Hiram Reis e Silva (*),
Porto Alegre, RS, 14 de dezembro de 2014.
03.11.2014
(segunda) – AC11 (KM 477 – Fazenda Buritizal) – AC12 (KM 501 – Sítio do Sr.
Arão)
Depois de
navegarmos, em águas calmas, por uns 06 km surgiram alguns rápidos que foram
transpostos pelo canal da esquerda que se estendia ao longo de duas pequenas
Ilhas (09°13’18,9”S / 60°42’26,3”O), de uns 300m de comprimento cada uma,
conforme nos orientara o amigo Jair. Seis quilômetros adiante, depois de passar
por mais alguns rápidos, avistamos a Foz do Igarapé Panelas (09°11’33,4”S /
60°44’35,4”O) e, 2,5km a jusante, a pequena Comunidade de Panelas onde existe
uma balsa. Parei pouco depois do acesso da balsa, à margem direita, e consultei
dois ribeirinhos a respeito da trilha apontada pelo Jair para desbordar a
Cachoeira Panelas. A precisão das informações do Jair era impressionante,
continuei remando, a cavaleiro da margem direita, contornando uma série de
rochedos até encontrar uma pequena Baía onde avistei o velho barco exatamente
no local e posição que ele descrevera. A proa da embarcação apontava para uma
trilha de uns 300m que dava acesso a um pequeno porto à jusante da Cachoeira
das Panelas. Neste local fotografei a bela borboleta “Urania leilus” que eu encontrara, pela primeira vez, no Rio
Tapajós, depois de realizar minha terceira descida pelos amazônicos caudais
(Amazonas I ‒ Manaus-Santarém).
Conseguimos
fazer a “portagem” em pouco mais de
duas horas e partimos sabendo que logo à frente enfrentaríamos um novo
labirinto formado por diversas Ilhas e inúmeros rochedos e onde a largura do
Rio ultrapassava os 500 metros. A imagem do Google Earth estava encoberta por
nuvens e tive de usar minha experiência e bom senso para escolher os canais
mais adequados para a descida. Estes caminhos mais seguros eram sempre os mais
longos, a cada bifurcação eu analisava a cota dos canais à minha frente e
optava, invariavelmente, pela mais baixa que, logicamente, não tinha ou pelo
menos deveria apresentar menos obstáculos a reter as águas do Rio. Agindo dessa
maneira evitamos maiores sobressaltos e chegamos até um ponto onde estes
diversos canais convergiam para um único com uma largura de aproximadamente 200
metros e onde as águas estavam mais serenas.
Fizemos uma
parada em um pedral à margem esquerda e por volta das 15h00, depois de
percorrer 24km indiquei aos meus amigos uma casa abandonada (AC12 ‒
09°08’04,8”S / 60°41’42,8”O) onde poderíamos pernoitar com certo conforto, o
único inconveniente era a altura do barranco. Fiz contato com o Sr. Arão, um
seringueiro aposentado, que morava numa pequena casa nos fundos da casa grande,
e ele concordou que ali passássemos a noite. Segundo ele, o dono da
propriedade, que a usava quando vinha pescar com os familiares no Rio
Roosevelt, falecera em um desastre aéreo. O Sr. Arão, a pedido do Dr. Marc,
esquentou a água para preparar as rações. O pequeno seringueiro jantou conosco
mas não apreciou o sabor da comida importada.
04.11.2014
(terça) – AC12 (KM 501 – Sítio do Sr. Arão) – AC13 (KM 525 – Sítio abandonado)
Desmontamos o
acampamento e parti antes de meus amigos avisando que esperaria por eles quando
encontrasse algum obstáculo e caso isso não acontecesse eu os aguardaria na
Ilha do Cotovelo (08°59’55,3”S / 60°43’57,9”O) que estava localizada a uns 18
km da residência do Sr. Arão. Remei forte e a uns 3km da referida Ilha contatei
alguns ribeirinhos (09°00’39,7”S / 60°42’55,6”O) solicitando a eles que
informassem aos “camaradas” que os
aguardaria na Ilha do Cotovelo onde cheguei por volta das 10h00. As únicas
formações rochosas desde o AC12 ficavam a pouco mais de um quilometro da Ilha e
não ofereciam qualquer tipo de dificuldade. Ao chegar na Ilha espantei, sem
querer um pequeno jacaré que dormitava tranquilamente nas pedras da Ilha. Aqui
como nas demais Ilhas pedregosas de todo o Rio Roosevelt encontrei diversos
arbustos de Camu-camu.
Camu-camu (Myrciaria dúbia): arbusto
também conhecido como caçari ou araçá encontrado na Amazônia às margens dos
Rios e Lagos. A planta pode permanecer submersa de 4 a 5 meses e frutifica,
nestes locais, no período que vai de novembro a março. Na terra firme, a
floração pode ocorrer durante o ano inteiro. Os frutos são esféricos de 01 a
3,2 cm de diâmetro, de coloração avermelhada ou roxa. Possui 20 vezes mais
vitamina C (ácido ascórbico) do que a acerola. (Hiram Reis)
Até então eu não
sabia que frutas eram essas e se eram ou não comestíveis. Só alguns dias mais
tarde quando elas já começavam a rarear é que fiquei sabendo, pelo Kleber, na
altura da Cachoeira Carapanã, de que eram os tão cobiçados frutos ricos em
vitamina C. Eu arriscara provar apenas um deles tendo em vista que as frutas
maduras não apresentavam bicadas de pássaros e as caídas no chão não tinham
sido comidas por pequenos mamíferos. Dizem os especialistas que 90% do que os
animais comem também pode ser consumido pelos seres humanos. A bela fruta de um
roxo intenso e sabor levemente ácido mas agradável não era “CAL” ‒ Cabeluda, Amarga ou Leitosa. No
Curso de Operações na Selva, do CIGS, haviam-nos ensinado que se uma fruta
apresentasse essas três características não se deveria comê-la embora a
existência de apenas uma ou duas dessas características não a tornasse, necessariamente,
imprópria ao consumo.
Aguardei até o
Dr. Marc aparecer e como as antigas fotos da Ilha eram muito diferentes da
aparência que ela tinha hoje resolvi explorar sua ponta de jusante que a foto
do Google Earth mostrava estar coberta pela mata mas que segundo a
hidrodinâmica encontraríamos um banco de areia onde seria possível aportar e
nos refrescar dentro d’água na sombra das árvores. Assim que iniciamos a
descida surgiram os “camaradas” logo
a montante da Ilha. Aguardamos a dupla na ponta de jusante um bom tempo e como
eles não aparecessem deduzimos que tinham aportado na Ilha. Descemos lentamente
e estacionamos na margem direita do Rio ainda aguardando os “camaradas”. O Dr. Marc, enquanto isso,
aproveitou para contatar o pessoal de terra, através do telefone satelital,
repassando nossa posição atual.
Finalmente
apareceram os “camaradas”, o Jeffrey
tinha aproveitado para realizar algumas filmagens desde a Ilha do Cotovelo e
por isso tinham demorado tanto.
Relata o Cel
Angonese:
Nós
encontramos uma montaria (embarcação a remo construída de um tronco de árvore)
com uma senhora, uma criança de colo mais 4 crianças. Moravam nas imediações da
Ilha do Cotovelo. O chefe da família, Sr. Francisco, era um dos últimos que
continuavam com a antiga profissão de seringueiro. Todo dia partia em sua
trilha percorrendo seu seringal colhendo o látex daquelas árvores que renderam tantas
divisas ao Brasil e que agora tão poucos se dedicam a esse trabalho. A técnica
de preparo foi aperfeiçoada dos antepassados. Antigamente a “pela” era preparada na fumaça de um fogo
lento. Agora o látex é colocado em um recipiente e endurecida com coalho. O
seringueiro do Rio Roosevelt esta vendendo seu produto a R$ 4,50 o kg do látex.
Preparação da
“Pela”
Antigamente
para colher a goma, cingia-se a árvore com um cipó que envolvia o tronco
obliquamente a um metro e setenta do solo até o chão onde era colocado um pote
de argila. Eram, então, feitos diversos cortes na casca acima do cipó que
aparava a seiva e a conduzia até o pote. Este processo de sangria exagerada,
conhecida como “arrocho”, acabava
matando a árvore e foi abandonado há muito tempo. Com o passar dos anos o
método tornou-se mais racional visando preservar a integridade da “árvore da vida”.
O
seringueiro parte, de seu tapiri, a cada dois ou três dias, de madrugada,
carregando todos os seus apetrechos pela “estrada”.
Este intervalo, antigamente desrespeitado, permite à árvore se recuperar da
última sangria. Ele para, em cada uma das seringueiras, e parte para a extração
da seringa que é feita através de pequenas incisões de 25 a 30 centímetros
descendentes e paralelas na casca da planta, que começam a uma altura de
aproximadamente dois metros acima do solo. Une depois, cada uma das
extremidades inferiores dos cortes através de um talho vertical de maneira que
o leite escorra dentro do traço para o fundo da cuia. A cuia é embutida na
casca cortada para este fim e, eventualmente, pode ser usada uma argila para
fixá-la no tronco.
Os cortes
são feitos, normalmente até as onze horas, em todas as árvores da “estrada”, exceto nos meses de agosto e
setembro época da floração. Pelo meio-dia ele começa a recolher as cumbucas
despejando o látex coagulado nas cuias em um balde ou então em um saco “encauchado” (impermeabilizado com látex).
A tarde, por volta das 14h00, volta para o rancho, almoça e inicia a defumação
do material recolhido que leva umas duas horas para ficar pronto. O fogo é
feito debaixo da terra para que a fumaça saia por um furo ao nível do chão.
A melhor
fumaça é a de coco de babaçu, mas, no Rio Purus usava-se para esta operação os
frutos da palmeira urucuri; no Rio Autaz os da palmeira iuauaçu e no Rio Jaú e
onde estas palmeiras são mais raras utilizavam-se madeiras como a carapanaúba e
a paracuúba. A bola de borracha (“pela”)
é rodada em volta de uma vara de aproximadamente um metro e meio de comprimento
chamada “cavador”. Para iniciar a
bola enrola-se na vara um “tarugo” de
goma coagulada no qual o leite gruda facilmente. O seringueiro vai despejando o
leite com uma cuia ou uma grande colher de pau, ao mesmo tempo em que gira o “cavador”, a parte líquida se evapora
imediatamente, e forma-se uma fina camada de goma elástica, e a bola vai
engrossando, cada dia um pouco mais. Uma “pela”
pronta, depois de vários dias, pesa em média de 50 quilos, é, então, exposta ao
sol, quando toma a coloração escura e assim permanece até ser comercializada.
Látex “in
natura”
Os
seringueiros transferem o látex coletado para “bombonas”, que serão enviadas para a fábrica, estes recipientes
contêm hidróxido de amônia, composto altamente tóxico, que preserva o leite, durante
alguns dias. Caso o látex seja conservado “in
natura” por muito tempo depois de extraído o produto coalha tornando-se inaproveitável
tanto para a produção fabril como a artesanal.
Pouco mais de um
quilometro depois da Ilha do Cotovelo o Rio faz uma curva abrupta à direita
permitindo com isso que ali se forme um belo banco de areia onde estavam
pousadas diversas Talha-mares.
Talha-mar: conhecido também como
Corta-água, Talha-mar-preto, Corta-mar, Bico-rasteiro, Gaivota-de-bico-tesoura ou
ainda Paaguaçu. A Talha-mar voa rasante à água e com a parte inferior do bico (bem
maior que a parte superior) mergulhada com o objetivo de capturar pequenos peixes
e crustáceos próximos à superfície. (Hiram Reis)
Estávamos em
pleno Parque Estadual Guariba e daqui em diante o mapa não mostrava nenhuma
casa ou clareira onde pudéssemos acampar sem que fosse necessária uma derrubada
de mata. A última parada possível estava situada logo adiante e que acabamos
verificando se tratar de um Sítio abandonado (AC13 ‒ 08°59’58,1”S /
60°46’01,5”O) no alto de um barranco. O Jeffrey não entendeu porque estávamos
parando tão cedo depois de ter navegado apenas 25 km desde o Sítio do Sr. Arão
e o Dr. Marc encarregou-se de fazer as devidas explicações. À noite o Angonese
pescou um belo espécime de pirarara
e algumas piranhas e o Dr. Marc aproveitou para medir a força da mordida das
temíveis predadoras.
05.11.2014
(quarta-feira) – AC13 (KM 525 – Sítio abandonado) – AC14 (KM 560 – Foz Igarapé
São Liberato)
Parti cedo
informando meus parceiros que tentaria achar um acampamento próximo à Foz do
Igarapé São Liberato, localizado no Estado do Amazonas, à uns 05 km da
Fronteira Estadual entre o MT e o AM. Eles deveriam preparar-se para navegar no
mínimo 35 km compensando o curto percurso do dia anterior.
Eu esperava
encontrar na Foz do Liberato um banco de areia propício à montagem do
acampamento tendo em vista o processo natural de assoreamento provocado por um
afluente na sua Foz.
O vazio
demográfico impressionava, não havia viva alma por aquelas bandas. Os barrancos
e a vegetação densa não mostravam nenhum lugar propício a um acampamento.
Passei pela Foz de um Igarapé onde havia uma mesa na barranca, aproximei-me do
local e avistei as instalações de um acampamento de pescadores dentro do Parque
Estadual Guariba.
A partir das
12h30, antes mesmo de avistar a Foz do Igarapé São Liberato, eu ziguezagueava
de uma margem à outra tentando, infrutiferamente, achar um local adequado para
nosso acampamento. Finalmente aproei, por volta das 13h30, para a almejada Foz
esperando ali encontrar as condições adequadas para nossa estadia. Ao
aproximar-me avistei um banco de areia quase ao nível d’água, arvorei remo, e
ergui os olhos para os céus agradecendo ao Senhor de todos os Exércitos a bela
visão. O idílico momento durou muito pouco pois ao volver novamente os olhos
para a terra dei de cara com a cabeça de um enorme jacaré-açu que pescava
despreocupadamente piraputangas na Boca do belo Igarapé de águas pretas.
A cabeça do
enorme réptil tinha uns 70 cm, e o animal ultrapassava seguramente os 5,5
metros. Com um movimento muito rápido o gigantesco sauro lançou-se às águas do
Rio Roosevelt e desapareceu num piscar de olhos, não sei quem se assustou mais
com a presença do outro se eu ou o colossal jacaré, que o Jeffrey teima em
chamar de aligátor. Foi o único animal deste porte avistado pela equipe em todo
o Roosevelt, os demais eram pequenos e não chegavam aos dois metros de comprimento.
Na minha descida pelo Rio Solimões, ao passar pela RDS Mamirauá observei e
fotografei grande quantidade destes sauros gigantescos e muito gordos que
ultrapassavam os seis metros, felizmente era uma área pródiga em recursos
naturais e eles raramente atacavam os seres humanos. Felizmente nosso amigo não
deu mais as caras e conseguimos montar acampamento e descansar sem grandes
preocupações. Quando a equipe chegou eu já tinha limpado a área, montado a
barraca e preparado o local do fogo. O Cel Angonese havia pescado dois belos
tucunarés mas, infelizmente, descuidou-se por um momento e uma piranha
cortou-lhe o dedo, o Dr. Marc preparou-lhe um curativo bem apertado. Montei a
barraca do amigo com o objetivo de poupar-lhe a mão sequelada e à noite degustamos
os tucunarés assados.
06.11.2014
(quinta-feira) – AC14 (KM 560 – Foz Igarapé São Liberato) – AC15 (KM 602 – Pousada
Rio Roosevelt)
Este dia seria o
mais longo de todos, teríamos de navegar 42 km até a famosa Pousada “Pousada Rio Roosevelt”. Não havia
obstáculos pelo caminho e as águas eram mais rápidas, por isso, adiantei-me
para providenciar apoio para a “portagem”
mecanizada na Cachoeira do Infernão evitando o carregamento exaustivo do
material por uma trilha de mais de um quilometro.
Próximo ao nosso
acampamento, à margem esquerda, passei por um confortável acampamento de apoio
da Pousada Rio Roosevelt infestado por macacos que empoleirados numa enorme
mangueira devoravam as frutas freneticamente.
Chegando no
Infernão, aportei numa balsa próxima ao campo de pouso da pousada, e segui por
uma bela trilha até chegar à Pousada Rio Roosevelt. Contatei os funcionários
com o intuito de conseguir, além da “portagem”,
o pernoite e um jantar. Rapidamente resolvemos o assunto que era mais premente
que era o da transposição – um trator tracionando um reboque foi deslocado para
montante da Cachoeira onde ficamos aguardando os parceiros chegarem.
Depois de duas
horas de espera nossos amigos foram com uma voadeira ver onde eles se
encontravam e os encontraram ainda à montante do Rio Madeirinha. Foi uma espera
de mais de três horas e meia. Quando chegaram, embarcamos o material e enquanto
o trator se deslocava pela trilha externa fomos pela interna destinada aos
pedestres.
Os companheiros
ficaram radiantes ao avistarem as luxuosas instalações, infelizmente o gerente
queria cobrar R$ 400,00 de cada um por apenas um pernoite e decidimos montar as
barracas na praia. Depois de um banho reconfortante fomos convidados cortesmente
para jantar. O Angonese não se conteve e mesmo com o dedo enfaixado pescou uma
enorme bicuda (Boulengerella maculata).
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