atualmente havia uma sentinela que guardava munições e fazenda real e de noite uma ronda para rondar a sentinela, canoas e todo o Arraial.
Depois de tudo acima disposto, ordenou o Cabo se fizesse seis galeotas para se poder nelas passar as Cachoeiras; o que fez pela informação que teve se não podia fazer entrada com as grandes com que nos achávamos pela terribilidade das pedras. Feitas as ditas galeotas as preparamos de todo o necessário e de quantidade de cabos para as puxarmos pelas Cachoeiras; neste tempo se esperava já pelo socorro da cidade (Belém do Pará), o qual chegou a 4 de junho, e havia muito tempo que os miseráveis Soldados, índios e inda o Cabo, depois das frutas do mato acabadas, comia unicamente carne de lagartos, camaleões e capivaras, por não haver outro mantimento, pois não tínhamos outra coisa a que tomássemos.
Permaneceram em Jumas aguardando os mantimentos solicitados a Belém do Pará, que chegaram, em 04.06.1723, juntamente com o Padre João de Sampaio. No dia 10 de junho, Palheta nomeou Lourenço de Mello Governador do Arraial de Jumas, distribuiu os 118 expedicionários em dez canoas e iniciou a subida do Rio Madeira.
Com o dito socorro também veio Reverendo Padre Mestre João de Sampaio em sua galeota, e tanto que o Cabo se viu socorrido de nosso Excelentíssimo General, tratou logo de se por a caminho, o que o fez a 10 de junho do dito mês de junho com 10 canoas pequenas, que são as seis que se fizeram e quatro que tínhamos. Antes de embarcar encarregou a Lourenço de Mello o Governo do Arraial encaminhando-lhe muita paz, união e conservação da gente que lhe deixava, assim Soldados como índios, deixando-lhe as disposições Por escrito firmado do seu nome.

Salto Teotônio (Franz Keller)
 No dia 13 de junho, festa de Santo Antonio, foi celebrada a Missa pelo Capelão da frota na Ilha Nova próximo ao igarapé Carapanatuba.
Fomos seguindo nossa viagem por aquele temerário e horrível Rio e o Padre Mestre João de Sampaio nos acompanhou um dia de viagem, donde se despediu de nós tornando para sua Missão, e nós fomos seguindo nossa derrota até a Ilha Nova da Praia de Santo Antonio, onde tivemos Missa no dia do dia do dito Santo, razão porque assim o invocamos. Aqui mandou o Cabo tirar a soma da gente com que se submetia ao seguimento daquele Rio e de suas vertentes e achamos por conta 118 pessoas, 30 armas de fogo e 88 índios de flechar, e com este número de gente prosseguimos viagem.
No dia 20 de junho, a expedição alcançou a Foz do Rio Jamari, no dia 22, chegam à primeira Cachoeira do Rio Madeira a de Santo Antônio, denominada pelo narrador da expedição como Maguari e, no dia 23, a Cachoeira de Iaguerites (atual Teotônio).
Chegamos ao Rio Jamari com dez dias de viagem, e continuamos para cima aos 22 do mês (de junho) chegamos à Cachoeira chamada Maguari (Santo Antônio) e na passagem dela se alagou Damaso Botelho em uma galeota, na qual perdeu o Cabo a sua capa, o que deu por bem empregado por ser em serviço de Sua Majestade que Deus guarde. Daqui fomos à Cachoeira dos Iaguerites (Teotônio), onde chegamos às vésperas de São João e nela vimos sem encarecimento uma figura do inferno (...), pois nenhuma se iguala nem tem paridade a esta do Rio Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros de pedras e rochedos tão altos que nos pareceu impossível a passagem, como na realidade, pois para passarmos foi necessário fez-se caminho, cortando uma ponta de terra onde fizemos faxinas, sendo o Cabo o primeiro no trabalho a dar-nos exemplo.
Fizemos uma boa grade de madeira por onde se puxaram as galeotas; no dito dia ainda se puxaram quatro, suposto que com muita fadiga, e já acabamos tarde; e no outro dia, que foi o do nascimento de São João, se puxaram as mais e se carregaram outra vez com farinhas e munições, que as fomos comboiar mais de meia légua de caminho por terra.


Caldeirão do Inferno (Franz Keller)
Daqui continuamos nossa jornada passando Cachoeiras umas atrás das outras e chegamos à quinta Cachoeira, a que chamam Mamiu (Caldeirão do Inferno), que gastamos três dias em passar nela as galeotas a corda, não havendo exceção de pessoa neste grande trabalho, e com tal perseguição de pragas de piuns, que cada mordedura é uma sangria, e ficamos em uma ponta aonde foi julgada que humanamente se não podia passar; e passamos as galeotas a outra banda do Rio para haver de melhor passar, e o Cabo mandou puxar a sua galeota por cima das lajes e as duas mais pequenas que servem de espia, e foi esperar pelas mais canoas à Ilha chamada das Capivaras, e pela tardança deram bem cuidado ao Cabo até 9 horas da noite, que nos ajuntamos; e logo que amanheceu fomos seguindo nossa viagem à Cachoeira chamada Apama (Jirau) véspera de São Pedro; e fazendo faxinas igualmente Soldados e índios, rompemos as matas terra a dentro dois quartos de légua, em que gastamos dois dias em fazer caminho e grade, rompendo a golpe de machado e alavancas grandes pedras e afastando outras aos nossos ombros com bem risco de vida.
Esta Cachoeira assinalada dos Apamas é tão terrível e tão monstruosa e horrível, que aos mesmos naturais de Cachoeiras mete horror e faz desanimar, porque de contínuo está no mais violento curso de sua desatada corrente, o que não encareço por não ser suspeitoso, porém deixo à consideração e representação dos experientes, pois por muito que dissera não dizia nem ainda a terça parte do que é, o que se pode perguntar igualmente assim ao Cabo e Capitão como a todos os mais da Companhia.
Aqui demos ordem a puxar as galeotas, e se puxaram três a meio caminho, porque uma galeota botou o beque (parte mais avançada da proa) fora cérceo (rente), desfazendo a amura (quadra da proa) e as conchas (caçoleta do canhão) que foi necessário por-se-lhes rodela, ao outro dia se puxaram as mais; e a 2 de julho, depois das galeotas concertadas e breadas (revestidas de breu) que se acabaram pelas 10 do dia, partimos e fomos seguindo a nossa jornada todo aquele dia, se acharmos Porto capaz até às 8 da noite, porque este Rio em si está a cair toda a beirada continuamente e de tal sorte caem pedaços de terra, que deixa uma enseada feita, e fomos dormir a uma Ilha de pedras donde achamos boa ressaca para as galeotas se amarrarem seguras; e logo que amanheceu seguimos viagem ao Porto dos Montes, onde disse o guia vira um caminho que descia ao Porto que era do Gentio, que habitava naquele lugar, mas não se viu trilhas nem caminhos, por estar já deserto; neste dito Porto fomos visitados de uma praga de abelhas, assim a quantidade das grandes, como uma máquina das pequenas tão espessas como nuvens, buscando-nos olhos, e ouvidos e boca, e todos engoliram bastantes, porque se as enxotassem das rações ficaríamos destituídos de toda a limitação que temos de farinha, que é tão limitada a medida em que se dá, que apenas é para dois bocados de boca, e fechada cabe em uma mão toda; logo também o que vamos comendo, são camaleões e uns animais a que chamam capivaras, e alguns por se não atrever a estas poucas carnes comem só os ovos dos ditos lagartos. Peixe de nenhuma casta nem sorte se acha, que das pobres espingardas é que vamos passando a remediar a vida.
O Cabo que nos rege não dorme nem sossega antevendo o futuro e por isso é tão previsto e assim vamos com muita regra com a farinha; e tornando à nossa derrota fomos caminhando até a noite que aportamos na beirada de uma Cachoeira (Três Irmãos) e determinamos passá-la no seguinte dia. Neste lugar deu parte o Principal Joseph Aranha ao Cabo haver visto uma mui grande aboiada (Sucuri - Eunectes murinus), que afirmam todos os que a viram teria de comprimento pouco menos de 40 passos e de grossura julgaram ter 15 a 17 pés.
Grandes monstruosidades de animais semelhantes têm este Rio, porque com esta são duas que se tem visto nesta viagem, e outras maiores imundices se podem ver nele, porque não há dúvida que estas veemências de pedras (nas concavidades que têm) muito mais podem criar. E assim que amanheceu fomos seguindo nossa jornada até ser hora de parar e tomamos Porto pelas 11 do dia.
Aos 7 do mês de julho, indo gente a descobrir campo, viram trilha nova de gentio e lugares frescos, o que logo deram a saber ao Cabo, que no mesmo instante mandou gente bastante para ter encontro a qualquer invasão, ordenando ao Soldado Vicente Bicudo os seguisse e os mandasse praticar para que viesse o principal à sua presença, declarando-lhe os não mandava fazer mortes ou amarrações nem outro gênero de agravo.
Haveria espaço de duas horas que tinha partido o dito Soldado, quando chegaram as mais galeotas da conserva, que de retaguarda vinham, mandou logo o Cabo ao ajudante Manuel Freire com grosso poder, fazendo-lhe a mesma advertência e que declarasse logo pazes com o dito gentio pelos meios mais suaves de dádivas.
Partiu o ajudante a incorporar-se com o Soldado Bicudo, e por ser já tarde dormiram no mato e depois que o dito ajudante partiu, ordenou mais o Cabo a Damaso Botelho engenhasse uma picada em forma de trincheira, o que logo se fez com três guaritas (pequeno abrigo onde se recolhem as sentinelas), em que ficamos seguros como já para ter encontro ao inimigo.
Assim que amanheceu foi um Soldado com dois índios nosso (de licença do Cabo) a buscar a vida, quando nas mesmas horas voltou a dar parte tinha ouvido rumor de gentio e chorar de criança, o que ouvido pelo nosso Cabo mandou logo ao Capitão fosse mandar praticar ao dito gentio, mas estes, como nunca tinha visto brancos, se puseram de fugida debaixo de suas armas, e despedido o Capitão para a diligência, mandou o nosso Cabo guarnecer as guaritas, e os poucos índios com que nos achávamos a desfilada pela coartina (troço do reparo situado entre dois baluartes), já para ter mão ao que pudesse suceder, mas tudo se acabou com a chegada do Capitão apresentando por presa a um velho que no pé esquerdo não tinha dedos, três índias e três crianças.
Chegou logo o ajudante com um lote de gente onde vinha o Principal, índio moço e mui arrogante, e é certo que chegou com mui pouca vontade porque dizem se atracara com um índio nosso, mas que vendo o nosso poder aplacara da fúria, e assim solto o trouxeram à presença do nosso Cabo.
Acompanhava a este dito Principal, dois mocetões, seus filhos, de pouco mais que 15 a 12 anos e duas índias, mães dos ditos e mulheres do Principal, com mais um rapaz e uma rapariga e todos faziam computo de treze cabeças.
Fez o Cabo o possível por um língua para os mandar praticar, mas não se achou quem os entendesse, porque falando a nossa língua, batiam com as mãos nos ouvidos, mostrando ter sentimento de não ouvir a nossa prática, mas com grandiosos mimos e dádivas ficaram mui contentes e satisfeitos no que mostravam.
Aqui Nossa Senhora do Carmo, que não falta a seus devotos, espiritou a língua em falar-lhes em língua, de outro gentio seus Conhamenas, logo respondeu o Principal gentio com um agrado ao que lhe propunha, a nossa língua por cuja gíria foi continuando a prática, e sobre e por razão da paz firme e valiosa que com eles pretendíamos fazer, e na mudança de vida para virem ao grêmio da Igreja, avassalando-se como os mais gentios fizeram, a que respondeu estava contente e certo nas cláusulas e firmeza da paz, e dizendo ao Cabo que o esperasse que o queria vir visitar da sua Província e trazer-lhe algumas coisas em reconhecimento do bom trato e mimos que lhe havia dado, se queria recolher; ao que o Cabo respondeu mandando-lhe dizer que tudo agradecia e que se fosse em paz, que sua vontade era seguir para cima o Rio, fazendo pazes e descobrimento, que não vinha fazer escravos, senão amigável paz com todos; e aqueles que lhe quiseram impedir sua jornada tomando armas para ele, que a este sim lhe declararia guerra.
Foi o Principal gentio em paz para a sua Província, o qual na estatura e presença muito bem parecido e os enfeites que trazia era uma coleira de miúdas contas de fruta do mato, muito negras, e o cabelo atado atrás em molho e nele um penacho, e por diante trazia o cabelo cortado, de orelha a orelha, os beiços tintos de vermelho de uma casca de pau que mordia; as índias cobriam, o que a natureza ocultar ensina, com uma franja de fio tecido, e cingiam no cinto uma enfiada de contas das ditas frutas do mato; era para ver como festejavam os nossos avelórios (peça de roupa com vários pingentes colocados na gola e na manga da camiseta ou na barra da calça): é este gentio muito pobre; as suas redes são de casca de pau aqui chamados embira. Despedidos eles, ficamos de aposento até ao outro dia ao amanhecer, que fomos seguindo a viagem, e sendo por horas de vésperas chegamos a paragem em que o Rio estava tapado com uma grande Cachoeira (Ribeirão) e andamos buscando canal com excessivo trabalho.
No dia 1° de agosto, prosseguem subindo o Rio Mamoré, passam pela Foz do Rio Guaporé (Itenes) e no dia 08 chegam à Povoação espanhola de Santa Cruz de Cajuava, onde foram recebidos e hospedados pelo Padre Miguel Sanches de Arquino Superior da Missão. Nos dias 09 e 10, reuniram-se com os Padres Superiores das Províncias de Moxos e Chiquitos, João Batista de Bosson, Missionário de Santa Ana, Gaspar dos Prados, Missionário de São Miguel e Nicolau de Vargas, Missionário de São Pedro. Palheta informou-lhes estar a serviço Rei Dom João V de Portugal e do Capitão-general Maia da Gama, Governador do Maranhão, e recomendou-lhes que limitassem suas ações às margens esquerdas dos Rios Guaporé e Mamoré, não ultrapassarem suas respectivas fozes e nem recrutassem indígenas dessas margens Rio abaixo por pertencerem a Portugal, desde 1639.
Começamos a passar a 9 de julho e a 12 do dito é que saímos dela, e logo avistamos o apartamento (desvio) do Rio (Beni) que vai ao Sul, para onde seguíamos a nossa jornada, deixando o famoso Rio da Madeira a Oeste, entramos pelo dito a que os espanhóis chamam Mamuré (Mamoré), e neste mesmo dia passamos dele a primeira Cachoeira (Lajes).
Sendo pela manhã do dia seguinte depois de Missa partimos a passar a dita temeridade da Cachoeira, e posta a galeota do Cabo para ser a primeira na passagem, não foi possível, porque assim que fomos puxando por ela, para subir um degrau, que só teria seis palmos de altura, por ser muito direita a queda que fazia a água com a velocidade que despenha (precipita-se) a fúria da correnteza, logo sem mais tempo nem dar tempo se foi a pique largando toda a pobreza que levava dentro em si, sem dar tempo a que lhe pudéssemos acudir, porque inda que fossem as amarras do mais fino linho não poderiam ter mão a estas grandiosas correntes.
Ficou o nosso Cabo nesta alagação destituído de tudo, que uma viagem com dois naufrágios é grande perdição, e sem poder neste sertão remediar-se do preciso; aqui ia morrendo um Soldado afogado se lhe não acudissem; vendo o Principal José Aranha que a primeira se afundava nem por isso deixou de se submeter ao perigo, e querendo passar a sua, lhe disse o Cabo repetidas vezes: quantos hoje hão de ficar órfãos; e indo-se já puxando por duas grossas cordas, tornou a repetir o Cabo aos índios que na galeota iam, que tirassem as camisas para as não perderem; não tinha bem acabado de dizer, quando logo se foi a galeota a pique arrebentando as duas cordas, e por grande diligência do Cabo, a tiramos do fundo do Mar, que já estava cativa das temerárias pedras e soberbas ondas que faz, levantando outra vez ao alto a correnteza que vai de riba.
Aqui obrou Nossa Senhora do Carmo um grande milagre, porque um índio nosso chamado Martinho por enfermo dos olhos estava em uma rede debaixo dos paióis da canoa e escapou sem moléstia quando a canoa se subverteu, de sorte que o susto bastava para molestar. Estivemos dois dias consertando as duas galeotas e no terceiro dia fomos seguindo viagem, sempre levando por proa aquela máquina de pedras e com o trabalho de ir puxando as nossas galeotas até o Porto do gentio chamado Cavaripuna, e como os espias deram com um caminho seguido de gentio, mandou o Cabo uma escolta boa procurando ao Principal daquela nação, e se recolheu a dita escolta com seis pessoas, a saber, um índio de meia idade com dois filhos maiores, duas crianças e a índia mãe desta família. E vindo estes tais à presença do Cabo lhes mandou perguntar se entre eles vinha algum Principal, ao que respondeu o índio pai da família que não, e que temido dos brancos de cativá-los viviam separados, cada um por seu Norte distinguidos e de sua nação, solitário ele vivia naquelas brenhas, mas que sabia que o Principal Capejú que da outra banda do Rio vivia desejava muito de ter fala de brancos para se comerciar.
Ouvido pelo Cabo e certificado de seu dizer lhe perguntou que dias se gastaria a chamar o dito Principal Capejú; disse que quatro dias e que ele mesmo o iria chamar e que esperássemos depois de passada a última Cachoeira (Guajará-mirim), e que por firmeza de sua palavra deixaria na nossa companhia sua mulher e filhos; despediu o Cabo ao índio (com dois índios mais nossos que lhe falavam a gíria) com bastantes mimos, de ferramentas, facas e avelório aos 18 de julho.
Logo que amanheceu o seguinte dia nos fomos aposentar na espera do gentio, onde estivemos dez dias, e como não vieram prosseguimos nossa derrota até as bocas dos Rios de água branca e de água preta, onde chegamos no 1° de agosto.
Este caudaloso Rio d’água preta se aparta do Rio Branco, correndo na boca a Sueste Quarta de Sul, a cujo Rio chamam os espanhóis Itenis (Guaporé), e o dito Rio Branco parte a Sudoeste Quarta de Oeste, na entrada a que também os espanhóis chamam Mamuré (Mamoré). Entre estes dois Rios nos aposentamos em uma longa Praia de areia e daqui seguimos o Rio Branco por nos parecer mais pequeno (como é) e este declarar sinais de habitado, porque não há estalagem de gente que nele cursa que não tenha cruz, doutrina seguida em aquela Povoação já seguimos (com estes vestígios) a nossa fatal viagem com a esperança de aproveitar com fruto tanto trabalho e perigos de vida.
E sendo a 6 de agosto a sentinela que fazia o quarto da lua falou a uma canoa que vinha Rio abaixo com dez índios espanhóis, foi o Cabo em pessoa na sua galeota tomar-lhes o encontro e falar com eles, e trazendo-os para a Praia d’onde estávamos se informou o nosso Cabo cabalmente e tomamos um guia para nos levar seguros ao Porto da grande Povoação de Santa Cruz de Cajuáva, e no seguinte dia por horas de vésperas encontramos cinco canoas, que iam deste Rio Mamuré para o de Itenis (Guaporé), e assim que nos avistaram levantaram uma cruz por bandeira, e perguntando-nos se éramos cristãos lhes responderam que sim e portugueses, a que sorrindo-se e benzendo-se todos a um tempo: cristãos portugueses? Nós o somos de S. Pedro, e falando com o Cabo tomamos terra, onde jantamos.
Estiveram conosco este gentio pouco mais de uma hora, e neste limitado prazo tiveram eles e tivemos nós um grande contentamento, de sorte que apagaram-se todos os trabalhos de antes; despediram-se para baixo e nós prosseguimos; e já daqui se não vê matos senão tudo campos gerais assim de uma como de outra parte do Rio e pela terra a dentro.
Pelas 4 horas da tarde ouvimos zurros de gado vacum, e ordenou o Cabo fosse o Sargento Damas Botelho a dar a entrada e lhe recomendou a força da diligência e manifestação ao Regedor.
Daqui dizia o guia não chegaremos à Povoação senão amanhã, e como logo ouvido isto, mandou o Cabo se marchasse toda a noite, e senão parasse senão juntos da dita Povoação, aonde esperaria pelo Ajudante, que enviou adiante com a embaixada de sua vinda, o qual chegado pelas 7 horas da manhã, o levaram pela Povoação dentro os índios, dela com tal amor e cortesia que fazia, admirar, e chegando à praça falou aos Padres que estavam naquele Colégio, os quais o receberam com repiques de sinos e grande alvoroço daquele povo, mostrando com instrumentos de órgão, cravo e músicas e com clarins e charamelas (instrumento musical de sopro, feito de madeira, com palheta dupla ou simples) o como nos festejavam alegres.
A saudação que os ditos Padres fizeram ao Ajudante foi beijando-lhe a mão com o nome da Santíssima Trindade, Padre Filho e Espírito Santo, e o levou para dentro donde estavam mais dois religiosos, dos quais foi abraçado e o levaram para dentro porque se não entendiam nem se podia ouvir a fala de uma pessoa a outra pelo grande rumor da muita gente que a rodeava.
Chegado com os ditos Padres o Ajudante ao sobrado, onde em uma capelinha estava uma imagem do Senhor Crucificado em um grave nicho, que de uma e outra parte tinha janelas rasgadas que caiam sobre o jardim: aqui ajoelhou o Ajudante com uma devida reverência, dando graças a Deus de haver chegado à terra de cristandade com tão bom sucesso depois de tantos trabalhos. Acabada a oração lhe ofereceram os Padres assento e pondo-se em silêncio interrompeu o nosso entrevistado dizendo:
Reverendíssimos Padres, nós somos vassalos do senhor Rei Dom João Quinto de Portugal que Deus guarde e por notícias e sinais que se viu neste Rio de muitas cruzes se resolveu o Senhor João de Maia da Gama, nosso Excelentíssimo Governador e Capitão General, a mandar dez galeotas armadas em guerra com infantaria e cravineiros a fazer descobrimento, e trazemos um Sargento-Mor por Cabo da tropa, o qual me envia a dizer a Vossas Reverendíssimas que se não alterem, nem a gente deste povo, pois que vem com todo o sossego, paz e quietação até chegar aqui, e por razão de Estado me enviou a dar parte a Vossas Reverendíssimas e ao Regedor deste povo, para que assim se não assustem com a sua entrada.
Respondeu o Padre Miguel Sanches de Aquino que já havia muitos anos esperavam a vinda dos senhores portugueses a aquelas índias, e perguntando que gente trazíamos, lhe deu por conta o nosso Ajudante que 118 pessoas; perguntou se era o Cabo Cavaleiro e lhe foi respondido com a verdade de que era dos Principais da terra na Capitania do Pará; perguntou mais se trazíamos Missionário e de que religião, foi-lhe dito que só um clérigo levávamos por Capelão; perguntou mais pelos nomes, o que tudo se lhe disse, principalmente do Cabo, Capitão, Capelão e Ajudante.
Então disse o Padre Miguel Sanches de Aquino que mandava ao Padre Irmão Oliberlo Nogua com Sua Mercê a receber o Cabo, e que estimava muito a sua boa vinda à aquela Povoação e que não só lhe mandava beijar os pés, mas oferecer-se para lhe obedecer em tudo, e que entrassem na hora de Deus, que tudo estava sossegado e nem a cortesia dos honrados e valorosos portugueses podia em nada alterar os corações e que o seu estava aberto para nele e nos braços o receber com grande gosto; que só tinha o pesar de ser esta vinda em ano tão estéril pela inundação do passado; tornaram a abraçar todos ao nosso Ajudante com demonstrações de muito contentamento e debaixo de um chapéu de sol a uso da terra, o qual é feito de penas de avestruz, acompanhado do Padre Irmão se foram buscando o Porto do desembarque em busca do Cabo, que o estava esperando da outra parte do Rio. Embarcou-se o Ajudante e juntamente o Padre Irmão e Capitães e Alcaides e se a galera pudera com mais gente, muito mais iriam nela a receber o Cabo, porém nas que se achavam no Porto também se embarcaram para acompanhar ao Ajudante e dando este a senha com um tiro respondeu a tropa junta com uma descarga ao recebimento do Padre Irmão, e ao salvarem-se com o Cabo outra e ultimamente a três vivas dos Reis três cargas, abalando-se as galeotas da tropa com o mesmo concerto e desfilada (seguindo ao nosso Cabo), os mais fomos aportar à Povoação, e já no Porto estariam duas mil pessoas à nossa espera, para nos cortejarem, e assim com este acompanhamento entramos pela Povoação, e chegando o nosso Cabo àquela grande praça do Colégio, vieram os mais Padres a recebê-lo; estavam as três portas da Igreja todas abertas e os sinos se desfaziam com repiques, charamelas, clarins, órgãos e todos os mais instrumentos e música, que fazia uma grande entoação.
O Altar-mor da Igreja estava ornado e com seis velas de libra acesas, e fazendo oração o nosso Cabo e os mais da sua guarda em ação de graças entoamos a salva de Nossa Senhora com a, sua ladainha e tivemos Missa logo, donde ao levantar a Deus entoamos o Tantum Ergo (palavras iniciais dos dois últimos versos do “Pange Língua”, um Hino Latino Medieval escrito por São Tomás de Aquino) e no fim dela o “Bendito”, o que tudo acabado, vieram os Padres e levaram ao nosso Cabo em braços para uma grande casa, que parece é quarto feito naquele Colégio para hospedar pessoas grandes, onde estava ornado um grande e famoso bufete (buffet, bufê) cheio de flores e outras delícias daquelas índias, e a um e outro lado da grande casa tamboretes, catre e rede, à usança da terra, armário com o necessário, e se puseram os Padres a praticar com o nosso Cabo no que a cada um tocava, e sendo horas de jantar se pôs a mesa onde jantou o nosso Cabo e o Padre Capelão, e os guisados que lhe puseram passaram de trinta iguarias e não vinha vianda alguma que não viesse coberta de flores, e assim que o nosso Cabo se pôs à mesa começaram dois índios a tocar harpa e rabeca que certamente enlevavam: os índios é que serviram a mesa sem haver descuido algum nem falta do necessário e com boa compostura e limpeza: acabado o Cabo de jantar, se jantou na própria mesa que acabado de comer a infantaria vieram os Padres pedir mil perdões ao nosso Cabo do pouco com que se achavam para receber a sua pessoa e tiveram meia hora de conversa os Padres com o nosso Cabo, e se foram recolher até que às 2 horas que tornaram a vir. A cortesia e o modo e afagos que nos fizeram, foi mais de muito e naquelas mesmas horas que nós chegamos se avisaram todas aquelas povoações por terra a cavalo e assim.
Logo a outro dia pelas 9 horas chegou o Padre João Baptista de Bosson, sobrinho do Duque de Banhos, o qual é Missionário da Povoação de Santa Ana, veio a cavalo e o acompanhavam seis cavaleiros índios; o modo e o carinho desta grande pessoa foi a maior coisa que vi, logo no outro dia chegou mais o Padre Gaspar dos Prados; este Padre veio em canoa, da Missão de São Miguel de Moxoquinos; neste mesmo dia chegou mais o Padre Nicolau de Vargas da Povoação de São Pedro dos Moxos, e se mais dias estivéramos mais Padres creio chegariam, que a todos os grandes desejos de ver portugueses, os fazia vir tão prontos e prestes, e finalmente disse o Padre Nicolau de Vargas que se nos não topasse ali havia ir Rio abaixo só para nos ver e falar; mas este o que devia ao sangue português é que o fazia ter este grande desejo.
No dia de São Lourenço, 10 de agosto, cantou o nosso Capelão a Missa da terça neste Santo Colégio de Santa Cruz de Cajuvava, cuja Povoação está situada em 14 graus e meio ao Sul e a cidade de Santa Cruz de Lacerda em 17 graus. O Governador desta grande cidade se chama Dom Luiz Alvares Gatto, e o Bispo se chama Dom Leonardo de Valdima Arcaya; este Bispo de três em três anos visita todos os povos que estão situados nos Rios que declara o Mapa incluso deste seu bispado.
Da cidade de Santa Cruz de Lacerda se seguem estradas ao Reino do Peru, Porto de Mar, cuja cidade tem Vice-Rei, a quem chamam Dom Thomaz de Espego, tem Arcebispo e Bispo; está logo a grande cidade de Lima e a cidade Joam, Cavelica Episcopal, esta outra cidade chamada Guamanga; também Episcopal, e outra que lhe chamam Cuzco, Corte antiga das Índias, mais a cidade de La Paz, Episcopal; cuja verdadeira notícia nos deu o Padre Mestre João Baptista de Bosson.
E além do que tenho escrito, me deu a saber o Rio Sará, que fica Leste-Oeste com a cidade de Lima, e que a água daquele Rio é tão grossa que coalha e faz formar tijolos e que em formas as deixam congelar da sorte que querem, e que tomava a cor parda, muito forte para limpar ferro e muito leve no peso.
E perguntando-lhe se seria esta a que cá lhe chamamos pedra pomes, me disse que a pedra pomes era uma serraria ou montes que todos os anos arde e arrebenta com a força do incêndio, o qual se achava em um Lago donde acaba o Rio Nagú, donde com a cheia vinham pelo Rio abaixo, mas que esta pedra que da dita água se congela servia para edifícios e portais; também me disse que pelo grande Rio de Xiriguanas há víboras, que engolem uma besta inteira e que o gentio dele lhe fazem guerra com tropas de cavalos: também me afirmou que o ano de 1722 com uma inundação se fora a pique uma Ilha chamada Chamayca com 200 navios que estavam ao redor dela ancorados e que esta tal Ilha era povoada da nação inglesa.
Os canaviais em Santa Cruz de Lacerda, que nestas povoações duram 60 anos, e até aqui onde chegamos duram 20 e 30 anos, cujas canas são todas unas no comprimento e grossura, e a calda mui forte que tudo é açúcar, como o experimentamos por ver: estas terras dão açafrão, que é o contrato destes índios, cera branca, panos acolchoados e bordados que fazem, e há índios que têm 100 bestas suas e mui bem ensinadas para vaquejar 3 e 4 mil cabeças de gado que cada um tem e há outros índios que têm muito mais.
Estes índios de natureza são mui curiosos, muitos tocam harpa, órgão, rabecas e cantam Missa, são músicos de coro, e vários sabem ler, e são pintores e com boas ações e melhor sombra, o óleo com que pintam é leite de vacas, são bordadores eminentíssimos, que nos surpreenderam admirados ver três casulas, uma capa de asperge, dalmáticas, estolas e manipulas, bolsas, palas, véu, frontais, panos de púlpito, tudo bordado com as mais galhardas flores e ramos, tudo em sua ordem e tão bem matizado que não é possível encarecer.
Casula ou planeta: vestimenta característica daqueles que celebram a Santa Missa. Os livros litúrgicos usavam as duas palavras, em latim casula e planeta, como sinônimos. Enquanto o nome planeta foi usado em particular em Roma e acabou por permanecer na Itália, o nome casula deriva da forma típica da vestimenta, que originalmente circundava todo o Corpo do Ministro sagrado que a portava. (Fonte: christusvinchit.blogs.sapo.pt)
Capa de Asperge: capa usada principalmente durante a benção do Santíssimo, conhecida como capa pluvial. (Idem)
Dalmática: túnica originária da Dalmácia. É usada pelo diácono nas Missas solenes. O subdiácono usa, nas Missas solenes, a tunicela, bastante parecida com a dalmática, mas que deve ser um pouco mais curta e menos adornada que esta. (Idem)
Estola: é o elemento distintivo de um Ministro ordenado e é sempre usada na celebração dos sacramentos e sacramentais. É uma faixa de tecido, em geral bordado, cuja cor varia de acordo com o tempo litúrgico ou o dia santo. (Idem)
Manípulo: um paramento litúrgico usado nas celebrações da Santa Missa segundo a forma extraordinária do Rito Romano; caiu em desuso nos anos da reforma litúrgica, embora não tenha sido abolido. É semelhante à estola, mas de menor comprimento, inferior a um metro, e é fixado por meio de presilhas ou fitas como as da casula. Durante a Santa Missa em sua forma extraordinária, o celebrante, o diácono e subdiácono o portam sobre o antebraço esquerdo.
É possível que este paramento derive de um lenço (mappula) utilizado pelos romanos amarrado ao braço esquerdo. Uma vez que era utilizado para enxugar as lágrimas e o suor da face, escritores eclesiásticos medievais atribuíram ao manípulo um simbolismo associado às fadigas do sacerdócio. (Idem)
Bolsa Viático: usada pelos Ministros ou pessoas que levam a hóstia consagrada aos enfermos ou pessoas que não tem condições de irem a Igreja. Dentro da bolsa tem um estojo chamado Teca onde são colocadas estas Hóstias. (Idem)
Pala: pequeno retângulo de pano de linho com que se pode cobrir o cálice, pode-se usá-lo nas cores do tempo litúrgico ou o dia santo. (Idem)
Véu Umeral: véu que recai sobre os ombros, com o qual o sacerdote utiliza junto com a capa nos momentos de adoração e benção do Santíssimo. (Idem)
Frontal litúrgico: uma peça de pano que pende na parte dianteira do altar, vai até o chão. (Idem)
Também vimos um tapete muito grande, que estendido do Altar-mor chegava aos degraus abaixo confronteiro as portas da sacristia, com tão admiráveis lavores que enlevavam os olhos. Do Altar-mor para cima, obra deles, uma estante dourada, um missal com chapadura de prata todo aberto ao buril por matiz e capa de veludo carmesim, um cálice dourado, uma patena (pratinho de metal em que se coloca a hóstia na Missa) e as galhetas (pequeno vaso que contém o vinho ou a água, para o serviço de Missa) que teriam um coito de altura, uma salva (bandeja) que serve de prato deles e todas estas três peças de prata dourada, a sacra e o Evangelho de São João com molduras douradas, seis castiçais de prata de boa altura, logo o trono ou camarim (nicho, por cima do altar-mor, onde se arma o trono para exposição do Santíssimo Sacramento) dourado por dentro com uma invenção para encerrar, casa-boa (?), o retábulo (obra de arte de pedra ou madeira esculpida, de encontro ao altar) obra miúda, mas inda não estava dourado.
O Governo deste povo é na forma seguinte: tem dois Regedores e estes dois Capitães e os Capitães têm dois Alcaides, e quando quer um daqueles índios colher as suas sementeiras ou plantar as suas roças vai à casa do Regedor dizer-lhe que tem este ou aquele trabalho que fazer, este manda ao Capitão lhe dê gente e o Alcaide os vai avisar aquilo que é necessário para fazer aquele trabalho e lhe assinam (firmam) dia certo, no qual não faltam à porta do lavrador, e acabado o trabalho se paga a todos os que ajudaram e assim observam geralmente, por isso todos têm e são ricos: os Padres que ali assistem são como vigários deste povo, e lhes pagam os moradores, fora as primícias das novidades, e eles não fazem mais que administrar-lhes os sacramentos.
Em tudo o que é necessário para a Igreja concorre o povo, uns com dinheiro, outros com tapetes, gados, cera branca, arroz, milho, fio, panos e tudo remetem por carregação à cidade de Santa Cruz de Lacerda, aonde tudo se lhes vende e lhes vem o necessário. Esta Povoação tem Quatro sinos grandes e dois pequenos, fora garridas (sinetas) e rodas de campainhas, e são estes índios tributários a seu Rei.
Depois das três badaladas da madrugada se ajuntam todos à porta da Igreja para ouvirem Missa, onde rezam o Rosário de Nossa Senhora com tal devoção que, nomeando o nome de Jesus, dão juntos um ai, batendo no peito: ao levantar da hóstia tocam órgão e cantam o “Te Deum Laudamus” e no fim da Missa tocam charamelas e com baixões entoam o “Bendito”; e acabado cada um vai para o seu trabalho. Ao meio dia nas badaladas rezam de joelhos, de manhã, dizem: “Santos dias dê Deus a Vossa Mercê”; à tarde dizem: “Santas tardes lhe dê Deus”. Pelas 4 da tarde se ajuntam todos, assim homens como mulheres, rapazes, raparigas e meninos, ao redor da Cruz que está na praça a rezar o Rosário de Nossa Senhora em voz alta, e tanto que o Padre vê terem acabado os mistérios decorosos, antes dos gloriosos, se chega e ajoelha com o povo juntamente e oferece; no fim rezam o Ato da contrição e ali mesmo rezam as trindades; vi neste povo todo o gênero de ofícios.
No dia 11 de agosto, a expedição inicia a descida do Rio Mamoré até a Foz do Rio Guaporé, subindo este durante seis dias até a aldeia dos índios Itenes, da Missão de São Miguel, onde Palheta faz as mesmas recomendações transmitidas aos Padres em Santa Cruz.
Sendo aos 11 do mês de agosto nos despedimos, porque o nosso Cabo disse aos Padres que lhe não permita mais o seu regimento que três dias ele hospede, bem contra a vontade dos religiosos, que seus desejos mostravam que estivéssemos mais alguns dias com eles: antes desta despedida havia ordenado o nosso Cabo que todos geralmente se confessassem, pois tornávamos a vir passar as terribilidades e riscos de vida nas Cachoeiras: o que todos assim fizeram. Pelas 3 horas da tarde nos ajuntamos todos na Igreja por ordem do Cabo, para depois de orarmos, beijarmos o Santo Lenho e alcançarmos a benção papal, que aqueles Padres, com grandes indulgências, concedem por privilégio particular: o que feito nos despedimos daquela boa companhia, que até ao embarcar do Cabo nos estiveram abraçando e pedindo muitos perdões e mostrando-se mais agradecidos à cortesia, urbanidade e trato do Cabo, pois tão cabalmente se soube haver com eles.
Propôs de novo o nosso Cabo a estes Padres publicamente, recomendando e requerendo da parte do nosso excelentíssimo General, e em virtude do Tratado feito entre os nossos reis e pela conservação dos povos, que lhe assinalava de hoje por diante não passassem para baixo da boca dos Rios Mamuré (Mamoré) e Itenis (Guaporé) nem interessassem daí para baixo gentilidade alguma, por estes pertencerem ao sereníssimo senhor nosso Rei de Portugal, pois de 1639 que senhoreava o Rio das Amazonas até a Laguna onde se achavam os marcos pertencentes à coroa de Portugal e 400 léguas da boca do Rio Madeira até o dito marco, como diz o Padre Acuña no seu livro Maranhão, e quando excedam, fazendo o contrário do requerimento, que inda Sua Majestade que Deus guarde tinha poderes neste Estado para fazer entregar e pôr tudo o que tocasse a seus domínios e senhorios; e com estas mesmas cláusulas faríamos de nossa parte, o que ouvido pelos ditos Padres prometeram cumprir e guardar tudo acima requerido.
Desta Povoação partimos buscando o rumo do Norte e gastamos Rio abaixo dois dias e duas noites às bocas dos ditos Rios consignados, e no dia seguinte embocamos o Rio Itenis (Guaporé). Este corre de Leste a Oeste, aonde faz o seu apartamento, e vai caminhando para as grandes povoações dos Baures e Moxos. Seguimos este Rio seis dias acima e demos nos currais da criação de infinito gado e bestas; e falamos com índios da nação Itenis, pertencentes à Povoação de São Miguel; disse o Cabo lhe não permitia o seu regimento a que se estendesse mais, donde fizemos a volta para baixo: e véspera de S. Bartolomeu levantamos ferro já de rota batida, deixando aqueles deliciosos ares e climas mui diferentes e terra tão abundante de toda a criação e plantas férteis e campos aprazíveis.
Deste local regressaram Rio abaixo até a sua Foz no Rio Mamoré, seguindo por este até estacionarem, no dia 25 de agosto, nas proximidades a região das Cachoeiras, onde lhes aguardava o Tuxaua Capeju da nação Cavaripuna. O chefe indígena reforçou seu propósito de ser aliado dos portugueses e obediente à Igreja Católica e solicitou que ele e toda a sua gente que fossem batizados. Palheta demonstrou-se satisfeito pela aliança e pela decisão de se converterem ao catolicismo, mas, quanto o batismo, só seria possível batizar as crianças e os adolescentes por se tratarem de inocentes enquanto os adultos só o seriam após tomarem conhecimento da doutrina cristã deixando com eles o índio catequista Manuel Camacho.
Chegamos à paragem dos nossos enviados índios da chamada do Principal Capejú a 25 de agosto, e avistamos que no meio do Rio nos vinham a encontrar 3 Tapuios em uma limitada casca de pau, chegaram à galeota do Cabo, a quem disseram que ali estavam prontos como se lhes tinha mandado, e que suas vontades era serem compadres e amigos dos brancos com a lealdade de vassalos à coroa de Portugal; estimou muito o Cabo, esta resolução para a mudança de vida e sujeição ao grêmio da Igreja, fazendo serviço a Deus e a Sua Majestade que Deus guarde.
Pediram todos se queriam batizar, ao que o nosso Cabo lhes disse, aprendessem primeiro a doutrina cristã, para o que lhes deixava um índio catequista; isso sim, se batizaram os filhos menores por serem crianças, e o mesmo Sargento-Mor que é o dito nosso Cabo e o Capitão foram padrinhos, daqueles inocentes.
Este gentio fica descido e doméstico e são da nação Cavaripunas, e dois dias que estivemos na sua aposentadoria, sítio que o Cabo lhes consignou para Aldeia, só a dormir se apartavam de nós, satisfaziam-se olhando para nós e vendo o nosso trato; às tardes, quando rezávamos as ladainhas de Nossa Senhora (que temos por devoção), se ajuntava toda aquela família e nos rodeava de joelhos até acabarmos de rezar, porque o que vêm fazer, fazem. O índio a quem o Cabo encarregou lhes ensinasse a doutrina, se chama Manuel Camacho, o qual é de boas práticas e muito fiel aos brancos, a quem deixamos com este gentio e com ferramentas bastantes para ensinar também a fazer roças e plantar, na forma dos índios de baixo e em toda a América se pratica.
Também fica praticado para si descerem os da nação Apamas e a Matiris, cujas povoações são cunhamenas (aliados políticos inter-tribais. As alianças geralmente eram seladas através de casamentos com as filhas dos chefes ou outras mulheres por eles indicadas, donde o prefixo “cunhã” do termo cunhamena) desta nação Cavaripunas e agora já, estarão juntos e descidos, para roçarem sobre o Rio, que são confinantes umas às outras, a quem também o nosso Cabo mandou dar ferramentas e outros mimos.
A Bandeira prosseguiu descendo o Rio Mamoré até a sua confluência com o Rio Beni, entrando no Rio Madeira chegando ao Arraial Jumas, em 09 de setembro, cumprindo a missão com pleno êxito sem perdas de vidas e sem ninguém adoecer, os prejuízos foram apenas materiais. Palheta regressou à Belém no final do mês de setembro. O Rio Madeira tinha sido oficialmente descoberto e estava assegurada sua posse por Portugal.
Chegamos ao nosso Arraial em 9 de setembro com feliz sucesso, sem nos adoecer ninguém da campanha, nem nos morrer nenhum graças ao bendito Deus e à sua Santíssima Mãe N. S. do Carmo, é certo que com grandes perdas pelas alagações que tivemos, como fica dito.
Vinte e três (vinte) Cachoeiras se contam no Rio da Madeira, das quais dez se não podem passar, por nenhum meio, porque são impossíveis, e as passamos cortando pontas de terras e fazendo grades de madeira, não pelo Rio senão por terra em seco, cujos caminhos ficam feitos para quem vier atrás. Neste nosso Arraial achamos a falta de três Soldados volantes ou aventureiros, que trouxemos na campanha, os quais desertaram atrás de nós, e finalmente chegamos a esta cidade, em setembro de 1723.

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