MAPA

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sábado, 5 de março de 2011

Desafiando o Rio–mar – Simbolismo da Cerâmica Santarena

Desafiando o Rio–mar – Simbolismo da Cerâmica Santarena


Pouco depois de nascer, recebe o bebê um nome, tirado de planta ou animal; esse nome, porém, muda-o ele diversas vezes em sua vida, logo que realiza alguma façanha heróica, na guerra ou na caça. Acontece tomar assim a mesma pessoa cinco ou seis nomes, um após outro. (SPIX e MARTIUS)
A ocorrência da representação de animais na decoração de alguns utensílios e principalmente em urnas funerárias, e a identificação dessas espécies na fauna da região, possibilitou que se atribuísse um caráter mágico-religioso à essas representações, que estariam ligadas a histórias míticas, com base em analogias etnográficas. (Denise Schaan)
 
– Símbolos

Os pesquisadores ao longo dos tempos tentaram em vão identificar o simbolismo dos adereços antropomorfos e zoomorfos que compõem a refinada Arte de Santarém. Cada traço, cada representação geométrica ou imagem tem o seu significado, a sua motivação. Os animais representados em cada peça não foram selecionados aleatoriamente, alguns deles são seres místicos cultuados pelos nativos, outros, identificam o clã a que pertenceram os ancestrais reverenciados nas urnas funerárias. Depois de comparar, analisar os Costumes, Organizações Sociais e Ritos Fúnebres de diversas etnias vou esboçar uma teoria a respeito dos ícones cultuados pelos incríveis Tapajó. Infelizmente os desbravadores e religiosos do passado se preocuparam mais em condenar sua “idolatria” do que entender sua cultura, do contrário não estaríamos aqui, hoje, tentando montar este intrincado mosaico na tentativa de interpretar sua magnífica arte cerâmica e seus elaborados ritos pretéritos.

(...) linguagem, às vezes bem expressiva que nos vai contando hábitos, crenças, gostos, lendas, preferências desse povo extinto. (Frederico Barata) 
Alguns elementos são muito constantes nos vasos de gargalo e cariátides tais como: o Urubu-rei, o Mutum–cavalo, o Jacaré, o Morcego e a Rã. Estes animais são reverenciados, respeitados ou temidos, por diversas etnias, por uma série de razões que elencarei a seguir. Logicamente os Tapajó consideravam estes seres tão importantes quanto as demais tribos tendo em vista se encontrar muita semelhança nas lendas e costumes destes povos.

– Urubu–rei

Urubu–rei

O urubu–rei recebe destaque especial no imaginário indígena que o considera como o dono do fogo, chefe das demais aves e o mestre dos ventos. Ele faz parte do repertório das Lendas e Mitos de diversos povos como os Parintintins, os Kamaiurá, os Kuikúru, os Tembé e certamente estava incorporado às Lendas Tapajó.

- Mutum–cavalo

Mutum–cavalo
Algumas etnias consideram que a constelação do “Cruzeiro do Sul” é na verdade um enorme mutum no vasto campo do céu, outras acham que a cobra grande pode nascer de um ovo de mutum. Segundo os Mayoruna, que antes só comiam terra, o Mutum os levou para sua terra onde ele lhes mostrou o que comer e como preparar os alimentos.

– Jacaré-açu

Jacaré-açu

O Jacaré-açu pode chegar até setes metros de comprimento e o seu tamanho descomunal, ainda nos dias de hoje, provoca medo e respeito nos povos ribeirinhos. O magnífico réptil, além de ocupar o topo da cadeia alimentar, não encontrava adversários, à sua altura, nem mesmo entre os formidáveis guerreiros Tapajó. Ele era respeitado, talvez até adorado e, por isso mesmo tão presente nos adornos dos vasos rituais.

- Morcego

Morcego

Franz Kreüther Pereira, no seu livro Painel de lendas & mitos da Amazônia faz o seguinte relato a respeito do morcego:

O Cãoera é uma espécie de “morcegão”, um morcego muito grande do porte de um urubu, que pode sugar todo o sangue de uma pessoa adormecida sem que ela desperte e, em seguida, devorá-la. Adélia Engrácia dá-nos três versões desse mito, recolhidas junto aos índios Mura. Nela encontramos a informação que o Cãoera habita os buracos na terra e surge quando se faz “misturado de jabuti e outras carnes, no mato” ou “quando se queima pêlos ou penas de animais”. Também, pode surgir - adverte Adélia - quando “se joga espinha de peixe n'água” ou até quando “se grita na mata”. Aparentemente a área de abrangência do mito é a região fronteiriça às Guianas, território das famílias Aruak, Karib e também Tupi, porém a estudiosa dos Mura ressalta que, em suas viagens pelos rios Negro e Xingu, jamais ouviu referências a esse sobrenatural. O Cãoera é descrito por Hurley como capaz de suspender “sem grandes esforços, um boi nas garras e o vae devorar nas alteirosas itacangas dos contrafortes de Tumúquehumáque”, o que nos faz lembrar do mitológico pássaro Roca, das “Mil e Uma Noites”. Parece-nos claro que este mito recebeu influência dos povos andinos, incorporando elementos que o associam ao Condor.
- Rãs (Muiraquitã)

É fácil entender porque a pequena rã amazônica recebia tanto destaque na cerâmica ritual de Santarém. A secreção peçonhenta do pequeno batráquio intimidava os adversários e permitia aos Tapajó sobrepujarem todos os seus oponentes no campo de batalha. Eles eram os únicos, naquela região, a dominar a tecnologia de envenenar as flechas e isso os colocava em condições de vantagem sobre as demais tribos. O veneno, certamente, não era o curare pelos motivos vou expor a seguir.

Curare
Carvajal, Acuña, Heriarte, dentre outros cronistas e pesquisadores pretéritos, mencionam o uso de flechas envenenadas por diversas tribos da Amazônia. A maioria dos relatos menciona que o veneno utilizado era o curare. A primeira referência escrita que existe sobre o curare aparece nas cartas do historiador e médico italiano Pietro Martire d’Anghiera (1457/1526). As cartas foram impressas parcialmente em 1504, 1507 e 1508, e sua obra completa foi publicada em 1516 com o nome “De Orbe Novo”. Pietro fala de um soldado mortalmente ferido por flechas envenenadas durante uma expedição ao Novo Mundo e escreve uma carta ao Papa Leão X falando das propriedades do curare que reproduzo um trecho abaixo:
O Curare tem uma característica especial – própria do veneno americano – bloquear a transmissão neuromuscular nas sinapses e, portanto, causar a morte por paralisia dos músculos respiratórios. Usado, antes, apenas como veneno, hoje, está sendo aplicado na medicina: seus princípios ativos sintetizados são coadjuvantes essenciais e universalmente difundidos como anestésicos nas cirurgias. (MOTTIN)
José Monteiro de Noronha, em 1768, faz o seguinte relato:
121. Dos índios, que habitam no Japurá, só são antropófagos os das nações Miranya, e Umauá. Para a caça, usam todos de esgravatana (zarabatana) e, para a guerra, de escudos cobertos de peito de jacaré ou couro de anta; cuidarus, que são uns paus de cinco palmos, mais e menos, de comprido, chatos, bem levigados (lisos), esquinados (facetado, anguloso) de duas polegadas de largo, e mais largos na ponta, e lanças feitas de pau vermelho, cujas pontas, e também as das flechas, que despedem com as esgravatanas são envenenadas. O veneno é feito da cortiça de certo cipó, ou pau flexível chamado “uirari”, de superfície escabrosa, um palmo mais e menos de diâmetro, e folhas como as da maniva. Moída a casca, ou cortiça do dito cipó e borrifados os pós com água, os põem a destilar, e o sumo, que corre, fervem ao fogo até ficar na consistência de extrato, ou unguento. Ao dito “uirari” ajuntam os sumos de outros cipós, e vários venenos, que conhecem, para o fazerem mais ativo. (NORONHA)
O naturalista alemão Alexander Von Humboldt e seu companheiro francês Aimé Bonpland, em 1800, exploraram o Rio Orinoco e Rio Negro, demonstrando que as bacias do Orinoco e da Amazônica comunicam-se entre si pelo Canal do Cassiquiare. Na oportunidade, ele faz um interessante relato sobre o curare, reproduzido na interessante obra “O Cosmos de Humboldt”:
O principal artigo de exportação de Esmeralda era uma forma particularmente fina de curare, que era vendida a um preço elevado. Quando Humboldt chegou, a maioria dos índios acabava de voltar de uma expedição de coleta de plantas usadas na produção do veneno. Sua volta foi marcada por um grande festival entre os homens, com dois dias de banquete à base de macaco assado e dança ao som da música de toscas flautas de caniço. Enquanto seus vizinhos se embriagavam, o índio velho, encarregado de fabricar o veneno fazia seu trabalho mortal, permitindo que Humboldt levasse para a Europa a primeira receita detalhada da droga.
Primeiro, o mestre do veneno pegava a casca dos cipós, já previamente retirada e esmagada em fibras. A isso, acrescentava água, filtrada lentamente através da casca num cone feito de folhas de bananeira e palmeira. O líquido amarelo resultante era então fervido em panelas grandes e rasas, sendo provado de vez em quando pelo mestre do veneno e ficando cada vez mais amargo à medida que fervia. (Humboldt também provou o veneno, que era atóxico, desde que não entrasse em contato direto com o sangue; na verdade, era bebido como um paliativo para o estômago, o que era absolutamente seguro — desde que a pessoa não tivesse cortes nem feridas abertas na boca). Quando o líquido atingia a concentração desejada, o mestre do veneno coava-o em folhas de bananeira enroladas para remover a matéria fibrosa. Mesmo nessa forma concentrada, o veneno ainda era muito ralo para aderir a uma ponta de flecha, então era misturado em seguida com o sumo viscoso de outra planta para encorpar; isso também dava ao curare sua cor alcatroada característica. A preparação acabada era então vertida em pequenas cabaças, nas quais era vendida.
Enquanto trabalhava, o mestre do veneno admoestou seus visitantes. “Sei”, disse ele, “que os brancos têm o segredo de fazer sabão”, cujos mistérios ele parecia achar que só ficavam atrás dos do curare, “e aquele pó preto que tem o defeito de fazer barulho quando usado para matar animais. O curare, que preparamos de pai para filho, é superior a qualquer coisa que vocês podem fazer lá embaixo. É o sumo de uma erva que mata em silêncio, sem ninguém saber de onde vem o golpe”. Aplicado à ponta de uma flecha e lançado por um canudo comprido, o curare maximizava a produtividade do caçador, uma vez que vários macacos podiam cair silenciosamente no chão antes que o resto do bando desconfiasse; com uma espingarda, podia-se caçar no máximo um animal por vez, porque os outros se dispersavam ao primeiro tiro. O curare matava uma ave em dois ou três minutos e um porco em dez a doze. Segundo os missionários, a carne abatida de outra maneira simplesmente não era tão saborosa.
Produzindo seus sintomas característicos de tonteira, náusea, sede extrema e dormência generalizada, o curare também era bem capaz de matar seres humanos, como haviam descoberto os conquistadores. O próprio Humboldt logo teve uma experiência que lhe serviu de lição sobre o cuidado com que se devia manipular o veneno. Ao deixar Esmeralda, ele guardara uma cabaça com curare ao lado de suas roupas. Com o calor, o veneno derretera e molhara uma meia. Quando já ia calçar a meia, por acaso ele sentiu o líquido gelatinoso a tempo: uma vez que seus pés estavam cobertos de picadas de insetos, o curare certamente teria entrado em sua corrente sanguínea, com um efeito fatal. (HELFERICH)
Joseph de Laporte, no seu “O Viajante Universal, ou Notícia do Mundo Antigo e Moderno”, editado em Lisboa, no ano de 1804, faz as seguintes considerações sobre o curare:
Carta CCCLXXXVII
Dos mortais venenos de que usam
A Nação Caberre, a mais desumana, brutal e carniceira de quantas sustenta o Orinoco, é a única possuidora do mais violento veneno, que a meu ver há na redondeza da terra. Esta Nação só conserva o segredo, e a fábrica dele, e logra a sua renda pingue do resto de todas aquelas nações, que por si, ou por terceiras pessoas, concorrem à compra do curare, que assim se chama. Vende-se em umas panelinhas novas, ou pequenos vasos de barro, que a que mais contém terá quatro onças daquele veneno, mui parecido na sua cor com o arrobe subido de ponto: não tem sabor, nem acrimônia especial: mete-se na boca, e traga-se sem perigo algum, com tanto que nem nas gengivas, nem em outra parte da boca haja ferida com sangue, porque toda a sua atividade e força é contra ele, em tal grau, que tocar uma gota de sangue, e coalhar-se todo o corpo com a velocidade de um raio, tudo é um. É maravilha o ver que ferido o homem levemente com uma ponta de flecha de curare, ainda que não haja mais rasgadura que a que faria um alfinete, coalha-se-lhe todo o sangue, e morre tão instantaneamente, que apenas pode dizer três vezes Jesus.
Um soldado, e depois alferes da escolta de nossas missões, oriundo de Madrid, chamado Francisco Masias, homem de brio e de valor, grande observador da natureza e das propriedades das plantas e dos animais, e até dos insetos, foi o primeiro que me deu a notícia da instantânea atividade do curare. Suspendi meu juízo, e o remeti à experiência. Apareceu logo uma manada de macacos amarelos, grande comida para os índios, e na sua língua se chamam arabata. Todos os índios companheiros se alistaram para matar cada um quantos pudesse; e tomando eu um índio de parte, lhe pedi que flechasse um daqueles macacos, o qual, parado em pé sobre uma folha de palmeira, com a mão esquerda segurava outra folha mais alta: deu-lhe a ponta da flecha no peito, levantou a mão direita, e fez ademão de querer arrancar a flecha, como o fazem quando as tais não têm curare, porém ao mesmo tempo de fazer o ademão, e sem acabar de chegar a mão à flecha, caiu morto ao pé da palmeira. Corri, ainda que estivesse perto, e não lhe achando o calor no exterior do corpo, mandei abri-lo desde o peito até abaixo, e não lhe achei indício algum de calor, nem também no mesmo coração. À roda deste havia muito sangue coalhado, preto, e frio; no resto do corpo quase não havia sangue, e o pouco que lhe achei no fígado estava do mesmo modo que o do coração; no exterior tinha uma escuma fria de cor um pouco alaranjada, e coligi que o frio sumamente intenso do curare esfria instantaneamente o sangue, e que este, à vista do seu contrário, vai refugiar-se no coração; e não achando nele suficiente abrigo, se coalha, e gela, e ajuda a morrer mais depressa o vivente, sufocado-lhe o coração.
Deixo outras ilações que fiz da atividade do curare para os curiosos , e vou a outra admiração; e é, que à minha vista fez o índio em pedaços o macaco, o pôs na panela e fez–lhe fogo, e a mesma diligência fizeram os outros índios com seus macacos: o meu reparo não era que comessem daquela carne, nem por ser de macaco, nem por ser morta com veneno: o que me admirava era que aqueles grumos de sangue envenenado, que em si continha toda a atividade do veneno, foram também parar dentro das panelas, e depois nos estômagos dos índios.
Fiz-lhes várias perguntas sobre a matéria, e fiquei tão satisfeito de suas respostas, que comi de uma de suas olhas o fígado, que no saboroso pode competir com o do mais tenro leitão, e ao depois, em semelhantes batalhas com os monos, sempre pedia fígado para provar dos despojos. O mesmo instantâneo efeito reconheci depois nos tigres, antas, leões, e outras muitas feras e aves: finalmente, é tanto que o índio nem sequer se assusta quando repentinamente lhe sai um tigre cara a cara; então, com grande paz, saca sua flecha, faz a pontaria e dispara com a certeza de que, com sua destreza, não erra tiro; e com mais certeza de que com tanto que lhe pique levemente a ponta do nariz, ou qualquer outra parte do corpo, dá um, ou dois saltos, e cai morto.
A vista deste inaudito e fatal veneno, e à vista da grande facilidade com que todas as nações do Orinoco e de suas dilatadas vertentes o conseguem, não posso conter-me sem exclamar louvando a sábia providência do Altíssimo, que dispôs que, não obstante de o saberem, e fazerem muitos danos, não sabiam bem aqueles bárbaros as invencíveis armas que têm no seu curare. Que Missionário, nem que soldado poderia viver entre eles, se desprezada pelos mesmos a silenciosa fúria de sua seta e curare, não se atordoassem com o estrépito contingente da espingarda?
Digo contingente, já na pólvora que não pega, já na pontaria que não é fixa, já nas muitas águas – que impedem totalmente seu manejo, quando pelo contrário, a ponta do curare, nem tem contraveneno, nem cura, nem dá tempo para clamar a Deus. Disse sem cura nem antídoto, porque ainda que um rapaz descobriu a um missionário que, ao que tem sal na boca, não faz mal o curare, o que achou ser certo depois de várias experiências feitas nos animais, não é praticável o tal remédio aos homens; porque quem aturará o sal largo tempo na boca? Se está na algibeira, não dá o veneno lugar a sacá-lo.
Carta CCCLXXXVIII
Continuação dos venenos do Orinoco
Na carta anterior, tereis visto, não sem admiração a força eficaz do curare: passemos a examinar a sua fábrica singularíssima. Importa saber que toda a peçonha do curare se origina de uma raiz do mesmo nome, que nunca dá folhas nem renovos, e ainda que cresce, sempre anda escondida; e para escondê-la mais buscou, ou assignou-lhe o Autor da natureza, não a terra comum ao resto das plantas, mas sim um lodo podre e corrupto daquelas lagoas, que não têm desaguadouro: e por tanto as suas águas só em caso de grave necessidade se bebem, por serem grossas, de má cor, de pior sabor, e de cheiro correspondente. Por entre o lodo corrupto sobre que descansam aquelas águas pestíferas, nasce e cresce a raiz do curare, parto legítimo de todo aquele montão de imundícias.
Extraem os índios Caberres estas raízes, cuja cor é parda, e depois de lavadas e cortadas em pedacinhos, as machucam e põem em panelas grandes a fogo manso. Buscam para esta operação a velha mais inútil da povoação, e quando esta cai morta com a violência do vapor das panelas, como de ordinário acontece, logo substituem outra velha no seu lugar, sem que elas repugnem este emprego, nem a povoação, nem a parentela o levem a mal, pois elas, e eles sabem que este é o paradeiro das velhas.
A proporção que se vai amornando a água, vai a pobre velha preparando a sua morte enquanto, de panela em panela, vai esfregando com água, e espremendo aquela raiz machucada, para que, com mais facilidade vá expelindo seu veneno, com cujo suco se vai tingindo a água, que não passa de morna, até tomar a cor de arrobe claro; então, a mestra espreme o caldo dentro da panela e deita, já fora como inúteis aquelas raízes sem suco. Mete logo mais lenha, e principia a ferver com força; a pouco espaço de ferverem as panelas, já envenenada, cai morta, e entra a segunda, que às vezes escapa, e às vezes não.
Chega finalmente a ponto o cozimento, diminui a terça parte do caldo, e condensado já grita a desventurada cozinheira, e acode logo o Cacique com os Capitães, e o resto da gente da povoação ao exame do curare, e a ver se está ou não em seu devido ponto. Molha o Cacique a ponta de uma vara no curare, e ao mesmo tempo um daqueles índios, com a ponta de um osso, faz uma ferida na perna, na coxa, ou no braço, e ao mesmo tempo de assomar o sangue pela boca da ferida, chega o Cacique a ponta da vara com o curare, porém não toca, nem arrima o curare ao sangue, mete-a somente perto, porque se o tocasse, e retrocedesse, infeccionaria todo o das veias, e morreria logo o paciente. Se o sangue que estava a ponto de sair retrocede, já está o veneno no seu ponto; se fica parado, e não retrocede, falta-lhe já pouco para o seu ponto; porém se o sangue corre para fora, como naturalmente deve correr, falta-lhe muito fogo e assim ordenam à triste velha que prossiga no seu perigo próximo à morte, até que, feitas depois as provas necessárias, aquela natural antipatia com que o sangue se retira violentamente do seu contrário, lhes manifesta que já o curare subiu à sua devida, e suma atividade.
Apesar de ter tido muitas vezes o curare nas minhas mãos, não sou testemunha ocular da sua referida fábrica; porém tenho a individual notícia dele por tão seguras vias, que não me dão lugar à menor dúvida, ou suspeita. Depois que baixei ao Orinoco, tive as mesmas individuais notícias por índios de várias nações, aqueles mesmos que concorrem à feira anual do curare, e voltam com suas panelinhas, mais guardadas que se fossem de um bálsamo mui precioso, cujas declarações, ainda que de tão diversas gentes, sempre achei concordes em tudo com a primeira, e individual notícia que disse e assim não tenho razão alguma de duvidar em quanto à certeza do referido na fábrica do curare.
Não é menos digna de saber-se a duração deste veneno, isto é, a obstinação com que conserva toda a sua atividade e vigor até que se acabe de gastar todo, apesar de tê-lo os índios sem resguardo algum, sem tapar as panelinhas em que o compram, sem evaporar-se, nem perder nada da sua mortal eficácia; porém, finalmente, como está ali junto, e condensado, não é muito de admirar que conserve toda a sua atividade. A cousa singular e digna de admirar-se é que, uma vez untadas as pontas das flechas com mui módica porção, que apenas chegará a uma meia oitava o que recebe cada ponta, conserva e guarda toda a sua força por muitos anos; de modo que até agora não se experimentou que, por largos anos, que aquela leve untura tenha estado sem resguardo algum na ponta da flecha, tenha já mais sido menor a força do curare. Só uma coisa reparei em várias viagens àquelas selvas; era que, ao sacar as flechas da aljava, ou para matar monos ou javalis, ou para os rebates repentinos, umedeciam a ponta metendo-a na boca.
Perguntei–lhes a causa, e me responderam sempre: “que com o calor da boca, e a umidade da saliva, se assegurava mais o tiro, avivando a atividade de curare”, cousa que me pareceu natural. (LAPORTE)
Em 1833, Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva na sua “Corografia Paraense, ou Descrição física, histórica e política da Província do Grão Pará” faz, as seguintes considerações a respeito das flechas ervadas (envenenadas):
O uso das flechas envenenadas remonta à mais alta antiguidade, pois já era conhecido na Ásia muitos séculos antes de Alexandre; na Itália antes da fundação de Roma; na América, antes da chegada de Colombo. Algumas tribos Indígenas desta Província apenas se servem delas para as caçadas e não nas guerras, semelhantes nisto aos antigos Gallos. O Padre Plumier, na sua obra “Nova plantarum Americanarum species”, dá o nome de Mancanilla, que é o “Hippomanes vegetal de Brown”, a certo arbusto que se encontra nas Antilhas e ilhas de S. João do Porto Rico, de cujo suco se extrai famoso veneno pelos Caraíbes: este arbusto ainda é mais perigoso que o “verari” porque a ejaculação da “seve” produz cegueira, e algumas vezes a morte subitamente. O “verari”, porém, ou curare, segando (cortando) outros, sem a mesma comisturação (mistura) de outras partículas vegetais e animais, é mortífera. Pertence à classe dos cipós, dá-se nos lugares pantanosos, suas flores tetrapétalas são de cor amarelo-pálida, às quais sucedem pequenos frutos do formato de uma fava, numa cápsula periforme; os índios são ciosos em patentear a maneira do fabrico, todavia este consiste na extração por meio do fogo dos sucos venenosos da casca que lhe escabrosa, e raízes colhidas no tempo de verão, tomando na ação do cozimento uma forma espessa, à qual então reúnem outras substâncias vegetais venenosas, e formigas tocandeiras (tocandira), guardando depois o veneno em pequenas panelas, onde se conserva em continua fermentação que perde pelo trato do tempo, tornando então a sofrer nova ebulição no fogo, misturando-se-lhe o tucupi (ácido cianídrico) ou sumo da mandioca.
Tocandira (Paraponera clavata): é um inseto himenóptero classificado na grande família dos formicídeos, subfamília das poneríneas. De cor preta, chega a medir 25 mm de comprimento. Ocorre da Nicarágua à Amazônia, região onde é também conhecida como tucandeira, tucanaíra, formiga-agulhada, formiga-cabo-verde, formiga-de-febre, formigão e outros nomes. Dentro das matas, onde vive, a tocandira constrói ninhos subterrâneos na base das árvores, cujas copas utilizam para forragear. A maioria de suas atividades restringe-se ao período noturno. As picadas no homem causam manchas e calombos na pele, mal-estar generalizado e vômitos. A dor, profunda e penetrante, é sentida por períodos de 12, 24 ou até 48 horas. Compressas de água quente, na região atingida, auxiliam a difusão e consequente neutralização do veneno. (www.biomania.com.br)
Conhece-se a perfeição da composição tocando com qualquer ponta impregnada no veneno, pois que este adquire sangue fresco, em este uma instantânea coagulação; se o contrário porém, sucede, torna para o fogo, e são mui prejudiciais os vapores que exala durante a decocção, aqueles que os recebem pela boca ou nariz, operação esta que os mesmos índios previdentes encarregam às velhas decrépitas e inúteis.
Conservam as flechas impregnadas por longos anos a sua força, e costumam os índios, antes de as disparar metê-las na boca para as salivarem, do que nenhum dano resulta, pois que o perigo consiste em ferir a cútis: então segue-se rapidamente a morte, porque o sangue toma uma coagulação súbita, ou, o que importa a mesma coisa, uma secreção da linfa dos glóbulos sanguíneos: os sintomas dos mortos com esse veneno não diferem dos da mordedura de qualquer cobra; o sangue coagulado nos grandes vasos extende-os excessivamente, e a linfa amarela introduzida nos capilares faz aparecer sobre a cútis manchas lívidas. Não se conhece antídoto contra tal veneno, o açúcar passa pelo melhor, posto que noutros países o sal seja mais eficaz, como se experimentou em Leide, em 1744, com as flechas levadas por Condamine. Sabe-se por Celso que os Romanos costumavam diminuir a força do veneno, chupando a parte ofendida: é provável que a saliva, introduzida assim na chaga, contribua também a diminuir pelo seu sal alcalino a ação do veneno; não é, porém nociva a carne dos animais mortos com esse veneno conhecido no país por hervadura. (SILVA)
Em 1839, o Major Antônio Ladislau Monteiro Baena, no seu Ensaio Corográfico Sobre a Província do Pará, faz um pequeno relato sobre a preparação do curare:
O veneno vegetal, de que se servem para peçonhentar as ponta das flechas dos murucuas e dos curabis, é extraído de um cipó chamado “uirari”, grosso, escabroso e guarnecido de folhas parecidas com as da maniva. A sua manipulação consiste em mascotar a casca, borrifá-la com água fria, destilá-la e fervê-la ao lume até ficar o sumo espessado em ponto de linimento. Para aumentar a energia do tóxico, adicionam-lhe sucos espremidos de outros cipós e vegetais que sejam de natureza venenosos. (BAENA)
Marcelo Coutinho Vargas (Professor adjunto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSCar) e Marcelo Fetz de Almeida (Mestrando do PPGCSo/UFSCar) escreveram um interessante artigo a respeito do “curare” denominado “Biodiversidade, Conhecimento Tradicional e Direitos de Propriedade Intelectual no Brasil: por uma abordagem transcultural compartilhada”. O artigo, reproduzido abaixo, deixa claro que a ingestão oral do curare não gera efeitos nocivos embora alguns pesquisadores defendam que pode ocorrer intoxicação quando se ingere quantidades muito grandes e que a paralisia é sua principal manifestação.
A presa envenenada por curare tem sua morte causada por asfixia, uma vez que este provoca o relaxamento e a paralisia dos músculos esqueléticos associados à respiração. Contudo, o veneno somente funciona se inoculado diretamente no sangue, não gerando efeitos nocivos ao ser ingerido por via oral. Durante o envenenamento por curare, conforme observado por Benjamin Brodie, em 1811, o coração da presa continua a bater, mesmo quando a respiração cessa, o que significa que a função cardíaca não é bloqueada pelo curare. O horror do envenenamento por curare estaria no fato de a vítima permanecer consciente, sentindo a paralisia tomar-lhe conta progressivamente de todo o corpo. Os principais elementos químicos do curare são alcalóides que afetam a transmissão neuromuscular. Entre estes alcalóides, o mais comum é a curarina e a tubocurarina.
Isolada em 1897, sua forma cristalina só foi obtida a partir de 1935, passando a ser comercializada com os nomes de Tubarine, Metubine Iodine, Tubadil, Mecostrin, Atracurium e Vecuronium, indicados como relaxante muscular. Sua utilização como anestésico teria início apenas em 1943, quatro anos depois que o princípio ativo da d-tubocurarine foi isolado. As drogas derivadas desta substância são utilizadas como um poderoso relaxante de músculos esqueléticos durante cirurgias “de peito aberto”, especialmente as cardíacas, para controlar possíveis convulsões. (COUTINHO e ALMEIDA)
Curt Nimuendaju afirmou categoricamente que o veneno usado nas flechas dos Tapajós não era o curare, pois os efeitos registrados eram muito diferentes dos provocados por esta toxina. O Padre João Felipe Bettendorf confirmava esta teoria, no Capítulo III de seu livro, informando que os Tapajó adicionavam veneno aos alimentos para eliminar pessoas indesejáveis. Como já citamos anteriormente, a ingestão oral de curare não gera nenhum efeito nocivo, qual seria, portanto, o veneno usado pelos temidos Tapajó?
Os vassalos do Principal foram se casando à imitação do exemplo que lhes dera; um só Sargento-mor havia por nome Tuxiapó, o qual estando amancebado com uma gentia, a não queria largar e ia ameaçando feramente a quem se atrevesse do lha querer tirar. João Corrêa, ainda que esforçado português, tinha medo dele, e já não queria comer as pacovas (bananas) que vinham de sua casa pelo medo que tinha de ser morto com peçonha, muito usada entre os Tapajoz; zombei disso, e vindo me falar nisso lhe disse que se não queria comer as pacovas as mandasse a mim e a meu rapaz: e fiz tanto com o Sargento-mor que finalmente tocado do uma especial graça do Senhor se rendeu ao que se lhe pedia. Com isso instruí a manceba em os artigos de nossa Santa Fé e batizei-a, dando-lhe por nome Luzia o finalmente a casei com o dito Sargento-mor Tuxiapó. (BETTENDORF)
Garcia Soria, da equipe de Orellana, morreu quase um dia depois de ser atingido por uma flecha Tapajó. O outro veneno, utilizado por diversas tribos amazônicas, advinha da secreção de pequenas rãs venenosas. Algumas delas, com o passar do tempo e privadas de seus alimentos altamente tóxicos perdem, pouco a pouco, sua letalidade e isto justificaria a longa agonia de Garcia de Soria. A preparação do curare, por sua vez, obedecia a um processo secular, rígido e uniforme perfeitamente dominado pelos pajés e de eficácia comprovada quando em contato com o sangue.
No final das contas, escapamos quase sem problemas, ainda que tenha sido morto outro companheiro nosso chamado Garcia de Soria, natural de Logronho. Na verdade não lhe entrou a flecha meio dedo, mas como estava já com peçonha, não suportou nem vinte e quatro horas e rendeu a alma a Nosso senhor. (CARVAJAL)
Muiraquitãs

Muiraquitã

Desde a colonização, foram encontrados objetos manufaturados com pedras verdes no Norte do Brasil. Estes pequenos pingentes imitando, na sua maioria, batráquios fascinaram os pesquisadores nacionais e estrangeiros.
Osvaldo Orico (1937)
É uma das crendices mais interessantes da planície este pequeno amuleto de jade, que Barbosa Rodrigues celebrou em uma de suas obras, com um pouco de fantasia, talvez, mas com edificante e curiosa contribuição. Em torno do maravilhoso artefato que a paciência de naturalistas ilustres andou catando pelo Baixo Amazonas e localizou nas praias de Óbidos e na embocadura do Nhamundá e Tapajós, correm as lendas mais desencontradas e as revelações mais contraditórias. De todas elas, porém, a que mais caracteriza a pedra verde da Amazônia é a que apresenta como lembrança das Icamiabas, mulheres sem marido, aos homens que lhes fazia uma visita anual. A tradição adornou esse ato de galas e de festas, vestiu essa visitação de romantismo e de enlevo. Graças a isso, convencionou-se que as tribos de mulheres, nas noites de luar, colhiam no fundo do Lago as pedras ainda umedecidas e moles, lavrando-as sob diversas formas e dando-lhe feitios de batráquios, serpentes, quelônios, bicos, chifres, focinhos, conforme nos apresentam os estudos de Ladislau Neto e Barbosa Rodrigues. Tempo houve em que era fácil o comércio desse amuleto. As pedras foram, porém, escasseando, constituindo hoje uma raridade tanto mais desejada, quanto se lhes atribui a virtude de favorecer ao seu possuidor a aquisição de coisas imponderáveis como a felicidade, o bem-estar, o amor e outras prendas furtivas. Ainda hoje, para muitos, o muiraquitã é uma pedra sagrada – escreve Barbosa Rodrigues, – tanto que o indivíduo que o traz no pescoço, entrando em casa de algum tapuio, se disser: “muyrakitan katu”, é logo muito bem recebido, respeitado e consegue tudo o que quer. (ORICO)
Charles-Marie de La Condamine (1743)
É entre os Tapajós que se acham hoje, mais facilmente, dessas pedras verdes, conhecidas pelo nome de pedras das Amazonas, cuja origem se ignora, e que foram tão procuradas outrora, por causa da virtude que se lhes atribuía para curar a “pedra” a cólica nefrítica, e a epilepsia. Houve um tratado impresso sob a denominação de Pedra Divina. A verdade é que elas não diferem, nem na cor nem na dureza, do jade Oriental: resistem à lima, e ninguém imagina por qual artifício os antigos americanos a talhavam, e lhes davam diversas configurações de animais.
Foi, sem dúvida, o que deu lugar a uma fábula digna de refutar-se. Acreditou-se muito a sério que tal pedra não era mais que o limo do Rio, ao qual se dava a forma requerida, petrificando-o quando era tirado ainda fresco, e que adquiria ao ar esta dureza extrema. Quando se concordasse gratuitamente com semelhante maravilha, de que alguns crédulos não se desenganaram senão depois de ter experimentado inutilmente um processo tão simples, restaria outro problema da mesma espécie a propor aos lapidários.
São as esmeraldas arredondadas, polidas e furadas por dois buracos cônicos, diametralmente opostos num eixo comum, tais como ainda hoje se encontram no Peru, nas margens do Rio de Santiago, na província das Esmeraldas, a quarenta léguas de Quito, com diversos outros monumentos da indústria de seus antigos habitantes. Quanto às pedras verdes, elas se tornam cada vez mais raras, já porque os índios, que lhes dão grande importância, delas se não desfazem de boa vontade, já porque grande número delas foi enviado à Europa. (CONDAMINE)
Os muiraquitãs foram encontrados nas bacias dos Rios Tapajós, Trombetas e Nhamundá, mas a maior parte foi encontrada na bacia do Tapajós onde habitavam os Tapajó. A maioria dos artefatos representava pequenos batráquios o que nos leva a acreditar que os Tapajó ou outros povos antes deles estavam homenageando o animal que garantia sua supremacia guerreira, a rã venenosa. A secreção era usada nas pontas das flechas e lanças e, provavelmente, como ainda hoje o fazem algumas etnias em rituais místicos e de cura. A espécie responsável pela hegemonia bélica dos Tapajó jamais será descoberta. Novas espécies são descobertas e catalogadas enquanto outras são levadas à extinção por diversos fatores.
– Vacina do Sapo – Aplicação “Medicinal”

A aplicação das secreções produzidas pela Phyllomedusa bicolor (rã Kambo) é conhecida popularmente como Vacina do Sapo. O paciente é queimado com um cipó nos braços ou nas pernas, sobre estes pontos se aplica o veneno que desta maneira atinge a corrente sanguínea. Os indígenas acham que a “vacina” possa acabar com a má sorte na caça ou na pesca e afastar os espíritos que causam doenças.

As substâncias contidas na secreção da rã Kambo são venenosas, causando diarréia, vômitos, taquicardia e colapso sistêmico, levando ao óbito de pessoas saudáveis por overdose ou anafilaxia.

Anafilaxia: aumento da sensibilidade do organismo diante de determinada substância, provocado pela aplicação prévia (injeção ou ingestão) de uma dose, embora mínima, dessa substância.

A vacina fazia parte do conhecimento ancestral dos katukinas, do Acre. O seringueiro Francisco Gomes Muniz que convivera muito tempo com os katukinas aprendeu a aplicar a vacina e a identificar a rã. Ao regressar para a cidade, na década de sessenta, foi o precursor da aplicação da vacina entre os não-índios. Desde então o “remédio” ganhou os centros urbanos do país.

- Terribilis Phyllobates

Terribilis Phyllobates

A título de exemplo vamos citar aquela que é considerada a mais mortífera de todas as rãs. A rã-flecha amarela ou rã amarela venenosa (Terribilis Phyllobates) é endêmica da costa do Pacífico da Colômbia e é considerada como um dos animais mais venenosos do planeta. O veneno da rã-flecha, batraquiotoxinas, bloqueia a transmissão dos impulsos nervosos podendo levar à insuficiência cardíaca ou fibrilação. O veneno, alojado em glândulas sob a pele da rã, pode ser armazenado durante anos mesmo que ela seja privada do alimento que seja fonte dessa toxina. Alguns pesquisadores acham que a criatura que transmite os alcalóides assassinos para a rã é um besouro da família Melyridae. Os indígenas Emberá Choco, da Colômbia, usam seu veneno nas flechas para caçar. Os Emberá prendem a rã pelas patas e aproximam, cuidadosamente, uma fonte de calor até que ela exale seu líquido venenoso. As pontas das flechas embebidas no líquido mantêm o seu efeito mortífero por mais de dois anos.

– Clãs

Precisamos analisar outro aspecto antes de concluir qualquer tipo de hipótese sobre o simbolismo dos vasos rituais dos Tapajós (cariátides e gargalo).

CARIÁTIDES

VASO DE GARGALO





Considerando que sua cultura se perdeu nas brumas do passado precisamos recorrer à sofisticada organização social e aos rituais fúnebres de outras etnias indígenas cujos costumes lembram, um pouco, a dos Tapajó. Além dos animais reverenciados pelos Tapajó teríamos aqueles que simbolizavam o clã ou mesmo a genealogia do morto eram reproduzidos na cerâmica ritual.

Tikuna

Tikuna

Ao descer o Solimões, em 2008, conheci os formidáveis Tikuna. Através de textos de conhecidos antropólogos e do Cacique João Farias Filho, da Comunidade Feijoal, conheci suas Lendas, Costumes e Organização Social.
A sociedade Tikuna está dividida em Metades exogâmicas (Metade Plantas e Metade Aves), cada qual composta por Clãs patrilineares. Para ser reconhecido como Tikuna é necessário falar a língua Tikuna, pertencer a um Clã e casar obedecendo às regras dos Clãs.
Exogâmica: regime social no qual os casamentos só se podem realizar com membros de outras tribos ou Clãs. (Nota do Autor)
Patrilinear: sucessão por linha paterna. (Nota do Autor)
Yo’i fez um caniço e usou como isca para pescar o caroço do tucumã maduro, os peixes quando caíam na terra, se transformavam em animais, novamente o herói experimentou outra isca, dessa vez, usou a macaxeira, com essa comida os peixinhos começaram a se transformar em seres humanos. Yo’i pescou muita gente, mas seu irmão não estava entre essas pessoas. A mulher pegou o caniço e pescou Ipi, este saltou para a terra e pescou os peruanos e outros povos que acompanharam o herói e foram embora na direção do poente. Da gente pescada por Yo’i descendem os Tikuna e também outros povos que rumaram para a direção do nascente, inclusive brancos e negros, daí vem a autodenominação dos Tikuna que se chamam Maguta, o povo pescado. (GRUBER)
Mas Yo’i separou-as, colocando as suas a Este e as de Ipi a Oeste. Então ele ordenou que cozinhassem um jacururu e obrigou todo mundo a provar o caldo. E assim cada um ficou sabendo a que clã pertencia, e Yo’i ordenou aos membros dos dois grupos que se casassem entre si. (NIMUENDAJÚ)
Curt Nimuendaju estudou os Costumes e Organização Social dos Ticuna na década de quarenta e, na oportunidade, identificou quinze Clãs para a “Metade Plantas” e vinte e um para a “Metade Aves”. Os Ticuna identificam esses grupos através do nome de árvores, animais terrestres e insetos (“Metade Plantas”) e aves (“Metade Aves”). O fato da “Metade Plantas” ser composta por elementos tão distintos, segundo Nimuendaju, encontra amparo na mitologia Tikuna que acredita que a alma de algumas árvores vagueiam à noite, assumindo a forma do animal com o qual mais se identificam. Segundo os Tikunas, as formigas saúvas pertencem, também, a “Metade Plantas” simplesmente porque elas têm o costume de subir nas árvores.

Metades

Plantas
Aves


Subclãs

Subclãs
C
l
ã
s
Auaí
Auaí grande, Auaí pequeno, Jenipapo do Igapó.
Arara
Canindé, Vermelha, Maracanã, Maracanã grande, Maracanã pequeno.
Saúva
Açaí, Saúva.
Mutum
Mutum cavalo, Urumutum.
Buriti
Buriti, Buriti fino.
Tucano
Tucano.
Onça
Seringarana, Pau mulato, Acapu, Caraná, Maracajá.
Urubu-Rei
Urubu-rei.

A origem dos Clãs está intimamente ligada ao mito da criação do mundo segundo a versão Tikuna. Os irmãos e Ipi são os personagens centrais da Criação da Humanidade. Yo’i resolveu, um dia, pescar seu povo usando como isca uma fruta de tucumã, os peixes logo que saíam da água se transformavam em queixadas, porcos do mato e outros animais. Yo’i resolveu trocar a isca para a macaxeira e os peixes se transformaram no povo Maguta (povo pescado do rio). Os Maguta pertenciam a um único Clã e as pessoas, consequentemente, não podiam casar-se. Yo’i fez, então, um caldo de jacururu e distribuíram ao povo para que o provassem. Os primeiros que provaram a mistura passaram a ser reconhecidos como “Clã da Onça”, depois o “Clã da Saúva”, e desta maneira foram criados os diversos Clãs.

Apinagé

Arthur Ramos de Araújo Pereira, médico psiquiatra, psicólogo social, etnólogo, folclorista, considerado o pai da Antropologia Brasileira escreveu uma obra monumental - “Introdução à Antropologia Brasileira” - que deveria ser o livro de cabeceira dos que se candidatam, nos dias de hoje, ao estudo da antropologia. Vamos reportar suas considerações sobre a organização social dos Apinagé, um dos ramos do povo Gê.

O estudo mais recente e mais completo sobre a organização social dos Gê se deve a Curt Nimuendajú No seu trabalho citado sobre os Apinagé, vemos que são Matrilocais e organizados em Metades. (Moieties) Matrilineares (Me-Ga-Tcha), cada uma das quais ocupa inicialmente uma determinada parte da aldeia.

Matrilocal: o marido, depois do casamento, é obrigado a seguir a mulher, passando a morar na localidade dela.

Matrilinear: sucessão por linha materna.

O todo é disposto em circulo, sendo a metade superior (Kol-Ti) localizada ao norte e a metade inferior (Kol-Re) ao sul. Os Apinagé de hoje, embora topograficamente não mais obedeçam aquela localização, ainda se referem a Kol-Ti e Kol-Re, como sendo a “Aldeia de Cima” e a “Aldeia de Baixo”, respectivamente. De acordo com a lenda, Kol-Ti foi criado pelo Sol e Kol-Re pela Lua. As cores são o vermelho para os primeiros e preto para os segundos. Os chefes são sempre Kol-Ti tendo esta “metade” a preeminência na vida social de todo o grupo, embora nos grandes festivais, cada “metade” tenha o seu próprio chefe. As metades Apinagé não são exogâmicas, sendo o casamento regulado por um sistema diferente.

Cada “metade” possui uma série de nomes pessoais “grandes” e “pequenos”, masculinos e femininos. Esses nomes são transferidos do tio materno ao filho da irmã, e da tia materna à filha da irmã. A avó materna ou sua irmã podem tomar o lugar da tia, enquanto que o avô materno pode tomar o lugar do tio. Acontece que, impacientes, o tio ou a tia materna se apressem a transferir o nome, antes de a criança nascer e pode suceder que a menina fique com o nome masculino e vice-versa. Os portadores de nomes gozam de privilégios de acordo com a sua categoria. E há festas com dança e música especiais, não só nas cerimônias de transferência dos nomes, como em ocasiões futuras quando o portador do nome se obriga a certas tarefas

Independentemente da organização dual, em “metades”, a tribo Apinagé é dividida em quatro Kiyé, nome que significa “lado” ou “partido”. Estes Kiyé não são Sibs unilaterais, mas unidades bilaterais, constituídas no modelo familiar, isto é, os filhos seguem o pai, as filhas seguem a mãe. São exógamos, os homens de um Kiyé só podem desposar as mulheres de outro Kiyé. Suponhamos os quatro Kiyé, A, B, C, D; os homens de A só podem se casar com as mulheres de B; os homens de B com as mulheres de C, etc. As mulheres seguem o caminho inverso: as de B só podem casar com os homens de A; as de C com os homens de B; as de D com os homens de C. (RAMOS)

– Ritos Fúnebres

Novamente Arthur Ramos, na obra já citada, faz referência ao rito fúnebre dos Bororo e da importância do clã neste momento em que cada membro utiliza as cores e ornamentações especiais de cada clã e, logicamente, estes mesmos cuidados são levados em conta em relação ao clã a que pertencia o morto.

Os Ritos Funerários, a avaliar pelas descrições de Karl von den Steinen e do Padre Colbacchini, são bem complexos entre os Bororo. Quando um índio está muito mal, o Bari (feiticeiro da tribo) é chamado e prediz a sua morte. Daí em diante, o índio não toma nenhum alimento. Se a morte não chega no dia previsto, o Bari encarregasse de mostrar a exatidão da sua profecia, sufocando o moribundo. Quando o índio morre, seu corpo é ungido de urucu e imediatamente coberto a fim de que as mulheres e as crianças não o vejam. Começam então os altos lamentos das mulheres. Os parentes demonstram a sua dor, talhando o corpo profundamente com conchas cortadiças, de maneira a fazer correr profusamente o sangue. O número dos ferimentos é proporcional ao afeto que se tributava ao morto. Os ferimentos são depois tratados com a polpa do fruto do jenipapo.

Começam os cânticos fúnebres, cadenciados ao ritmo do Babo, instrumento feito de uma cabaça elíptica oca, contendo no seu interior algumas sementes duras, e um cabo de madeira. Enquanto isso, o morto é envolvido numa esteira com os objetos que lhe pertenciam, inclusive o arco e as flechas quebrados.

O cadáver é em seguida transportado ao Baimannageggeu, espaço de terreno, no centro da aldeia, onde se iniciam os funerais oficiais, que duram toda a noite. Os cânticos são dirigidos pelo chefe da aldeia, ornado com o Pariko. O cântico principal é depois seguido dos cânticos de cada Clã. A sepultura, de 30 a 40 centímetros de profundidade, é cavada próximo ao Baimannageggeu. Nela é depositado temporariamente o morto, e coberto de terra e água, enquanto que os parentes novamente retalham o próprio corpo, em altos gritos.

Diariamente os parentes vêm lançar água à sepultura, para apressar a putrefação do corpo e poderem retirar os ossos. O luto é observado pelos parentes, da maneira seguinte: arrancam ou cortam os cabelos e depois, à medida que vão crescendo, não os cortam na fronte e ao nível das orelhas, enquanto dura o luto. Abstêm-se de pintar o corpo com urucu. A duração do luto é de alguns meses a um ano e mais.

Na mesma tarde do enterramento, o Aroettowarari (médium) evoca as almas para saber a localidade onde se encontra a caça. Partem então todos os índios para essa caça religiosa-mágica em honra do morto. Os animais mortos são levados aos parentes do defunto e são comidos numa refeição comum. Duas semanas depois do enterramento, recomeçam os cânticos e as danças especiais – Mariddo, Aige e Aroe Maiwo – e por fim, ao som de um cântico especial, o morto é desenterrado, ainda putrefeito, e os ossos são extraídos e lavados no rio próximo. É organizada uma refeição social, para a qual são convidadas as almas dos mortos. As mulheres não tomam parte nesta refeição.

Os ossos são então pintados de urucu e ornados com as cores do Clã do morto. O crânio é também adornado cuidadosamente com penas. Tudo é colocado num cesto, também ornado com as cores do Clã, e na manhã seguinte, os ossos, dentro do cesto, são entregues à sua sepultura definitiva, no rio próximo ou num lago, mas sempre num lugar determinado, o Aroe Gari, ou “morada das almas”. Durante todo o tempo dos funerais, os índios adotam as ornamentações especiais, já descritas, e que variam para cada Clã. (RAMOS)

Logicamente os vasos de gargalo dos Tapajó reproduziam, também, embora de forma secundária, o animal que representava o clã do defunto. Muitas vezes o animal que representava o clã do finado fazia parte da lista dos animais místicos. O fato de as aves se apresentarem com as asas abertas ou fechadas pode sugerir que o falecido havia morrido em combate ou simplesmente de velhice na segurança de sua aldeia. As figuras antropomorfas que, eventualmente, faziam parte dos ornamentos representando adultos ou crianças indicam a idade do homenageado.

Contextos Deposicionais
As escavações realizadas no entorno de Santarém, mencionadas no capítulo anterior, identificaram dois tipos de descarte relativos à cerâmica cerimonial dos Tapajó: os bolsões e a cerâmica associada ao lixo comum. Nestas modalidades é difícil inferir qualquer tipo de ritual fúnebre já que os vestígios foram removidos e as peças misturadas sem cuidado.
A Noroeste do sítio Carapanari, porém, num local em que se pode descortinar o Rio Tapajós, foi realizada, sem dúvida, a descoberta mais importante. Foi localizado um vaso inteiro, com capacidade para armazenar em torno de 5 litros de bebida, e ao seu redor foram detectadas cinzas, o que nos leva a crer que o artefato foi enterrado e, ao redor dele, acesas pequenas fogueiras. No seu interior foi encontrada uma faca confeccionada em arenito, indicando um ritual funerário. Este modo de descarte, de deposição “in situ”, indica, evidentemente, a ocorrência de um ritual funerário. Nos grandes vasos de bebida, como o encontrado no sítio Carapanari, se misturavam as cinzas do morto e destinavam-se aos participantes do rito.
Vasos de Cariátides
Para os seres superiores, a bebida era colocada no vaso de cariátides considerando sua pequena capacidade e a dificuldade que se teria para alcançar o líquido em decorrência dos inúmeros artefatos aplicados em suas bordas. Os urubus-reis que adornavam, invariavelmente, a peça de cerâmica destinavam-se a conduzir o homenageado para sua derradeira morada. Observamos em algumas peças que estes animais, invariavelmente, quando voltados para a borda do vaso, tinham suas asas fechadas e para fora abertas sugerindo um rito de passagem.
Vasos de gargalo
Os vasos de gargalo serviam de urnas mortuárias onde eram depositadas parte das cinza do defunto. Estes vasos eram decorados com o animal que representava o clã do defunto e alguns de seus animais místicos. O fato de as aves se apresentarem com as asas abertas ou fechadas e os grandes sauros serem representados com a boca aberta ou fechada pode sugerir que o falecido tenha morrido em ação, no combate ou na caça, ou simplesmente de velhice na segurança de sua aldeia.
Outros animais que compõem as peças representavam, seguramente, alguma façanha heróica, na guerra ou na caça que muitas vezes, pela sua relevância, era motivo, inclusive, para mudar até o nome do homenageado. As figuras antropomorfas que, eventualmente, faziam parte dos ornamentos representando adultos ou crianças indicavam, eventualmente, a idade do finado. A presença constante dos batráquios nos vasos rituais reverencia o animal que garantia a supremacia bélica dos Tapajó no combate.
 
Fontes:

ACUÑA, Christóbal de – Nuevo Descubrimiento del Gran Rio de las Amazonas – Espanha – Madrid – Ed. García, 1891.

BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio Chorographico do Pará - 1839 - Brasil - Brasília, 2004 - Senado federal.

Bettendorf, João Felipe – Chronica da   Missão da Companhia de Jesus em o Estado do Maranhão (1698) - Belém: Secult, 1990.

CARVAJAL, Gaspar de – Relatório do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande Descoberto Pelo Capitão Francisco de Orellana – Brasil – Consejería de Educación – Embajada de Espana – Editorial Scritta, 1992.

GRUBER, J. G. - O livro das Árvores. Benjamim Constant, AM: Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues. Global, São Paulo, 2000.

NIMUENDAJU, Curt – Os Tapajó. In: Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi – vol X, Belém, 1948.

RAMOS, Arthur - Introdução à Antropologia Brasileira as Culturas Européias. Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1961.

SILVA, Inácio Accioli de Cerqueira e - Corografia paraense ou descrição física, histórica e política da província do Grão Pará (1833) - Typografia do Diário, Salvador, 1833.

VARGAS, Marcelo Coutinho e ALMEIDA, Marcelo Fetz de - Biodiversidade, Conhecimento Tradicional e Direitos de Propriedade Intelectual no Brasil: por uma abordagem transcultural compartilhada – UFSCar, 2006.