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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Desafiando o Rio-Mar – Comunidade Mauari/Itacoatiara


Desafiando o Rio-Mar – Comunidade Mauari/Itacoatiara



“Em cada margem que passa
Outra estou a conquistar
O futuro não se teme
Quando se está a amar”.
(Ana Paula Filipe)

- Partida para Mauri (24 de dezembro de 2010)

Acordei às cinco horas e me preparei para uma rápida jornada que eu pretendia encerrar antes das onze horas na Comunidade Novo Horizonte, localizada na foz, a jusante, do Paraná da Eva, a apenas 56 quilômetros de distância. Os botos tucuxis por várias vezes evoluíram graciosamente nas proximidades do caiaque, proporcionando momentos de puro encantamento. Volta e meia o foguetório quebrava a tranquilidade que me cercava, anunciando os festejos natalinos. As águas continuavam calmas e consegui manter a média de 6 nós (aproximadamente 11 km/h). Fiz uma parada para descanso na Ilha Juara a Sudeste da Ilha Grande da Eva, onde um bando de aproximadamente doze alegres botos tucuxis pescavam; imediatamente o Comandante Mário determinou que o Vieira Lopes viesse, com a voadeira (barco de alumínio), verificar se havia algum problema.

Chegamos antes das onze ao destino original, mas o Comandante do Piquiatuba, Soldado Mário, achou melhor buscar um porto mais seguro à jusante. Depois de navegarmos alguns quilômetros ele decidiu lançar a voadeira com seu motor de 40HP para agilizar o reconhecimento e, finalmente, localizou um porto adequado na foz do pequeno igarapé Mauari. Cheguei à comunidade por volta das 12h30 depois de navegar mais de 70 quilômetros, por sete horas.

- Porto do Mauari

A foz possuía profundidade adequada para abrigar a grande embarcação de apoio, a montante e à jusante o porto era protegido por curiosos paredões de pedra que abrigavam um aprazível balneário de areias brancas. Depois da rotina de cuidar do caiaque, lavar a roupa e tomar um bom banho a bordo fomos visitar o professor Beque, um dos líderes da comunidade, que autorizara nossa aportagem.

- Professor Beque, o Forest Gump do Mauari

O professor de 53 anos fez curso de magistério, marítimo da marinha mercante e auxiliar de saúde que é muito empregado em apoio aos membros da Comunidade do Mauari. Beque relatou que a Comunidade foi formada por descendentes do Capitão Mariano Teixeira que fugiu de Portugal quando Napoleão Bonaparte declarou guerra aos lusitanos e se radicara no Mauari, Costa do Amatari. O professor amazonense afirma que é produto da miscigenação de portugueses da família Quirino com índias da etnia Mura e que cada patriarca tinha duas ou três esposas fazendo com que a descendência crescesse rapidamente.

Beque relata que: “a Fazenda Muari é um local bonito e pitoresco. Na foz do igarapé temos uma laje de pedra de ambos os lados e no centro uma praia que é usada como balneário. Na ponta da laje de jusante existe uma formação que lembra um rosto feminino e é conhecida como Maria Mococa. Em uma oportunidade veio um pessoal de Manaus e uns amigos depois de tomarem umas ‘geladas’ foram até a praia e não retornavam. A esposa de um deles, ansiosa, me perguntou se havia algo interessante na beira para que o marido demorasse tanto e se havia alguma coisa que pudesse pegá-lo. Respondi que tinha uma mulher de pedra e ela entendeu que tinha uma mulher nas pedras e ficou cheia de ciúmes. Notando sua aflição disse que não havia nenhum problema porque a mulher não tinha coração e era dura de roer porque é uma mulher de pedra. Ela desceu comigo até a praia e ao identificar a pedra da Maria Mococa a começou a rir”.

- Passeio pela Comunidade do Mauari

Depois de um bom banho no balneário e garantir os peixes para a ceia de Natal, acompanhamos o professor no seu périplo pela comunidade onde conhecemos seus membros mais antigos e a enorme plantação de acerolas. A tripulação se animou, momentaneamente, em participar das comemorações natalinas ou dos folguedos pagãos, mas reconheceram que isso não seria possível tendo em vista de que teríamos de partir às cinco da manhã.

- Partida para Itacoatiara (25 de dezembro de 2010)

Quando desci, às cinco horas, para o convés inferior, a tripulação já estava a postos, fiz um rápido lanche e colocamos o caiaque n’água. Ao contrário dos demais dias, o vento de proa e o banzeiro prejudicaram, durante toda a jornada, minha progressão. Havíamos decidido manter a rota pela margem esquerda do Amazonas percorrendo o Paraná da Trindade (Cumaru) ao norte da Ilha do mesmo nome que desvia as águas do Madeira pela margem direita do Amazonas ao longo da Costa do Arapará. A opção tinha a vantagem de ser mais curta embora mais lenta. Continuei a navegação sempre enfrentando o vento de proa e ondas que alcançavam meio metro de altura, nada que prejudicasse a estabilidade do formidável Cabo Horn (caiaque). Por volta das 7h30, logo na entrada do Paraná Cumaru, depois de navegar 18 km, por quase duas horas, avistei uma interessante ponte de ferro em arco sobre o Igarapé Nossa das Graças, aproveitei para fazer uma parada para descansar e fotografá-la. Hidratei-me comi uma banana e uma maçã e voltei para a água. Naveguei para o talvegue do Paraná. Os ventos continuavam prejudicando o deslocamento, apontei a proa diretamente para a Ilha Benta, ia fazer uma parada na face norte de suas areias. Aportei na Ilha Benta, às 9h20, depois de navegar 16 km, observei o Piquiatuba estacionado a 3 km a jusante da foz do Rio Urubu realizei meus procedimentos de rotina e retornei para o rio para meu lance final.

Notifiquei à equipe de apoio a respeito de minha rota, enchi o cantil com refrigerante e parti. Logo que adentrei nas águas oriundas do Rio Madeira encontrei troncos arrastados pela correnteza deste formidável afluente da margem direita do Amazonas. Até então eu não havia encontrado nas águas do Amazonas vestígios desse material já que o Solimões, nesta época, não tinha correnteza suficiente para arrastar os troncos encalhados nas margens ou areais do seu leito. Itacoatiara era perfeitamente visível a mais de 20 km de distância, piquei a voga, mas não adiantou muito, a velocidade dos ventos e a altura das ondas aumentaram de volume. Aportei no Piquiatuba às 12h12 depois de navegar aproximadamente 70 km. Estabeleci os contatos necessários com o pessoal de terra e permaneci a bordo até a tarde de 26 colocando em dia o material colhido ao longo do caminho.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Deise Nishimura, a Samurai de Mamirauá

Deise Nishimura, a Samurai de Mamirauá

“O Ai do samurai
não é um grito de dor:
é a precisão do corte,
a velocidade da morte
na defesa da manhã”.
(Arnaldo Garcez Teixeira)

- Café Regional

Convidei os caros amigos do Instituto de Pesquisas da Amazônia (INPA) Tenente Roberto STIEGER e a pesquisadora chefe do laboratório de Mamíferos Aquáticos Amazônicos, VERA F. Silva, para um café regional de agradecimento, por terem viabilizado minha visita a um dos mais fantásticos santuários ecológicos do mundo: a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) de Mamirauá.
Na oportunidade, a Vera, como sempre, nos brindou com seus fantásticos relatos, sendo que um deles – o ataque de um jacaré a uma de suas pesquisadoras, a bióloga paulista Deise Nishimura, chamou-me a atenção em especial. Vera comentou que o anjo da guarda de sua pesquisadora, na oportunidade, deu um cochilo quase fatal, mas, logo em seguida, procurou corrigir sua burrada através de uma série de felizes coincidências.

- O ataque de Dorotéia, a guardiã do Flutuante Boto Vermelho

Foi em dezembro de 2009, véspera do Ano Novo, nas instalações do Flutuante do Boto Vermelho, RDS Mamirauá, município de Tefé, Amazonas. A pesquisadora Deise Nishimura preparava um enorme tambaqui para a passagem do ano. Iniciou a limpeza do saboroso peixe na cozinha e, logicamente, os pequenos detritos puseram em alerta a Dorotéia, a enorme Jacaré-Açu que morava sob o Flutuante. Na hora de cortá-lo preferiu fazê-lo na borda do Flutuante, a menos de um metro d’água. Dorotéia, já na espreita, atacou Deise e puxou-a, pela perna, para dentro d’água, dando início à rotação mortal.

Nesta hora achei que tinha morrido, mas lembrei de um documentário que  havia visto que, quando você é atacada por um tubarão, a parte mais sensível dele é o nariz. Aí pensei qual seria a parte mais sensível do jacaré. Coloquei a mão na cabeça dele, não sei se era o nariz ou o olho, e enfiei meus dedos e apertei com toda força, foi quando ele me soltou e nessa hora percebi que já estava sem a minha perna”, relata Deise.

Deise nadou rapidamente para o Flutuante procurando se colocar a salvo antes que outros jacarés fossem atraídos pelo seu sangue. Arrastou-se pela rampa de acesso aos barcos que fica ao nível d’água e conseguiu, depois muito esforço, pedir socorro pelo rádio. A Vera comenta que, a partir do ataque, o anjo da guarda deve ter acordado sobressaltado e procurou remediar a besteira que tinha deixado acontecer com sua protegida. A artéria femural, na rotação, deu praticamente um nó, impedindo que a pesquisadora viesse a se esvair em sangue. Em Mamirauá, normalmente, ninguém está na escuta nos postos-rádio e, às vezes, não se entende absolutamente nada do que está sendo dito,contudo, nessa ocasião, seu pedido de socorro foi ouvido e, em quinze minutos, uma equipe lhe atendia, acompanhada de um especialista, com curso de primeiros socorros - uma raridade na RDS.
Outro problema crítico seria a evacuação imediata para o Hospital de Tefé. Nesse momento, ocorreu mais uma intervenção do anjo dorminhoco: eis que o Gerente Operacional do Instituto Mamirauá, César Modesto, fazia sua ronda periódica pelos diversos Flutuantes do Instituto numa lancha dotada de possante e barulhento motor. No mesmo instante em que Deise fazia seu apelo pelo rádio, o César havia diminuído a velocidade em virtude dos banzeiros e, graças a isto, pôde ouvir a mensagem, deslocando-se, imediatamente, para o local, fato que possibilitou uma evacuação em tempo recorde.
Deise chegou em estado de choque ao Hospital de Tefé, e foi prontamente atendida pelo Doutor Alberto Villa Lobos.

O Doutor Alberto é um perito em amputações e, graças a ele, a pesquisadora não sofreu nenhuma infecção,recebeu um tratamento especializado, o qual foi elogiado, mais tarde, pelos médicos de São Paulo, local para onde Deise foi transferida, para dar continuidade ao tratamento, e depois ser submetida à fisioterapia.
Nishimura, mostrando ter a fibra dos verdadeiros Samurais, voltou para RDS Mamirauá para dar continuidade às pesquisas sobre o boto vermelho, e lamentou-se ao saber que os ribeirinhos haviam matado sua algoz Dorotéia.

- Rotação Mortal

Achei estranho o comentário de alguns “especialistas” em jacarés, afirmando que o ataque seguido de rotação era privilégio dos crocodilianos. Lembrei-me de ter lido há algum tempo afirmação do ex-presidente americano Theodore Roosevelt e ornitólogo amador que afirmava: “Durante o vôo, o maguari e alguns outros pernaltas esticam o pescoço em linha reta...” fato que pude desmentir através de observação pessoal e fotos mais tarde. Com os jacarés e os crocodilianos, a mesma coisa acontece. Quando a presa é grande e não pode ser abocanhada de uma única vez, é usado o recurso da rotação, para arrancar membros, partir ossos ou matar. Pude observar esse recurso sendo empregado pelos jacarés do Pantanal, quando o alvo era uma capivara, veado ou porco do mato.

- Memória Curta

Quando estive na RDS Mamirauá, de 27 a 31 de dezembro de 2008, naveguei sem qualquer receio entre gigantescos animais que podem chegar, em casos excepcionais, a sete metros de comprimento, maiores que os crocodilos americanos (aligátor mississipienses). Na Pousada Uacari, numa conduta altamente condenável, os guias locais atraíam os enormes animais atirando pedaços de carne na água para que os turistas pudessem fotografá-los. No Flutuante Mamirauá, onde fiquei hospedado havia um gigantesco sauro, conhecido como Léo, animal que considerava o Flutuante como sua propriedade, garantindo sua posse graças aos seus formidáveis cinco metros. Ele, como os outros, eram alimentados, para deleite dos visitantes ou durante a preparação das refeições, o que com o tempo, fatalmente, os levaria a associar o cheiro de comida na Pousada Uacari ou Flutuantes à refeição fácil. Não tínhamos qualquer tipo de cuidado com os grandes animais e todos os consideravam como grandes animais “domésticos”. O acidente cruel com a Deise, segundo a Vera, parece que, depois de quase um ano, já caiu no esquecimento, uma vez que os procedimentos reprováveis voltaram a acontecer.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Desafiando o Rio-mar – Iniciando a 3ª Fase

Desafiando o Rio-mar – Iniciando a 3ª Fase

“Vê bem, Maria aqui se cruzam: este
é o Rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
como as saudades com as recordações”.
 (José Quintino da Cunha)

- Partida para Manaus

Surpreendentemente, a saída de Porto Alegre, pela Gol, saiu dentro do horário previsto, o mesmo não ocorrendo na conexão em Brasília onde o caos havia se instalado e parecia não querer arredar o pé. A todo momento, os passageiros eram orientados a buscar outros portões de embarque e, não raras vezes, em andares diferentes, num desrespeito flagrante ao usuário, e uma patente mostra da desorganização que reina no sistema aeroviário brasileiro, país que se propõe a sediar a Copa em 2014.

- Manaus

Cheguei à tarde em Manaus com um atraso de quase uma hora, e o amigo e Irmão gaúcho - 1º Sargento Vaz, encarregou-se de me conduzir ao 2º Grupamento de Engenharia (2ºGpt) onde fiquei hospedado. O Vaz, gentilmente, convidou-me para tomar um chimarrão em sua residência e saborear, no jantar, uma pizza preparada por sua querida e habilidosa esposa.

- Contratempos

No dia seguinte fiz questão de verificar as condições de meu caiaque, modelo Cabo Horn, fabricado pela Opium Fiberglass; fiquei surpreso e preocupado ao constatar, por estes amazônicos imponderáveis, que haviam extraviado os tampões dos compartimentos de proa e de popa, leme, pás do remo de reserva, e outros itens. Os tampões, eu os poderia improvisar com um plástico grosso e extensores, mas o leme, o qual possui tamanho, peso e formato muito específicos, faria muita falta ao enfrentar os famosos banzeiros e ventos de través. Tentei, sem sucesso, rastrear o caiaque do mesmo modelo que meu parceiro, o Coronel Teixeira, vendera, há dois anos, em Manaus depois de minha descida pelo Solimões. Contatei o amigo canoísta Marcelo da Luz, o “peixinho”, para ver se ele conhecia alguém em Manaus que possuísse um modelo semelhante. Informou-me que havia comprado um e se prontificou a levar os tampões e o leme até o 2ºGpt. Embora os tampões fossem diferentes, o leme era idêntico e ele se dispôs a emprestá-lo. Eu já havia encomendado o material ao mestre Fábio Paiva, da Opium Fiberglass, mas, certamente, ele não chegaria antes de minha partida, prevista para o dia 23 de dezembro. Minha jornada nem começara e eu já amargava um prejuízo de mais de mil reais.

- Lúcio Batista Guaraldi Ebling

Meu grande amigo Coronel Ebling foi, mais uma vez, meu ponta de lança, apoiando-me nos deslocamentos em Manaus para comprar alguns itens complementares. Tive a oportunidade de almoçar com ele por três vezes. Novamente, ele doou ao Projeto um kit completo de reparação para eventuais avarias na fibra de vidro do caiaque.

- Partida para Costa de Santo Antônio (23 de dezembro de 2010)

O 2ºGpt havia providenciado um apoio substancial ao meu deslocamento de Manaus a Santarém, em homenagem aos 40 anos do Grupamento. O Coronel Aguinaldo da Silva Ribeiro, meu ex-cadete e comandante do 8º Batalhão de Engenharia de Construção, sediado em Santarém, deslocou o B/M (Barco a Motor) Piquiatuba para me apoiar durante toda a jornada. A embarcação regional é constituída da seguinte forma: possui um convés principal e um convés superior, uma cozinha, dois camarotes, dois banheiros, freezer, máquina de lavar roupas e televisão. Eu ia contar, graças aos discípulos de Vilagran, de um conforto que jamais havia imaginado, e resolvi dormir embarcado, na véspera da partida na nau para evitar qualquer tipo de atraso. Improvisei tampões para o caiaque, montei minha barraca e a fixei solidamente no convés superior, criando mais um aposento como alternativa. A zelosa tripulação era formada pelos soldados Mário Elder Guimarães Marinho (Comandante do B/M), Walter Vieira Lopes (Sub-comandante do B/M), Edielson Rebelo Figueiredo (Chefe da Casa de Máquinas) e Marçal Washington Barbosa Santos (cozinheiro) nosso bom Gourmet.

Acordei às 4h45min, antes do amanhecer, e iniciei minha navegação pelo Rio Negro, partindo do estaleiro do senhor Oziel Mustafa onde estávamos ancorados. Saí cedo, tentando evitar a agitação que se seguiria. Às 5h45min, o sol apontou, ainda preguiçoso no horizonte - exatamente no alinhamento de minha proa. No mesmo instante em que eu passava na frente da estação de São Raimundo, fui, então, agradavelmente surpreendido com os maravilhosos acordes de nosso Hino Nacional. A magia do emocionante momento envolveu-me e senti uma elétrica vibração a percorrer-me a epiderme. Continuei minha navegação e tive, mais de uma vez, de desviar-me de pilotos mal-educados, que teimavam em sair de sua rota simplesmente para criar marolas, que prejudicassem meu deslocamento. Eu já presenciara este comportamento condenável por diversas vezes no Guaíba, onde pilotos de lanchas e Jet Sky, contrariando normas estabelecidas e o bom senso, não priorizam as rotas de remadores e velejadores. Passei pela área do Porto do Chibatão, onde, no dia 17 de outubro deste ano, ocorreu o deslizamento do barranco, provocado pela ação das águas, arrastando containers e carretas para o leito do Rio Negro.

Fiz a primeira parada na ilha Marapatá em frente à Refinaria de Manaus, recebi um telefonema da minha filha Vanessa, às 7h07min, e enviei uma mensagem para o Coronel Colbelo do 2ºGpt, informando-lhe minha posição. Foi o último contato que pude estabelecer nos três primeiros dias de viagem. A equipe de apoio do Piquiatuba ultrapassou-me e ficou aguardando à jusante da ilha. Continuei minha navegação e, logo em seguida, pude observar o encontro das águas.

- Encontro das Águas

“Vê como se separam duas águas,
Que se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.

É um simulacro só, que as águas donas
D’esta região não seguem o curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos Rios do Universo;
(José Quintino da Cunha)

O Negro enfrentava a maior estiagem dos últimos quarenta anos e não era páreo para o formidável Solimões. Na altura da Ponta das Lajes, o limite entre ambos era nítido, as alfaces d’água, aguapés, pequenos pedaços de madeira marcavam a fronteira entre os formidáveis mananciais; aqui e ali as águas leitosas do Solimões penetravam céleres no flanco direito do Negro. Os ataques se tornavam cada vez mais frequentes e violentos à medida que eu avançava. Minhas fotografias aéreas, certamente da época da cheia do Negro, mostravam suas águas progredindo, cada vez mais estreitas, até a altura de Itacoatiara, a 200 quilômetros da foz. Hoje as águas do Negro guardavam apenas uma pálida lembrança do pujante afluente. As águas do Solimões passavam o comando para o Amazonas que continuava não dando trégua ao arquirrival e o comprimia sem clemência de encontro à margem esquerda, até que não restasse nenhum vestígio das águas “negras como tinta”. Há séculos, a luta entre estes dois titãs vem encantando aos poetas, naturalistas, pesquisadores e a todos que têm a oportunidade de admirá-las. E pensar que no século XVI o nome do Amazonas - de Orellana a montante de Manaus, foi alterado para Solimões, tendo em vista na época se desconhecer em qual dos dois titãs se encontraria a nascente natural do Amazonas...

- O Conto das Águas

Mais uma vez caí no “conto das águas”. A tripulação do Piquiatuba informou-me que a água do reservatório era de boa qualidade e eu acreditei. Infelizmente, minhas vísceras, não. Estava tresnoitado ao iniciar minha jornada e, além da desidratação, provocada pela disenteria, o sol causticante forçava-me a beber a água contaminada. Só então dei-me conta de que a água deveria ser a causa; acerquei da embarcação de apoio para pedir que enchessem meu cantil com refrigerante. Procedi da mesma forma em mais duas oportunidades - era muito bom poder contar com este tipo de ajuda em pleno rio sem a necessidade de aportar.

- Puraquequara e Missão Novas Tribos

A passagem pelo Puraquequara sinalizada, nitidamente, pelo Farolete Maronas trouxe-me gratas lembranças do Curso de Operações na Selva do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), exemplos de superação, de camaradagem, de coragem, de fé e, sobretudo, de determinação dos companheiros do COS A/99. Dedicarei um capítulo especial em meu futuro livro a respeito deste Centro de Instrução que é considerado, indiscutivelmente, o melhor do gênero em todo o mundo.

Na boca do Puraquequara existe uma instalação da controvertida Missão Novas Tribos do Brasil, filiada à Sociedade Internacional de Linguística, que mereceria um capítulo à parte, mas cujo objetivo pode ser resumido como - aniquilar povos e culturas e salvar línguas. A ONG exerce sua nefasta ação na Amazônia com a total conivência e omissão das autoridades “(ir)responsáveis” e já foi processada por ter invadido área indígena dos Zo’e, provocando a morte de 40 silvícolas por infecções respiratórias. A Associação Brasileira de Antropologia acusa os membros da famigerada seita fundamentalista também pela destruição cultural, por promover a desagregação social, realizar prospecção mineral e contrabando. Vários países latino-americanos mais atentos já expulsaram os vis missionários de seus países.

- Costa de Santo Antônio

A viagem continuou sem grandes novidades pela face Norte da enorme Ilha do Careiro (40 km de extensão), e chegamos ao nosso local de destino por volta das treze horas, depois de remar por 70 quilômetros durante 7h30min. O Porto era um pequeno igarapé na Costa de Santo Antônio, um quilômetro à jusante do igarapé de mesmo nome da Costa - exatamente na parte mais estreita, compreendida entre a margem esquerda do Amazonas e a Ilha das Onças. A tripulação foi pescar com a tarrafa que eu adquirira em Manaus. À noite, no jantar, degustamos o fruto de seu labor.

Uma chuva torrencial iniciou à tarde, felizmente depois de estarmos perfeitamente atracados, protegidos e instalados na foz do igarapé.