Cada torrão desta terra é sagrado para meu
povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina
na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições
e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo
as recordações do homem vermelho. O homem branco esquece a sua terra natal,
quando – depois de morto – vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos
nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos
parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o
cervo, o cavalo, a grande águia – são nossos irmãos. (Cacique Seattle)
27.10.2014 (segunda-feira)
– Vilhena, Ro – AC05 (KM 126 ‒ Estrada Maraquitã)
Em Vilhena,
ficamos hospedados, sábado e domingo, no Hotel Colorado, e depois de nos
reorganizarmos e identificarmos o ponto mais favorável para dar continuidade à
nossa Expedição partimos, na segunda-feira, de Vilhena com destino à Balsa do “Condomínio Aprovale” (KM 268 desde a
nascente do Roosevelt ‒ 10°40’16,3” S / 60°30’58,9”O). A viagem transcorreu sem
grandes novidades até alcançarmos a TI dos Zoró, onde era intenso o movimento
de caminhões carregados com toras de madeira. Observamos algumas destas toras
sem a devida identificação e outras cortadas dentro da TI aguardando transporte
‒ sinais claros de exploração madeireira irregular dentro da Área Indígena.
Assim como os Cinta-Larga, os Zoró barganham, sem qualquer controle suas
riquezas naturais mostrando total despreocupação com o legado de seus
antepassados. Certamente eles não partilham da mesma filosofia do Cacique
Seattle cujas palavras encabeçam este capítulo. Felizmente ninguém nos cobrou
pedágio na passagem da cancela por uma de suas Aldeias. Às margens do Roosevelt,
constatamos sua pujança depois de receber seu mais poderoso afluente – o Rio
Cardoso. Embora a balsa seja uma propriedade particular, bancada pelo “Condomínio Aprovale” (Associação dos
Produtores Rurais do Rio Roosevelt), fomos levados cortesmente até a margem
direita sem qualquer empecilho. Precisávamos de um lugar para acantonar e o
balseiro nos informou que encontraríamos guarida na Serraria Madeireira Ita da
Fazenda Fonte Viva que ficava a apenas 05km adiante. A Fazenda Fonte Viva faz
parte de um belo projeto de desenvolvimento sustentável que explorava os
recursos naturais através do manejo
sustentável.
Manejo sustentável: administração da
vegetação natural para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e
ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto
do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de
múltiplas espécies madeireiras ou não, de múltiplos produtos e subprodutos da
flora, bem como a utilização de outros bens e serviços. (Lei Federal N° 12.651,
de 25.05.2012)
Para a execução do manejo florestal é necessária a
elaboração de Plano Operacional Anual (POA) definindo o cronograma de
atividades, os métodos de operação e manejo florestal a serem aplicados na
colheita.
1ª Fase: realiza-se o inventário florestal levantando
todas as árvores de valor comercial existentes numa área de exploração anual, o
traçado e dimensões das estradas e pátios de estocagem, corte das árvores e
arraste de toras.
2ª Fase: visa a identificação da área do projeto, dos
talhões, marcação das áreas permanentes, demarcações de faixas e picadas nos
talhões, árvores porta sementes, árvores de corte e árvores proibidas de corte.
3ª Fase: faz-se o cálculo do inventário florestal e o
cálculo do volume comercial.
4ª Fase: compreende a segurança no trabalho e
infra-estrutura do acampamento.
5ª Fase: corresponde ao abate de árvores propriamente dito que envolve as
técnicas a serem empregadas no corte, segurança dos operadores, definição das
estradas e trilhas de arraste, pátios de estocagem, carregamento das toras e
monitoramento da exploração florestal.
O manejo visa, então, uma exploração racional da
floresta respeitando sua dinâmica natural. Ao longo do Rio Roosevelt observamos
várias áreas semelhantes onde o respeito a essas técnicas vem permitindo que
além da flora a fauna se reproduza abundantemente. Na serraria fomos muito bem
recebidos e conseguimos um lauto jantar e um local para dormir. Conhecemos o
simpático Sr. Zé Patroleiro, um paranaense cujo pai veio, como tantos, para a
região depois de vender suas terras no Sul com o sonho de comprar uma gleba
suficiente para ser dividida pelos futuros herdeiros. Infelizmente o sonho
transformou-se em pesadelo ao ser enganado por um corretor inescrupuloso e
verificar que a área da terra comprada era muito menor do que lhe anunciara o
malfadado vendedor. O pai sempre se culpou pela desdita a que condenara toda a
família e o desgosto foi-lhe aos poucos minando as forças e a saúde. Os filhos
tiveram de procurar emprego e foi assim que o Zé transformou-se de agricultor
em operador de máquinas. Mas como reza a peça de teatro de Shakespeare “All's Well That Ends Well” (Tudo está
bem quando termina bem), o Zé é hoje o orgulhoso pai de uma estudante de
medicina e os filhos que não quiseram continuar os estudos são como o pai
operadores de máquinas. O Coronel Angonese, cuja filha Rafaela também é uma
discípula de Hipócrates (o pai da medicina), sabe muito bem o custo que isso
representa para um assalariado.
28.10.2014
(terça-feira) – Rio Roosevelt (KM 284) – AC06 (KM 314 – Ponte da Aprovale)
Tivemos muita
dificuldade na hora de partir, a bateria do carro dos bombeiros, que estava com
todo o nosso material, estava totalmente descarregada e, embora o Zé Patroleiro
insistisse em que se trocassem as baterias do carro com as de sua máquina, o
pessoal ficou insistindo durante muito tempo usando os cabos para dar a famosa
“chupeta”. O motor só deu partida
depois da troca recomendada pelo Zé, o passo seguinte foi a recolocar,
novamente a bateria velha e tomar cuidado para não desligar o motor.
Percorremos uma
das trilhas usada pelos pescadores para chegar até a margem direita do Rio, descarregamos
as embarcações e a carga e reiniciamos nossa jornada. O Rio Roosevelt tinha
agora outras características, a correnteza, a largura eram maiores, a fauna
mais diversificada com a presença das belas e solitárias garças mouras (Ardea
cocoi) que agora davam seu ar de graça.
As aves mais
comuns em toda extensão continuavam sendo as andorinhas-de-peito-branco
(Atticora tibialis), os martins-pescadores-pequenos (Chloroceryle americana) e martins-pescadores-grandes
(Megaceryle torquata), os biguás (Phalacrocorax brasilianus) e os socós-boi
(Tigrisoma lineatum). As araras Canindé (Ara ararauna) de vistosa coloração
azul ultramarino no dorso e amarelo-dourado na parte inferior que avistamos na
1ª Fase de nossa descida (Rondônia) foram, progressivamente, substituídas aqui
pelas belas Araracanga (Ara macao) de intensa coloração vermelha escarlate;
asas tricolores (vermelho, amarelo na parte média e azul intenso nos extremos),
rabadilha e base do rabo azul.
Aportamos, por
volta das 14h00, na margem esquerda, em um aprazível lugar à montante da Ponte
da Aprovale (KM 314 – 10°21’55,7”S / 60°36’14,9”O), depois de percorrer 30Km. O
local era usado sistematicamente por pescadores e as áreas de acampamento e
fogo já estavam praticamente prontas, bastava, apenas, uma pequena limpeza.
Avistei uma família de capivaras na cabeceira da ponte, e à noite fomos
visitados por um tatu. O Jeffrey como de costume, apesar de ter sido advertido,
por diversas vezes, por mim e pelo Angonese para que não o fizesse, à noite, se
refrescava, no Rio, ficando apenas com a cabeça de fora e desta feita afirma
ter levado choque de um poraquê.
Relata o Coronel
Angonese:
Na ponte, o
Jeffrey foi tomar banho no Rio devido ao calor. Ficou alguns minutos n’água,
quando deu um baita berro. Eu que estava arrumando meu material fui correndo
até a margem para acudi-lo. Na saída ele deu outro grunhido, relatando, logo em
seguida, que tinha recebido duas descargas elétricas de Poraquê. Disse que
estava muito dolorido mas logo se recuperou do susto e foi deitar-se. De
madrugada Jeffrey acordou com barulho perto da barraca, com a lanterna avistou
um tatu passeando pelo acampamento.
29.10.2014
(quarta-feira) – AC06 (KM 314 – Ponte da Aprovale) – AC07 (KM 345 – Fazenda Bom
Jardim)
Definimos como
objetivo para este dia como local de acampamento a Fazenda Bom Jardim, a 31km de
distância do acampamento atual. A progressão foi igualmente tranquila e só
precisei reconhecer a passagem por uma Ilha (Mapa 69 – 10°28’21”S /
60°31’30”O). Ao aportar assustei um cardume de piraputangas (Brycon hilarii) e
depois de realizado o reconhecimento partimos pelo braço esquerdo sem qualquer
percalço.
Chegamos no
nosso destino (KM 345 – 10°08’27,4”S / 60°38’55,7”O) que eu marcara no mapa
como “Porto” e realmente nele estava
ancorado um barco de alumínio. O aprazível recanto tinha, à sua frente, uma
pequena e bela Ilha pedregosa e era, também, um local usado por pescadores,
tinha mesa, bancos e grelha à nossa disposição. Como o mapa mostrava a sede de
uma fazenda a apenas 1.500m de onde estávamos resolvi, depois de montar a
barraca, pedir autorização ao encarregado. Na sede, encontrei o gerente,
chamado Lourival, um mineiro de boa cepa, muito prestativo e falante que me
levou na sua camionete de volta até o acampamento, foi uma carona muito bem
vinda, já que eu estava de pés descalços.
Ele se
apresentou ao pessoal, deu-nos algumas dicas do que iríamos encontrar pela
frente e recomendou-nos procurar o Jair quando chegássemos à Cachoeira do
Chuvisco, depois disso voltou aos seus afazeres ficando de retornar mais tarde.
O Angonese achou uma tapera e um antigo pomar onde conseguimos colher algumas
mangas verdes já que as maduras, ou de vez, os animais selvagens já as tinham
consumido. À noite o Lourival e a esposa vieram nos convidar para ir até sua
casa e, como estávamos muito cansados, somente o Jeffrey aceitou o convite
visando carregar as baterias de seus equipamentos eletrônicos. Em sua casa, o
Lourival, como bom mineiro, convidou o Jeffrey para degustar uma cachacinha e
os dois voltaram bem mais tarde muito eufóricos e trouxeram de brinde uma
garrafa d’água bem gelada que foi muito apreciada.
30.10.2014
(quinta-feira) – AC07 (KM 345 – Fazenda Bom Jardim – AC08 (KM 375 – Ilha)
Partimos por
volta das 08h00. O Lourival tinha prometido vir se despedir, antes da partida,
mas acho que a cachacinha noturna tinha vergado a determinação de nosso amável
anfitrião. Encontramos alguns rápidos e pequenas cachoeiras pelo caminho que
não obstaculizaram nossa progressão. Eu vinha acompanhando a progressão de meus
companheiros até que, depois de navegarmos quase 20km, decidi ir à frente e
esperá-los em um lugar mais aprazível. Aportei em uma bela Ilha (09°58’39,3”S /
60°38’11,9”O) aproveitando para esticar as pernas, hidratar-me e refrescar-me
mergulhando nas límpidas águas do arenoso leito do Rio Roosevelt. Aguardei
durante uma hora e como meus camaradas não aparecessem resolvi verificar se
tinha acontecido algum imprevisto. Depois de remar mais de 02km Rio acima,
enxerguei o trio descendo calmamente. Eu ainda não tinha assimilado que as
longas paradas faziam parte da “americana”
rotina da equipe. Aguardei-os e prosseguimos juntos passando pela aprazível
Ilha em que eu tinha feito meu alto-horário, pela Foz do pequeno Igarapé Santa
Maria (09°58’05,73”S / 60°37’51,4”O), situada à margem direita, e aportamos na
praia de uma Ilha (09°57’34,0”S / 60°39’18,8”O) a exatos 30km do acampamento anterior. O local
apresentava vestígios de estar sendo usado sistematicamente por pescadores que
ali estacionavam e estavam massacrando em lenta agonia a mais bela e frondosa
árvore da Ilha fazendo fogo junto às suas raízes. O Angonese, como de costume,
foi tentar a sorte na pescaria enquanto aprontávamos o acampamento.
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