Os
Heróis Anônimos da Comissão Rondon
Hiram Reis e Silva (*), Porto Alegre, RS, 01 de dezembro
de 2014.
Ontem como
Hoje...
Ainda mais quando a
calma revelada pelos náufragos levou-os a atirar para terra as cadernetas de
levantamento, para que não se perdessem na corrente e com elas desaparecesse o
resultado do trabalho até aí executado. (MAGALHÂES)
Pena que as autoridades tupiniquins não tenham tido a capacidade de
aquilatar a relevância de nossa Descida pelo antigo Rio da Dúvida, hoje Rio
Roosevelt, desde Rondônia, atravessando o Noroeste do Mato Grosso até o
Amazonas, e da homenagem que seus expedicionários se propunham a prestar à
memória de Cândido Mariano da Silva Rondon – o Marechal da Paz e à Theodore
Roosevelt – o ex-Presidente dos EUA.
Há exatos cem anos estes dois grandes nomes da historiografia universal
gravaram, para sempre, seus nomes no “pantheon”
dos heróis da humanidade ao realizar a épica descida por um Rio totalmente
desconhecido, permeado de diversos Saltos, Cachoeiras e Rápidos, desafiando a
turbulência de suas águas e enfrentando as agruras de um ambiente hostil, sem
poder contar com qualquer tipo de socorro externo.
Os séculos correm celeremente pela nossa querida e malfadada “Terra Brasilis” e continuamos
eternamente, marcando o passo, estagnados moralmente, “in aeternum” citados como “o
país do futuro”, um porvir que cada vez parece tornar-se mais e mais
longínquo. Um povo que ignora o esforço titânico de seus antepassados, que é
incapaz de cultuar seus valores mais caros não conseguirá, jamais, almejar um
futuro pródigo para seus filhos. O Hino do Rio Grande do Sul traz na sua bela
letra uma insofismável verdade: “Povo que
não tem virtude / Acaba por ser escravo”.
O Coronel Amílcar A. Botelho de MAGALHÃES, há mais de setenta anos, já
apontava esse equívoco cometido pelas autoridades republicanas em relação ao
próprio Rondon:
O lado
moral, o lado heroico, o prisma sob o qual pudesse a nação aquilatar das
dificuldades vencidas e dos sacrifícios empregados para chegar a essa quilometragem
aritmeticamente contada e reduzida a mapas e a esquemas, são faces da questão
votadas ao silêncio, ao desprezo e quiçá mesmo ao ridículo dos homens de gabinete, incapazes de aguentar alguns meses de sertão...
Dos vastos e
admiráveis relatórios, que andam por cinquenta volumes, apresentados pelo
General Rondon ao Governo da República, vede o que transcrevem, sem cor e sem
entusiasmo, quase todos os Excelentíssimos Srs. Ministros da Guerra e da Viação
e Obras Públicas em seus relatórios anuais. Através
dos Relatórios Ministeriais a obra de Rondon é quase uma obra de anão!
(MAGALHÃES)
Heróis Anônimos
Da vontade fizeram renúncia
como da vida... Seu nome é sacrifício. POR OFÍCIO DESPREZAM A MORTE E O
SOFRIMENTO FÍSICO... A gente conhece-os por militares... por definição, o homem
da guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai CORAGEM, e
à sua direita a disciplina.
(Guilherme Joaquim de Moniz Barreto – Carta a El-Rei de Portugal, 1893).
Evidentemente a modelar conduta de Rondon cooptou o coração e as mentes
de seus jovens Oficiais que tão galhardamente seguiram seu exemplo e, algumas
vezes, imolaram-se anonimamente a serviço da Pátria. Não atacaram o inimigo nem
tomaram de assalto suas instalações – seu foco era a Missão, estendendo linhas
telegráficas ou demarcando os sertões de “brasis
ainda sem Brasil”; por vezes sacaram de suas armas atirando para o alto –
morreriam, e alguns pereceram, se fosse preciso mas não matariam nunca nossos
aborígenes; foram arrojados e indômitos – enfrentaram as vicissitudes da selva
e de seus habitantes hostis; cumpriram bravamente o que lhes foi determinado
sem jamais titubear ou contestar as ordens recebidas.
PARA MIM, ESTE HEROÍSMO É BEM
MAIS NOBRE E BEM MAIS DIFÍCIL, DEMANDA MUITO MAIS ENERGIA E TENACIDADE, DO QUE
O HEROÍSMO DO MOMENTO, DE DURAÇÃO EFÊMERA, COMO O QUE REQUER O ATAQUE DE UMA
TRINCHEIRA INIMIGA: A PRIMEIRA É UMA TEMERIDADE REFLETIDA, A SEGUNDA, UMA
TEMERIDADE QUE SE INCENDEIA COMO A PÓLVORA NEGRA, AO CALOR REPENTINO DO
ENTUSIASMO CONTAGIOSO DAS MASSAS, QUE ARRASTAM O HOMEM ÀS MAIORES LOUCURAS. LÁ
É O COMANDANTE QUE FASCINA A MASSA COM O SEU ENTUSIASMO VIRIL, AQUI A MASSA QUE
ELETRIZA O COMANDANTE, ENVOLVENDO-O NA ONDA MAGNÉTICA DOS HURRAS
COMUNICATIVOS... (MAGALHÃES, 1942)
Recorreremos a um capítulo do livro “Impressões
da Comissão Rondon” do Coronel Amílcar Armando Botelho de Magalhães, para
apresentar um destes homens de fibra inquebrantável prestando uma justa
homenagem a todos os heróis esquecidos, militares e civis, que tombaram nos “ermos sem fim” dos sertões inóspitos
lançando linhas telegráficas ou demarcando nossas fronteiras. O Tenente Lyra
foi um desses heróis que nos idos de 1914 acompanhou Rondon na sua épica
descida pelo Rio Roosevelt e que morreu afogado, em 1917, no Rio Sepotuba
cumprindo seu dever.
UMA PÁGINA DE
SAUDADE
Primeiro-Tenente
JOÃO SALUSTIANO LYRA
De todos os
vultos que desapareceram no decorrer dos trabalhos da Comissão Rondon, o
primeiro nesta homenagem que lhes vou prestar, com pungente saudade, não só por
justiça, como pelo grau afetivo particular que me ligava a cada um deles, cabe
ao distinto companheiro Primeiro-Tenente João Salustiano Lyra, provecto
engenheiro-militar tão cedo roubado ao nosso convívio. Vissem-no de perto como
eu, robusto e jovial, modesto e sensato; cordial como todo o indivíduo dotado
de espírito superior; enérgico nos momentos precisos, sem quixotadas, mas
firme, resoluto, inabalável, orientado pela bússola invariável da dignidade e
do dever, e certamente lamentariam do fundo da alma que uma juventude tão
esperançosa fosse bruscamente suprimida pelo destino!
Da sua
capacidade, sempre vitoriosa a cada prova a que fora submetida, de seu
brilhante talento, de seu já vasto cabedal científico e prático, de suas
elevadas virtudes, não só o Exército como o Brasil, e quiçá a humanidade,
teriam colhido extraordinárias vantagens se bem longa houvesse sido a sua
trajetória na vida.
Digno êmulo
de Rondon nas grandes explorações do sertão, foi ele o único a quem o notável
Chefe confiou o serviço da vanguarda, que é afinal, propriamente, toda a
exploração, e requer qualidades raras de inteligência, golpe de vista, decisão,
tato especial; bastava isto para o recomendar se ele não trouxesse, desde os
bancos escolares, a tradição de um merecimento que se destaca do comum de uma
geração.
Tomou parte
com o General Rondon em quatro Expedições: as três grandes Expedições de
reconhecimento e exploração de 1907, 1908 e 1909, de Mato Grosso ao Amazonas, e
a Expedição Científica Roosevelt-Rondon em 1913-14. Em todas afrontara perigos
e privações inenarráveis; por muitas vezes sentira a iminência de perder a
vida!
Quis um
destino caprichoso, imprevisto como todos os destinos, que fosse perder a vida
num pequeno Rio (Sepotuba, afluente da margem direita do alto Paraguai) aos
03.04.1917, quando dirigia uma turma independente de serviço geográfico, em
trabalhos de levantamento da carta de Mato Grosso.
Como a sua
vida excepcional, excepcional foi também a sua morte, envolvida no mistério da
ausência de testemunhas. Estas apenas assistiram à primeira fase do desastre
que o vitimou; como desapareceu, e para sempre, o seu corpo na profundeza das
águas, ninguém o sabe...
No cenário
apenas quatro protagonistas, dois que pereceram e dois que se salvaram; uma
corredeira impetuosa onde as águas borbulham e burburinham, espadanando sobre
rochedos; em torno a floresta despovoada, silenciosa e indiferente como toda
massa inerte da natureza... Nesse desvão sem glória, a mão do destino apaga
facilmente uma existência gloriosa e uma juventude viril também preciosa - Lyra
e Botelho.
Tem muita
força a fatalidade: como conceber de outra forma que dois grandes nadadores, de
fortes músculos, acostumados a esforços mais violentos, fossem vencidos nessa
luta?! Ainda mais quando a calma revelada pelos
náufragos levou-os a atirar para terra as cadernetas de levantamento, para que não se perdessem na corrente e com elas
desaparecesse o resultado do trabalho até aí executado; quando
espontaneamente atiram-se na água, na convicção de que tal iniciativa evitaria,
como evitou, a submersão da pequena canoa (montaria) em que navegavam! Esta,
flutuou realmente, depois de colher em seu bojo boa porção de líquido, e,
arrastada pela correnteza só pôde ser atracada à margem 200 metros a jusante,
apesar do esforço neste sentido empregado pelo piloto.
Fora lançado
na água, ao primeiro desequilíbrio da canoa, o proeiro, que nadou para a margem
e nada mais viu, porque tratara apenas de se salvar. O piloto, no último olhar
que lançou para a retaguarda, viu ainda os dois oficiais à tona da água; quando
saltou em terra e correu margem acima ao local do sinistro, nenhum vestígio
mais deles encontrou: haviam desaparecido.
Aos gritos
do piloto, na esperança de que os oficiais, arrastados pela velocidade das
águas, pudessem ter saído mais abaixo, apenas o eco respondeu... Por terra,
trilhando caminhos diferentes, a tropa diariamente vinha à beira do Rio, ao
encontro da turma de levantamento, em pontos previamente determinados pelo
Chefe da Expedição ‒ Tenente Lyra. E era essa justamente a última etapa a
vencer, para amarrar o serviço a Tapirapoan, porto da margem esquerda do
Sepotuba (hoje Rio Tenente Lyra) até onde, desde a foz, a Comissão havia já
executado o levantamento desse curso de água. A última etapa correspondeu assim
o último dia de vida dos dois distintos oficiais.
Os
sobreviventes pediram socorro ao pessoal da tropa e todos reunidos porfiaram em
encontrar os corpos dos malogrados exploradores. Ao terceiro dia de pesquisas
infrutíferas, deram sepultura ao Tenente Eduardo de Abreu Botelho, mas não
foram jamais encontrados os restos mortais do Primeiro-Tenente Lyra.
Estava em
impressão nesse momento o último trabalho realizado pelo Primeiro-Tenente Lyra,
correspondente ao serviço astronômico da Expedição Roosevelt e o Sr. General
Rondon, em homenagem ao mérito e aos serviços desse dedicado ajudante,
determinou a inclusão de seu último retrato nessa publicação (Publicação n° 52
da Comissão Rondon).
Muito teria
eu a dizer se fosse possível estender mais as presentes apreciações sobre a
inconfundível personalidade do Tenente Lyra; mas, seria descabido para o
caráter deste modesto opúsculo, escrito nas horas vagas, durante as viagens de
bonde e de trem, ou enquanto esperava ser despachado nos Ministérios e nas Repartições
Públicas, onde me levavam constantemente as funções do cargo que exerço na
Comissão (Chefe do Escritório Central).
Fonte: MAGALHÃES, Coronel Amílcar Armando Botelho de. Impressões da Comissão Rondon – Rio De
Janeiro – Companhia Editora Nacional, 1942.
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