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quarta-feira, 20 de junho de 2012

Lendas de São Gabriel

“É na tradição, nas antigas narrativas, nesses arquivos universais chamados erroneamente de lendas, é nos velhos contos que o homem poderá encontrar a sua verdadeira identidade mágica”. (Mario Mercier)
São inúmeros relatos de avistamentos de OVNIS (Objetos Voadores Não Identificados) na região de São Gabriel da Cachoeira e do Alto Rio Negro em geral. A memória ancestral indígena aliada à ignorância e à ingestão de narcóticos como o Ipadu por parte dos nativos fazem com que alguns fenômenos naturais sejam transformados em supostos avistamentos de extra-terrestres.
-  OVNIs
Nos Caminhos da Coca
Pedro Tucano contou-me que, certa época, quando ainda jovem, esteve visitando a Missão de Maturacá, em companhia de dois amigos. (...)
Certa noite, estava semiadormecido quando notou uma claridade fora do normal e ouviu um barulho semelhante a uma rajada de vento. Abriu bem os olhos e assistiu, então, a um espetáculo jamais imaginado: ao sul do Pico Guimarães Rosa, na serra do Imeri, o terreno abriu-se em uma fenda de tamanho descomunal. Parecia uma casamata encravada na encosta da montanha, da qual partia uma intensa claridade azulada. Pela porta gigantesca, de repente, começaram a sair esquadrilhas de discos voadores, que desapareciam na escuridão da noite. Quando já haviam saído centenas desses objetos, inexplicavelmente a porta se fechou, voltou a escuridão da noite e tudo retornou ao normal. (...) Contou tudo aos Padres que não lhe deram importância. (...) Pedro Tucano confessou que chegou a um ponto que já andava desconfiado de sua sanidade mental. Seis meses depois, resolveu pôr a prova aquela incômoda situação de loucura. (...) Não mais resistiu e, sem dizer nada a ninguém, retomou o caminho de Maturacá. Na Missão conseguiu um casco velho de jatobá e remou novamente Rio Caubari acima. (...) Uma noite, outra depois, e, afinal, nada apareceu. (...) Felizmente, como tivesse consigo boa reserva de pelotas de Ipadu, pôde aguentar mais alguns dias sem comer. Mas a viagem de volta foi trágica. Picado por morcegos hematófagos, o seu corpo cobriu-se de chagas. Os voadores acabaram por constatar a sua debilidade e passaram a atacá-lo vorazmente, até que Pedro caiu desmaiado, entregando-se à fúria invencível dos vampiros. Pedro Tucano disse então que, nessa oportunidade, teve um sonho que me foi descrito detalhadamente:
Apareceu-lhe um ser esquisito, com forma de gente, mas com cabeça de lagarto, de olhos vivos e radiantes. Em vez de cabelo, ele era dotado de antenas, e a sua boca era luminosa. Expressando-se fluentemente no idioma tucano, o mostrengo deu uma série de explicações e recomendações. Confirmou ter ele - Pedro, realmente, descoberto a boca da caverna mais secreta do planeta Terra: a porta de entrada de uma Cidade subterrânea, cujos habitantes eram física, intelectual e espiritualmente mais evoluídos que os terrenos. O bicho afirmou que aqueles viventes dominavam a energia cósmica, a comunicação telepática e eram donos do espaço sideral, onde viviam e pregavam o amor.
Interessante era o fato de Pedro utilizar um vocabulário erudito, inconcebível para um índio. Assim prosseguiu ele:
O vulto assegurou que os habitantes da Terra estão longe de compreender aquele mundo evoluído; que devem sofrer muito ainda, antes de desvendar os segredos da natureza, e aceitar as maravilhas da vida espiritual.
Antes de desaparecer, o extra-terreno ainda insistiu em tom professoral:
Vocês não estão aptos a compreender os segredos das galáxias! Pedro, volte para o seu Lugar. Nunca mais se refira a este episódio. Desminta tudo. Se insistir nesse assunto, morrerá! (BRASIL - 1989)
Mistérios do Brasil
Se transplantarmos essas teorias à região de São Gabriel da Cachoeira, chegamos à conclusão de que ela foi e está sendo visitada por muitos OVNIs e extraterrestres (...)
- Nestes últimos dias, apareceu um deles no quintal da casa do vizinho. Eles pensaram que era alguém com uma lanterna, mas notaram que a luz era muito mais forte e de cor vermelha, ficando parada no ar por muito tempo (...)
- Sim, já vi. Ele é, como disse antes, do tamanho de uma lamparina e parece com uma lanterna que foca para baixo, de cor vermelha como o fogo. (...)
Instantaneamente tive um “insight”, uma espécie de eureca. Tinha diante de mim uma prova irrefutável de como os conteúdos culturais podem dar roupagem particular ao fenômeno OVNI, como alguns psicólogos, ufólogos e ociólogos haviam especulado. (MAUSO)
Relâmpagos Globulares 

As explicações científicas, para a maioria dos casos, entretanto, não são do conhecimento dos nativos. Dentre elas mencionaremos apenas a que, certamente, é a que mais comumente ocorre na região do Alto Rio Negro.
São os relâmpagos de bola, também conhecidos como relâmpagos globulares, bolas de fogo ou relâmpagos raros. No interior do Brasil, eles são chamados de mãe do ouro e, segundo a lenda, seu aparecimento indicaria a existência desse metal no subsolo daquela região. Ainda se sabe muito pouco a respeito dos relâmpagos de bola. Eles têm tempo de duração de aproximadamente quatro segundos (em média), forma quase sempre esférica (diâmetros entre 10 e 40 cm) e cores que variam entre branco, amarelo e azul. Têm brilho semelhante ao de uma lâmpada fluorescente, emitem um som sibilante (som muito agudo, como um forte assobio) e desprendem um odor forte (geralmente de enxofre), terminando numa explosão ou desaparecendo repentinamente. Dizem que ele é capaz de atravessar as paredes e janelas das casas e a fuselagem dos aviões. Esses relâmpagos muitas vezes são confundidos com OVNIs ou fantasmas e, até meados do século passado, eram considerados ilusão de óptica ou uma interpretação errada de outros fenômenos naturais. (Universidade Federal do Pará - UFPA)
Vamos citar apenas duas das diversas formas mais conhecidas para a geração de relâmpagos-bola que, pelas características geológicas locais, têm maior possibilidade de ocorrer na região de São Gabriel da Cachoeira:
1) A movimentação das placas tectônicas gera uma enorme pressão provocando, no subsolo, a ionização de gases, que podem chegar à superfície através das falhas geológicas. Os relâmpagos realizam movimentos aleatórios e, rapidamente, se desfazem;
2) O atrito dos ventos nos picos das montanhas carregam eletricamente todo o maciço. O efeito elétrico do poder das pontas, no pico, gera uma bola ionizada que pula até o outro morro, em um movimento em forma de um arco, neutralizando-se.
Relatos antigos de Lobo d’Almada e do Dr. Antônio Escallón mencionam um terremoto que foi sentido na região do Rio Uaupés e Santa Fé de Bogotá, atual Bogotá - Colômbia, na manhã de 12 de julho de 1785, reforçam a teoria da formação de relâmpagos globulares em virtude da movimentação das placas tectônicas.
Tremores de Terra (SGC) - 1785
A parte ocidental da fronteira do Rio Negro e a setentrional da fronteira do Solimões, em diversos tempos, têm sido combatidas por tremores de terra. Não se sabe o tempo em que eles acontecem, nem se eles têm Lugar depois de grandes calmas, ou logo depois da quadra das chuvas. O que no ano de 1785 sentiu o Coronel Manoel da Gama Lobo d’Almada andando no reconhecimento da comunicação mais alta do Rio Uaupés, o Japurá, foi na manhã de 12 de julho pelas 08h10min; teve três minutos de duração, e foi muito forte ao princípio; referiu às dez horas e com menos força. Em dezembro de 1827, houve outro em toda a fronteira do Solimões que durou cinco minutos com grande impulso. (BAENA)
Señor mío: Habiendo-se experimentado en esta capital el día 12 del qué sigue, como a las siete y tres cuartos de la mañana un terrible Terremoto cuya duración sería de tres a cuatro minutos, ha ocasionado daños considerables en casi todos los Edificios de esta Ciudad, (…) (Dr. Antônio Escallón)
-  Círculos Entalhados na Rocha
Um pouco mais abaixo, na margem do Rio, chamou-me a atenção um grupo de rochas lisas sobre as quais pescavam algumas pessoas. Aproximamo-nos e vi sobre elas vários círculos perfeitamente talhados, cujo diâmetro variava entre dez e no máximo trinta centímetros, com uma profundidade não maior que três centímetros. Vários deles apresentavam protuberâncias centrais. Obra da natureza? Não, junto a eles apareciam sulcos profundos, perfeitamente talhados e polidos, dispostos em feixes em forma de leque, geralmente em grupos de três ou quatro e de comprimento variável.
- Ah! Isso aí é coisa da época em que a pedra era mole seu moço ... (MAUSO)
Se o escritor Pablo Villarrubia Mauso tivesse lido as “Notas de um botânico na Amazônia” de Richard Spruce, não se entregaria a divagações surrealistas a respeito da autoria das tais panelas, vejamos o que disse Spruce:
(...) diferente do que ocorre com as panelas, que são orifícios cilíndricos frequentemente encontrados nas rochas das cachoeiras dos Rios Negro e Uaupés, os quais resultam obviamente da ampliação de buraquinhos produzidos acidentalmente por seixos, em decorrência dos grãos de areia que neles se entranham e ali dentro passam a girar, impelidos, pelo vaivém das ondas que se formam nos trechos encachoeirados durante as cheias. (SPRUCE)
-  São Tomé ou Sumé
Pegada de Sumé no Morro da Fortaleza
- No alto dessa colina, o chão é de pura pedra. Ali estão gravadas umas figuras que o povo diz serem as partes do boi (ou anta). Também tem a marca de uma pegada na pedra, onde as pessoas deixam flores, velas e fazem preces. O povo diz que é a pegada de um anjo.
- Ora, acho que isso deve ser algo relacionado com as famosas pegadas de Sumé ou Pai Tomé! Exclamei admirado. (MAUSO)
 

O Profeta Andarilho
“Vi com meus próprios olhos, quatro pisadas muito significativas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o Rio quando enche”. (Manuel da Nóbrega)
Sumé, por sua vez, aparece citado pelo Padre Manuel da Nóbrega em suas Cartas do Brasil (1549). É uma figura misteriosa, que surgiu “antes do Descobrimento - informa o mestre Câmara Cascudo - e ensinou aos índios o cultivo da terra e as regras morais”. Uma curiosidade especifica de Sumé é ele ser um branco e ter desaparecido “caminhando sobre as águas do mar”, em direção à Índia. As características apontam para um pajé de raça branca. A tradição tupi-guarani fala de um homem sábio e milagreiro que veio até eles há muito tempo: um provável precursor dos missionários, a quem chamou Sumé (tupi) ou Pay Zumé (guarani). É possível que seja uma corruptela de Tomé, o apóstolo incrédulo. Tomé foi designado para levar o Evangelho de Cristo aos gentios, aos selvagens. (PEREIRA)
O mito Sumé é um enigma que abrange todo o Continente Americano. Possui muitos nomes: Sumé, Xumé, Pai Abara entre nossos índios, Quetzalcoatl na América do Norte, Sommay entre os Caribas; no Haiti era Zemi, na América Central era Zamima, e muitos outros, mas a figura é sempre a mesma, homem branco, longa barba, portando uma “borduna trovejante”, saía das águas para mostrar aos nativos como construir casas, a se organizar, a cultivar frutas, verduras e legumes e outras técnicas.
Eles têm lembrança de São Tomé (...) Queriam mostrar aos portugueses pegadas de São Tomé no interior do país. Quando falam de São Tomé, chamam-no de pequeno deus, mas dizem que havia outro deus maior (...). (anônimo europeu - 1514)
O Pastor calvinista Jean de Léry pregou para os Tupinambás nas cercanias do Rio de janeiro na década de 1550. Um velho agradeceu a Léry as explicações que ele dera sobre as maravilhas do cristianismo, mas disse:
Seu sermão me fez recordar aquilo que ouvimos tantas vezes nossos avós relatar, isto é, há muito tempo - há tantas luas que já não conseguimos mais contá-las - um mair (que significa forasteiro) vestido e barbudo como alguns de sua gente veio a esta terra. Ele esperava conduzir nossos ancestrais à obediência de seu Deus e dirigiu-se a eles na mesma língua que vocês empregam conosco hoje. No entanto, conforme ouvimos dizer de pai para filho, eles se recusaram a acreditar. Chegou, então, outro homem que, como sinal de maldição, deu-lhes de presente uma espada. Como resultado, desde aquela época sempre nos matamos uns aos outros (...) a tal ponto que (...) se agora abandonássemos esse costume e desistíssemos, todas as tribos vizinhas zombariam de nós. (HEMMING)
Também da vinda do Apóstolo São Tomé à América e que os ensinara o modo de cultivar as suas sementeiras, que todas se cifram na mandioca e farinha-de-pau, e poucas outras. (DANIEL)
(...) “o antigo”, cabeleira ruiva e estatura maior que a dos outros homens, anda à tona nas águas ou sobre as nuvens. Essa criatura portentosa ensinou os homens a servirem-se da natureza, “inventou” o bodoque e as danças e fere com flecha invisível, o coração dos inimigos. (Arthur Ramos - Introdução à Antropologia Brasileira)
(...) disseram que, de acordo com a informação que possuíam, era um homem alto com roupa branca que chegava até seus pés, e que sua veste tinha um cinturão, e trazia o cabelo curto com uma tonsura na cabeça, à maneira de um Padre, e que carregava na mão uma certa coisa que parecia lembrar o breviário que os Padres trazem nas mãos. (Juan de Betanzoz - Noticia de Suma y narracción de los incas)
O profeta andarilho era estimado por todos, até que resolveu estabelecer normas moralizadoras; condenando a antropofagia e a poligamia, provocou a ira dos indígenas. Tentaram matá-lo por diversas vezes, mas Sumé sempre conseguia escapar ileso. Por fim cansado das atitudes traiçoeiras dos seus favorecidos, retirou-se, andando sobre as águas de onde havia surgido. Prometeu que voltaria para cumprir a missão que recebera.
Misterioso personagem que veio do mar (...) e nessa direção desapareceu depois que, molestado por alguns, se desgostou e deu por terminada a sua missão de legislador e mestre de todos eles. (STADEM)
(...) pregou-lhe a palavra do bem e censurou sua imoralidade. Furiosos por verem seus excessos censurados, os camponeses se apoderaram de Tonapa, flagelaram-no e amarraram-no a três pesadas pedras. Subitamente, três magníficas águias desceram dos céus; com o bico serrado, cortaram as amarras e libertaram o prisioneiro. Tornou à praia, estendeu seu manto sobre as ondas e, vagando nele, como num barco, rumou para a praia... (Siggfried Huber - O Segredo dos Incas)
Foram vistas por Nóbrega, Montoya e muitos outros, pegadas em rochas, que dariam o testemunho da passagem e das viagens do apóstolo São Tomé pelas Américas. Estas pedras, gravadas em baixo relevo e sobrepintadas, identificam pontos importantes do caminho pré-histórico. Inscrições no mesmo estilo são encontradas na Bolívia e Peru, atestando a presença do herói mítico, que teria partido do Brasil em direção aos Andes.
A lenda caía como uma luva para os missionários religiosos. Ao mesmo tempo que os levava a considerar que estavam dando prosseguimento à obra do apóstolo, facilitava também sua relação com os indígenas que associariam a eles a imagem de São Tumé.
Relato Pretérito - Sumé
O haver tradição de ter evangelizado a Fé na América, o Apóstolo São Tomé é já hoje, sem controvérsia de dúvida porque, além de outros muitos fundamentos, de que cremos vendo pelo discurso desta obra alguns, há e se conserva em alguns tapuias esta tradição; pois perguntados por alguns outros fundamentos quem lhos ensinou, respondem que um homem chamado Sumé, cuja resposta com os mais fundamentos claramente convence desta verdade. Chamaram-lhe Sumé, e não Tomé, é pequena corrupção do vocábulo, que nos índios é muito desculpável pela falta de livros e memórias que não têm, porque criados à lei da natureza, sem aprenderem a ler e escrever; e também os desculpa o longo tempo de tantos séculos. Por isso, se não deve estranhar em gente tão rude a pequena mudança do “T” para o “S”, especialmente ficando tão semelhante o som das duas palavras “Tomé” e “Sumé”; quando nos mesmos europeus, e nos mais literatos homens se estão achando a cada passo estas corrupções de vocábulos, como se vê na palavra “Portugal”, que antes era “Portus Calis”, Setuval - “Coetus Tubalis”, Santarém - “Santa Iria”, e em milhares de outras palavras. Acresce mais para confirmação de que os índios na palavra “Sumé” querem dizer “Tomé”, a pronúncia do “T” ou “Taf” dos hebreus, a que estes lhe dão o distinto som de “T”, como nós os portugueses, mas uma pronúncia muito semelhante a “S”, ou mais propriamente entre “T” e “S”. De sorte que, com serem os caracteres os mesmos em todas as nações, nem em todas as línguas têm o mesmo som; seja prova, além de outras, a pronúncia do mesmo “T” na linguagem inglesa, porque não o proferem os seus naturais com o som de “T”, mas de “D”; ou um meio entre “T” e “D”, mais parecido a D; e o mesmo sucede a outros caracteres. Da mesma sorte na língua hebraica tem o “Taf”, uma pronúncia, como média entre “T” e “S”, antes mais semelhante e parecida a “S”; e como São Tomé, de quem o ouviram era hebreu, lhe daria a sua própria pronúncia muito semelhante a “S”; e por isso na tradição dos índios ficou perpetuada como Sumé.
É certo que há ainda outros muitos fundamentos desta verdade, e não é pequeno a imagem da Virgem Senhora Nossa com o Santo Menino Jesus nos braços, que se achou no império do México, por certo que naquele império não consta que entrasse alguém, como em toda a mais América primeiro que os castelhanos e portugueses; logo não há fundamento para atribuir a outrem o levar àquela tão distante região a notícia e conhecimento da Senhora senão a algum Santo Apóstolo, porque - In omnem terram exivit sonus eorum, et in fines orbis terrae verba eorum (Por toda a Terra espalhou-se o som de sua voz, e sua palavra pelos confins do Orbe). Que os espanhóis fossem os primeiros intrusos na América também parece ser evidente, porquanto nas histórias não se acha notícia alguma de todo aquele Novo Mundo, antes deles; razão por que alguns cuidaram ser ele a Ilha Atlântica, de que falam as histórias. E se alguém repara o como podia São Tomé correr tanto mundo em tão distantes regiões, como são Partos, Medos, Persas, Hircanos, Índios e Chinas, e depois vir a evangelizar outro Novo Mundo na América, quando só para o correr apenas chega a vida do homem, segundo a grande distância que vai do México ao Brasil. Respondo que assim é naturalmente; mas por virtude divina, não só podia correr todas as sobreditas províncias, mas todo o mundo uma, e muitas vezes. Que isto não só era factível virtute ex alto (por virtude do alto), mas que, na verdade assim sucedeu aos Santos Apóstolos, consta das histórias eclesiásticas e ainda das Divinas Escrituras; e do mesmo glorioso São Tomé o contam os índios na sua tradição, dizendo que lhes apareceu aquele varão santo; e pregou, mas vendo que eles o não queriam acreditar, nem ouvir, se apartou deles caminhando a pé enxuto pelo mar, como, além de outros, refere o grande Padre Vieira, escrevendo esta tradição dos índios do Brasil. Mas para que se veja quão grandes, e muitos são os fundamentos que solidam (confirmam) esta verdade, continuarei em apontar outros, que ainda existem, talvez para memória dos vindouros, e para abono dos índios.
Seja o primeiro a Capela do Bom Jesus no Rio São Francisco. Entre as cousas mais notáveis que acharam os portugueses naquele Rio, foi uma Capela cavada, e lavrada em um rochedo nas margens do Rio; descobriu-se por ocasião de um ermitão, que saindo do povoado para buscar algum deserto, onde fazendo rigorosa penitência de seus pecados, cuidasse só na sua salvação eterna, deu com uma paragem, que lhe pareceu bem acomodada ao seu intento, e chegando a ela, viu um côncavo por modo de Capela, ou Templo, entrou dentro, e indo a pôr uma imagem do crucifixo no altar, achou feito nele um buraco, como se tivera sido aberto de propósito para o intento. Divulgou-se o caso, e principiando a concorrer já romeiros, e já moradores, se começou a povoar, e desde então está servindo de Igreja, e cuido que também de freguesia, porém ainda no distrito do mesmo Amazonas temos mais templos.
Deságua no mesmo Rio Xingu o Rio Jaracu da banda de Oeste, e por ele dentro cousa de 15 dias de viagem, já pelo Rio, e já por terra nas terras, e sítios dos índios averãs, se admira outro templo, que segundo algumas circunstâncias, não é obra da natureza, mas artifício, ou natural, ou sobrenatural, porque afirmam aqueles índios que tem valvas de pedra com suas dobradiças, como os nossos portais, e que sempre estão fechadas. Perguntados pelo que tem dentro, respondem que nem sabem, nem podem saber; porque assim que alguém intenta abrir aquelas portas, sai ou vem de dentro um grande resplandor (resplendor - claridade intensa) tão respeitoso, que obriga a fechar não só os olhos, mas também as portas; por esta razão carecemos de saber as suas miudezas, e que respeitoso resplendor seja aquele, donde sai, ou de que se origina. Nem posso deixar de estranhar aos missionários daquele Rio o descuido de não procurarem averiguar pessoalmente as circunstâncias e miudezas daquele templo; e talvez que aquele resplandor seja misterioso, e para se manifestar, só espere algum ministro evangélico, que com a sua pregação faça idôneos, e capazes aqueles miseráveis selvagens de que Deus lhes manifeste os seus mistérios, e o misterioso daquele resplandor.
No Rio Coroa está uma grande concavidade por modo de templo, e igreja; tem um grande portal bizarreado com seus frisos, e por cima arquitetado com seus arquitraves (parte da trave que repousa sobre os capitéis), que representam um frontispício (face principal). Fora da porta de um, e outro lado tem uma grande pedra, e ambas rematam com uma cabeça alguma cousa, toscas de modo, e feitio de cabeças de pretos, e representam duas estátuas das quais só permanece uma, porque uns índios mansos, que costumavam ir àquele Rio ao provimento do cravo, degolaram a outra; mas nem eles, nem os brancos que iam por cabos tiveram a curiosidade de o medirem, segundo as suas proporções, e mais miudezas, ou ao menos de o delinearem com algum rascunho.
Mais curiosos foram os que mediram outra semelhante no Rio Tapajós, que com grande cabedal (caudal) deságua acima do rio Coroa. Entre os mais Rios, e Ribeiras, que recolhe o Tapajós é um o Rio Cuparis, a pouca mais distância de três dias, e meio de viagem da banda de Leste no alegre sítio chamado Santa Cruz; é célebre este Rio, mais que pelas suas riquezas, de muito cravo , por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande Igreja, ou Templo, que bem mostra foi obra de arte, ou prodígio da natureza. É grande de cento e tantos palmos no comprimento; e todas as mais medidas de largura, e altura são proporcionadas segundo as regras da arte, como informou um missionário jesuíta, dos que missionavam no Rio Tapajós, que teve a curiosidade de lhe mandar tomar bem as medidas. Tem seu portal, corpo de Igreja, Capela-mor com seu arco; e de cada parte do arco uma grande pedra por modo de dois Altares colaterais, como hoje se costuma em muitas Igrejas; dentro do arco, e Capela-mor tem uma porta para um lado, para serventia da sacristia. O missionário que aí quiser fundar missão, já tem bom adjutório (auxílio) na Igreja, e não o desmerece o lugar, que é muito alegre. Bem pode ser que nos mais Rios e Distrito do Amazonas, e seus colaterais haja algumas outras Igrejas, ou Capelas; nestes três Rios Tapajós, Coroa e Xingu se descobriram estas, por serem mais frequentados.
Mas quando não haja outros sinais, bastam estes para se inferir ser moralmente certa a pregação de São Tomé na América. Nem é pequena conjectura, e congruência a fruta das bananas, chamada na Ásia figos, e na América pacovas de São Tomé, como também a mandioca, ou farinha-de-pau, que é o pão usual de todos os americanos, nos quais se conserva alguma tradição, de que também da vinda do Apóstolo São Tomé à América e que os ensinara o uso dela, talvez porque antes só comiam frutas do mato, à maneira de feras, como ainda hoje fazem muitos. (DANIEL)
-  Espada de Ouro
Acontece que perto desse morro foi descoberta há vários anos uma magnífica espada de ouro. Parece que foram uns técnicos do projeto RADAM que encontraram a tal espada com um detector. Eles a levaram e nunca mais ouvimos falar dela. Estava debaixo de uma lápide de mármore. Podia ser dos espanhóis. O mais esquisito é que até o momento em que a espada esteve lá, todos os pequenos aviões que passavam lá em cima tinham suas bússolas reviradas, como se houvesse alguma imantação naquele morro. (MAUSO)
Estas são apenas algumas das lendas que colhemos junto aos nativos locais e que são confirmadas por diversos autores. Muitas possuem explicações científicas, outras nem tanto. O fato é que, quanto mais primitivas as culturas mais impregnadas de lendas e mitos que foram passados oralmente para as gerações atuais. Estas narrativas foram sofrendo alterações de acordo com a imaginação de seus interlocutores, desprovidos de qualquer espírito crítico, que as aceitavam como verdadeiras. Por isso, encontramos, hoje, tantas divergências conceituais referentes a uma mesma lenda, supostamente ancestral, adotada uma mesma etnia.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Belarmino Augusto de Mendonça Lobo

Os Lusíadas
Luís Vaz de Camões
- Canto I -
V
Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
X
Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno:
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de til gente.
Desde o repto lançado pelo grande amigo Coronel Lauro Pastor, um ícone da Engenharia Militar Brasileira, que tenho pesquisado, planejado e sonhado com este que será, até então, o maior de todos os meus desafios. Permita Deus que ele se concretize. O primeiro passo foi conhecer a biografia do Marechal Belarmino Mendonça e analisar estudar o seu relatório sobre o Juruá.

-  Fronteira Brasil x Peru 
Façamos uma pequena digressão histórica para justificar minha expectativa. Os conflitos entre brasileiros e peruanos, no alto Juruá e alto Purus, anunciavam um desenrolar sangrento. O Brasil precisava assumir, no continente, uma posição mais firme nas relações internacionais. Em 1904, o Barão de Rio Branco nomeia, chefe da “Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Juruá”, o General Belarmino Mendonça e, da “Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus”, Euclides da Cunha, cuja missão era mapear os Rios Purus e Juruá desde a Foz no Solimões até suas cabeceiras no atual Estado do Acre, definindo as fronteiras do país com a Bolívia e o Peru. A viagem foi patrocinada pelo Ministério das Relações Exteriores e realizada conjuntamente com uma comissão do governo peruano.
O trabalho de campo das duas comissões demonstrou a tenacidade invulgar dos dois Chefes vencendo obstáculos de toda ordem e, inclusive, a desconfiança dos peruanos, que identificavam, nas atitudes dos brasileiros, manifestações que poderiam colocar em risco a sua soberania.
-  Olhos Voltados Para o Futuro, sem Olvidar o Passado
O relatório do General Belarmino Mendonça, permaneceu guardado, durante oito décadas, no acervo histórico-cultural do Itamarati. O trabalho, apresentado ao Barão do Rio Branco, em 1906, foi publicado apenas pela Imprensa Nacional, ano de 1907, no Rio de Janeiro, sob o título: “Memória da Comissão Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Rio Juruá e Relatório ao Governo Brasileiro (1904/1906)”.

O escritor Leandro Tocantins mobilizou o governo do Estado do Acre trazendo a público, na década de oitenta, a História do Rio Juruá através da notável obra do General Belarmino Mendonça, para a qual sugeriu o título de “Reconhecimento do Rio Juruá”, onde encontramos a memória da Comissão Mista, redigida por Belarmino Mendonça, com versão espanhola do Comissário peruano D. Nuno Pompílio Leon, e o relatório do Comissário Brasileiro.
-  Relatório Sobre a Geografia Física e a Geografia Humana do Rio Juruá
    Fonte: Leandro Tocantins, Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1988.
O processo histórico de incorporação do Acre ao Brasil importa em dois tempos distintos. O primeiro, teve por cenário o vale do Rio Acre, o mais rico em produção de borracha, o mais povoado, o mais percorrido pelos gaiolas (navios de pequena cabotagem) que partiam de Belém e de Manaus, levando mercadorias e gente para explorar os seringais recém-abertos em suas matas, opulentas de árvores de borracha. Uma rotina aliás, que se verificava no Alto - Purus, no Yaco, no Juruá, no Tarauacá. Mas, a primeira parte do drama acreano desenrolou-se no Rio Acre, o palco da Revolução armada que veio caracterizar o desejo de permanecer brasileira a terra que se submetia, há anos, ao desbravamento e ao trabalho produtivo de populações nacionais.
Ora, o vale do Rio Acre confinava com a Bolívia, e, naqueles fins de século XIX, fazia parte, pelo Tratado de Ayacucho (1867), do território boliviano, com fronteiras ainda ignoradas no espaço físico. A direção dos Rios, sua continuidade geográfica, estimulando a expansão humana que marchava do Estado do Amazonas, definiu o grande surto colonizador da iniciativa única de brasileiros. E o Governo do Amazonas exercia jurisdição em todas as áreas em que as populações nacionais se empenhavam no trabalho de abrir e de explorar seringais. Assim ocorreu no Acre, no Alto - Purus, no Juruá, e em seus afluentes. Enquanto no Rio Acre o encontro seria com os bolivianos, nos vales do Alto - Purus e do Alto-Puruá seria com os peruanos.
Nos vales dos três Rios os brasileiros se estabeleceram em posse mansa e pacífica. Só os índios e que lhes ofereciam alguma resistência. Quando os bolivianos se aperceberam das energias brasileiras dando um sinal forte de humanidade na extração de riqueza da selva, era tarde demais. Eles compreenderam, então, que o seu distanciamento da área amazônica do Acre motivara a ação pioneira dos brasileiro-nordestinos e os dos Estados do Pará e do Amazonas.
Só havia o recurso de apelar para a diplomacia. O Governo do Brasil reconhece os direitos do país vizinho, permitindo, em 12 de novembro de 1898, estabelecimento de um porto aduaneiro boliviano à margem do Rio Acre, “em território incontestavelmente boliviano”. A 3 de janeiro de 1899, instala-se a alfândega em lugar aberto na floresta, com o nome de Puerto Alonso, atual Porto Acre. Inaugura-se, desde então, a série das chamadas insurreições acreanas contra a presença da Bolívia na região, culminando na quarta e última, a vitoriosa, comandada por Plácido de Castro.
Esta foi a hora e a vez do Barão do Rio Branco entrar em cena, assumindo o Ministério das Relações Exteriores, para negociar diplomaticamente com a Bolívia uma saída honrosa que resultou no Tratado de Petrópolis, de 17 de novembro de 1903. Surge o Território Federal do Acre, dividido em três Departamentos: do Alto-Acre, do Alto - Purus e do Alto - Juruá, com capitais erguidos do nada, existiam, apenas, barracas e florestas: Rio Branco, no seringal Empresa, Sena Madureira, no Rio Iaco e Cruzeiro do Sul, no Juruá.

Barão do Rio Branco

Concluídas as gestões com a Bolívia, o Barão do Rio Branco dedica-se a negociar diplomaticamente com o Peru, que, alegando direitos nos vales do Alto - Purus e no Alto - Juruá, insistira em participar nos ajustes com a Bolívia e o Brasil. Proposta que Rio Branco jamais concordou: ao Governo do Peru ele esclarecia que não era conveniente uma discussão a três. Quando concluísse o pacto com a Bolívia “o Governo brasileiro terá na maior atenção as reclamações do Peru[1]”, fazendo lembrar que nada poderia ser feito com base no Tratado de Santo Ildefonso (1777), como propunha 0 Governo peruano, pois as antigas metrópoles europeias o declararam nulo pelo Tratado de Badajós (1801).
A insistência do Peru em reclamar os territórios do Alto - Purus e do Alto - Juruá, chegando a ampliar suas reivindicações até ao Município de Lábrea, no Estado do Amazonas (ressurreição da caduca Linha Madeira-Javari do instrumento de Santo Ildefonso), tornou muito tensa as relações com o Brasil. Rio Branco, de novo, usou de sua notável capacidade de conciliar e de negociar, obtendo, a 12 de julho de 1904, o “Modus Vivendi”, que se destinava a prevenir possíveis conflitos no Alto - Purus e no Alto - Juruá. Neutralizados os territórios, e com outras providências políticas e administrativas específicas, seria possível aos dois Governos estabelecerem bases justas, em amigável composição, cujo término resultaria num tratado honroso para ambas as partes.
Era um ato de cautela, e sábio, desde que, nas regiões do Alto - Purus e do Alto - Juruá, vinham se desenvolvendo conflitos entre caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros, diante de tentativas, por parte do Peru, de estabelecer aduanas nesses Rios maciçamente habitados por nacionais do Brasil. Era a tática de um apressado e retardatário projeto de ocupação do solo, para munir-se de títulos na hora dos ajustes diplomáticos.

Rio Juruá

O “Modus Vivendi”, de 12 de julho, estabeleceu, no artigo 9°, a criação de duas Comissões Mistas, uma para o Alto - Purus e outra para o Alto - Juruá, incumbidas de proceder o reconhecimento geográfico nesses Rios, com o objetivo de caracterizar o futuro Tratado de Limites entre os dois países. E assim o engenheiro Euclides da Cunha foi escolhido para chefiar a parte brasileira da Comissão do Alto - Purus e o então Coronel Belarmino Mendonça designado para a chefia da Comissão do Alto - Juruá.
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A Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto do Governo do Estado do Acre havia coeditado com a Editora José Olympio, na Coleção Documentos Brasileiros, “Um Paraíso Perdido”, de Euclides da Cunha, livro projetado por ele, depois de regressar da Amazônia, e interrompido pela sua morte brutal. Em “Um Paraíso Perdido”, com toda a matéria sobre a Amazônia escrito pelo autor de “Os Sertões”, reunida por mim, encontra-se o “Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto - Purus”, uma obra-prima de informe administrativo, técnico e histórico, página incorporada à Literatura Brasileira, em que estão, vivíssimas, as impressões fortes e artísticas sobre o complexo geográfico e humano do Rio Purus.
Foi assim que propus a complementação do seu meritório trabalho sob o ângulo das primeiras e seguras revelações sobre a Geografia Física, a Geografia Humana e a História da colonização do hoje Estado do Acre. Era preciso divulgar o relatório do General Belarmino Mendonça, peça desconhecida, que se guarda, há oitenta anos, no acervo histórico-cultural do Itamarati. O trabalho, apresentado ao Barão do Rio Branco, em 1906, após o regresso do General Belarmino Mendonça do Alto - Juruá, foi publicado pela Imprensa Nacional, ano de 1907, no Rio de Janeiro, sob o título: “Memória da Comissão Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Rio Juruá e Relatório ao Governo Brasileiro (1904/1906)”.
Obra rara, em dois volumes (o segundo com os mapas), o texto e aqui fac-similado do original que pertence ao acervo da Biblioteca Nacional, justamente com o autógrafo do autor, dirigido a Euclides da Cunha, portanto volume duplamente histórico. Esta republicação vai contribuir para o conhecimento de paisagens e de fatos essenciais a formação territorial e política do Brasil, em especial os do Acre, como já o fez o “Relatório” de Euclides da Cunha (há pouco publicado pela Fundação Cultural do Acre no livro “Um Paraíso Perdido”, completando, ainda, a verificação segura desse vasto painel geográfico reunido nos dois grandes vales: Purus e Juruá.
Abre-se, agora, a História do Juruá através da notável obra do General Belarmino Mendonça, para a qual sugeri o título simplificado de Reconhecimento do Rio Juruá, englobando a memória da Comissão Mista, redigida por Belarmino Mendonça, com versão espanhola do Comissário peruano D. Nuno Pompílio Leon, e o relatório do Comissário Brasileiro.
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O General Belarmino Augusto de Mendonça Lobo nasceu, em 1850, na antiga Província do Rio de Janeiro, filho de Belchior de Mendonça Lobo. Assentou praça, a 4 de março de 1865, no 5° Corpo de Voluntários da Pátria, seguindo para os campos de Guerra paraguaios, onde participa nos combates dos Fortes Curuzu e Curupaiti, e na Batalha de Tuiuti (todos em 1867), sendo elogiado por seu comportamento nas ações militares. Participa, também, das Batalhas de Itororó e de Avaí, o que lhe valeu a promoção de Alferes, por atos de bravura. Em Lomas Valentinas foi gravemente ferido e hospitalizado. Recebe, então, elogio do Ministro da Guerra em nome do Imperador Pedro II.
Em fevereiro de 1869, regressou ao Rio de Janeiro para completar o tratamento de saúde. Seu nome foi incluído no voto de felicitações da Câmara dos Deputados, em agradecimento ao Exército e à Marinha pelos triunfos alcançados na Guerra do Paraguai.
Restabelecido dos ferimentos, regressa ao campo de operações militares, a tempo de tomar parte na Batalha de Campo Grande, quando recebe citação especial do Conde d’Eu, Comandante-em-chefe das Forças Brasileiras.
Terminada a Guerra, com o posto de Tenente, Belarmino Mendonça volta ao Rio de Janeiro e normaliza sua situação do Exército, matriculando-se, em 1871, na Escola Militar, de onde saiu, depois de sete anos, bacharel em matemática e ciências físicas.
A carreira militar proporcionou-lhe importantes Comissões no Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. Esteve à disposição do Ministério das Relações Exteriores para tratar de assuntos relativos às fronteiras Brasil-Argentina. Fez parte, em 1890, da Assembléia Nacional Constituinte. (TOCANTINS)
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Interrompo, momentaneamente, a irretocável narração de Leandro Tocantins com a finalidade de relatar a primeira vez em que ouvi falar de Belarmino de Mendonça. No meu livro “Descendo o Rio Negro” homenageei a figura mais emblemática que a historiografia brasileira já produziu - Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon.

Rondon

A pesquisa me contagiou, li “Roquette-Pinto: O Homem Multidão” de Ruy Castro em que Roquette-Pinto acompanha Rondon em uma de suas expedições à Serra do Norte, pioneiramente filmando uma civilização que ainda vivia na pré-história em plena alvorada do século XX, encantei-me com a descrição de Castro em que ele mostra como o carisma contagiante de Rondon impressionou e cativou Roquete Pinto.


No trabalho jornalístico de maior repercussão de Edilberto Coutinho, fui obrigado a concordar com o escritor quando ele afirmou que o Marechal da Paz era “O Civilizador da Última Fronteira”. Impressionei-me com a fidelidade das “Impressões da Comissão Rondon” colhidas “in loco” por um membro de sua equipe o Major Amílcar Botelho de Magalhães. Percorri “O Rio da Dúvida” em que Candice Millard conta a saga do Marechal da Paz “Nas Selvas do Brasil” em que ele acompanha Theodore Roosevelt no desbravamento do Rio que foi, mais tarde, batizado com o nome do ex-Presidente americano. Finalmente, fui totalmente envolvido pela melhor biografia já produzida sobre o “caboclo mimoseano” no “Rondon Conta Sua vida” em que Esther de Viveiros transcreve as memórias do “bicho peludo” contadas pessoalmente por Rondon no seu apartamento em Copacabana.
Esther de Viveiros e o Major Amílcar Botelho de Magalhães mencionam um acontecimento trágico que só não interrompeu a carreira deste ícone da nacionalidade, que é Rondon, porque o encarregado de analisar o seu processo era um militar de escol chamado Belarmino Augusto de Mendonça Lobo, então Coronel, que fora forjado com muito suor e sangue na tropa e na guerra enfrentando toda a sorte de adversidades e não um mero emproado oficial de gabinete. 
Rondon - “o Disciplinador”
Em junho de 1894, isto é, dois meses depois do nascimento de Benjamim, vim ao Rio trazer a família. Passei, por isso, a chefia da Comissão ao Comandante do contingente, a quem deixei instruções minuciosas, de modo que, em minha ausência, prosseguisse a construção regularmente.
No dia da partida, já a bordo as bagagens, recebi um telefonema: os soldados da Comissão haviam-se revoltado e, depois de expulsar os oficiais, entregavam-se no acampamento, em Quebra-Pote, à mais desenfreada orgia, quase todos em estado de embriaguez. O tempo era limitadíssimo para agir. Por outro lado, como partir deixando a Comissão entregue à indisciplina? Não hesitei.
-Ordenança, o meu cavalo.
Embora temendo que me não fosse possível regressar a tempo, acatou minha Esposa essa decisão, habituada já a me ver sair vitorioso nos lances difíceis. Parti em desabalado galope. Montava um vigoroso cavalo preto que, ao chegar ao acampamento, estava branco de espuma. Refreado de súbito, o animal sentou-se. Com um salto, desmontei.

    -Corneteiro, tocar a reunir soldados, acelerado. Repita! Repita!
Os soldados obedeceram ao toque, os embriagados instintivamente acompanhando os que ainda conservavam o raciocínio.
-Corneteiro, gritei novamente, tocar a reunir oficiais, acelerado. Repita! Repita!
Vieram estes se aproximando, deixando a mata onde se haviam refugiado. Formados todos, fiz sentir aos soldados a gravidade do ato praticado. Tinham-se tornado indignos da farda que traziam. Os oficiais foram também severamente admoestados:
-Um oficial não pode abandonar o seu posto - nele morre, se necessário for.
Destaquei depois um pelotão para ir à mata buscar varas. E durante uma hora, foram os soldados, em forma, vergastados. Depois de deixar cada um no seu posto, regressei amargurado. Doía-me profundamente ter sido forçado a recorrer ao processo do Conde de Lippe. Entreguei-me a amargas reflexões sobre o fato de serem sempre enviados, para trabalhar na Comissão, homens indisciplinados, na fase ainda da “obediência forçada”. E sob a impressão desse melancólico incidente, partimos. (...)

Conde de Lippe

Fomos, pois, residir em Cascadura. Mas não seria de longa duração essa temporada deliciosa, porque eu deveria regressar em breve para minhas funções em Mato Grosso. Ao partir, formara o projeto de regressar por terra do Rio a Uberaba, por estrada de ferro, e de Uberaba a Cuiabá, a cavalo. Para isso incumbira o inspetor Salatiel Cândido de Moraes e Castro de me esperar em Uberaba, com a minha preciosa besta, a Barétia. (...)
A viagem realizou-se como planejara. Passei três dias em Uberaba, reorganizando a volta pela picada da linha telegráfica de Uberaba a Goiás, passando por Monte Alegre, fronteira de Minas e Goiás - Morrinhos, Atolador e, finalmente, Goiás. Aí permaneci uns dias a fim de combinar com meu colega o melhor meio de executar as ordens recebidas.
Era esse o Capitão Eduardo Sócrates, chefe do 15° Distrito Telegráfico, a quem cabia o trecho de Goiás ao Araguaia. O 16° Distrito, a meu cargo, de Cuiabá ao Araguaia, prolongava-se agora até a estação Marechal Floriano, instalada em Goiás, à margem do Rio Claro. Prossegui, então, viagem para Cuiabá, passando pela Cidade de Rio Claro, ainda em Goiás, e Registro do Araguaia. Cheguei, finalmente, ao acampamento da reconstrução da linha, onde, pelos oficiais, tive notícia de graves acontecimentos passados em minha ausência. Fora necessário que o Comandante do Distrito Militar enviasse um reforço com oficiais da guarnição, para tomar conta do acampamento e restabelecer a ordem.
Tudo estava sanado quando cheguei, mas a atitude dos soldados era de franca indisciplina - nessa situação é que retomei minhas difíceis tarefas. A construção da linha telegráfica exigia trabalhos penosos a que se não queriam submeter os soldados - eram por isso contínuas as deserções no contingente, a ponto de ser necessário mandar prender os desertores, para manter o princípio de autoridade. É que os soldados enviados ao contingente da Comissão eram os maus elementos indisciplinados, entre eles os cem revoltosos da Fortaleza de Santa Cruz.
Resolveram eliminar-me: na hora do pagamento, matariam os oficiais e tomariam conta do cofre do contingente. Mas vinte praças que estavam envolvidas na conjura se acovardaram e fugiram à noite, sendo descoberta a fuga na chamada do dia seguinte. Foi quando um sargento revelou o plano que uma das praças levara ao seu conhecimento, antes de fugir. Mandei organizar dois contingentes, fortemente armados, com ordem de prender os fugitivos ou atirar, caso não obedecessem. Seguiram os dois pelotões pelas duas estradas que conduziam à Bolívia, e um deles conseguiu reconduzir os trânsfugas presos ao acampamento.
Expliquei-lhes a gravidade do que haviam praticado e, mais ainda, do que haviam planejado. Expliquei-lhes, por outro lado, que a disciplina do sertão tinha de ser a disciplina de um Lugar onde não havia cadeia. Resolvi desligar os menos culpados e fazê-los recolher ao Batalhão. Mandei, porém, que o cabeça ficasse em frente à minha barraca, as mãos amarradas ao pau da bandeira, a olhar para o seu Comandante, a meditar sobre a sinistra ideia de querer assassiná-lo. O soldado começou a chorar.
-Você se emociona agora, mas não deu provas de sensibilidade quando planejou matar seu Comandante e o do contingente.
Assim ficou ele durante uma semana, levando as noites a chorar em altos brados. Não convinha torná-lo objeto de pena, por parte dos companheiros. Chamei, pois, o Comandante do contingente:
-Vamos soltar o soldado. Que ele venha à minha presença, em frente ao contingente formado.
Disse-lhe, então, depois de rememorar a culpa:
-Você vai ser perdoado, primeiro porque foi antes levado pela energia de seus sentimentos egoístas sem ser propriamente cruel; segundo porque é um covarde, incapaz de arrostar com as consequências de seus atos. Quero, porém, declarar que é indigno de ser soldado. Vou mandar que se recolha ao Batalhão uma vez que na Comissão não poderá continuar. Procure lá dar provas de que se regenerou.
A efervescência continuava, porém, bem como os planos de assassinar o chefe, os oficiais e tomar conta do contingente. Assim é que fui forçado a ir de encontro a meus princípios religiosos e lançar novamente mão do processo do Conde de Lippe. (VIVEIROS)
Esther de Viveiros não menciona mas, nessa oportunidade, uma das varas de bambu, usada como açoite, sob a força de um golpe, rachou e perfurou o pulmão de um dos soldados. Rondon ficou profundamente consternado com o incidente e mandou suspender imediatamente o açoitamento, mas nada mais se podia fazer pelo soldado ferido que veio a sucumbir vitimado pela peritonite.
Foi quando o Capitão Távora, Comandante do 8° Batalhão de Infantaria, em ofício que me dirigiu, reclamou contra medidas disciplinares e métodos de trabalho que considerava prejudiciais aos soldados, entre os quais figuravam praças do Batalhão por ele comandado, em serviço na construção de linhas. Tratava-se de um ofício de um capitão para outro, de um Comandante de um Batalhão de Infantaria para um chefe de importante Comissão Técnica. Aliás, em boa ética, deveria o Capitão Távora ter-se dirigido ao Capitão Chefe da Comissão Telegráfica, por intermédio do Comandante do Distrito Militar e da Diretoria de Engenharia.
Minha resposta foi altiva, reação de intensidade igual à da agressão. Lançara eu mão do único meio de manter disciplina no sertão, entre homens que eram afastados de suas funções, no Rio, justamente por serem insubordinados. Sempre me repugnara o processo do Conde de Lippe, porque, como meu grande chefe prático, punha o bem-estar do soldado acima do meu próprio: “primeiro o soldado, o oficial fica com as sobras”.
Aquele processo ia, além disso, de encontro a meus princípios religiosos. Fora em desespero de causa que me vira forçado a dele lançar mão. Não se conformou o Capitão Távora com a minha resposta. Pondo a questão no pé de ser ele meu superior hierárquico, pelo fato de ser capitão mais antigo do que eu, deu imediatamente parte ao Comandante do Distrito Militar, a quem enviou cópia da minha resposta e exigiu Inquérito Militar. Atendendo à requisição do Capitão Távora, foi nomeada uma Comissão para instaurar o Inquérito Militar, sendo eu arguido, e diversos soldados.
Sustentei que fora levado a tomar tal atitude pela necessidade iniludível de manter a disciplina e a ordem militar. Resultou desse inquérito a nomeação, pelo Comandante do Distrito Militar, de um Conselho de Guerra a que respondi em Cuiabá, sendo o processo enviado para o Rio, ao Ministro da Guerra.
Tão penosas ocorrências não me desviavam uma linha das minhas tarefas: a reconstrução da linha telegráfica e a construção da estrada estratégica. A situação prolongou-se e, só depois de alguns meses, em janeiro de 1895, fui chamado ao Rio, para responder ao mesmo Conselho de Guerra a que respondera em Cuiabá. Normalizadas, felizmente, as relações com a República Argentina, abandonou o Governo o plano de construir a estrada estratégica, destinada à passagem de tropas, e suspendeu os trabalhos. Pude, pois, ficar no Rio, à espera da solução do triste incidente. Foi o caso confiado ao General Belarmino de Mendonça, ajudante General.
Depois de minucioso estudo do processo, enviou-o ao Ministro da Guerra, com as informações necessárias, de acordo com as provas dele constantes e o Ministro determinou que fosse “arquivado por improcedente”. Mais tarde, mandou o Comandante do distrito que fosse eu em ordem do dia louvado e agradecido por serviços prestados. (VIVEIROS)
Na verdade, em 1895, Belarmino Mendonça era Coronel e não General, posto a que só atingiu onze anos mais tarde, em 1906, depois da Missão de Reconhecimento do Juruá.
Voltemos, pois, à biografia do General Belarmino Augusto de Mendonça Lobo segundo Leandro Tocantins.
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No mesmo ano, de 1902, foi nomeado para chefiar a Comissão Construtora da Ferrovia Lorena-Benfica, em São Paulo. Quando exercia este posto, com a patente de Coronel, recebeu convite do Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Rio Juruá.
Voltando da Amazônia, em 1906, já promovido a General-de-brigada, reintegrou-se às fileiras do Exército. No ano de 1911, recebe a promoção de General-de-divisão, e, em seguida é nomeado Ministro do Supremo Tribunal Militar, em 1912. No mesmo ano, por motivo de saúde, pediu aposentadoria, galgando o posto de Marechal.
Faleceu no Rio de Janeiro a 28 de maio de 1913[2].
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O Coronel de engenheiros Belarmino Mendonça, Chefe da construção do ramal ferroviário militar de Lorena, viera ao Rio de Janeiro a serviço, quando, a 6 de outubro de 1904, foi convidado pelo Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira, que, junto a peruana, faria a exploração geográfica do Rio Juruá.
Belarmino Mendonça aceitou o posto como imperativo de Missão, apesar do parecer negativo de seu médico assistente, Dr. Licínio Cardoso, que, há três anos, o tratava dos efeitos de uma tuberculose, agravada pela malária contraída na demarcação dos limites Brasil-Argentina. O médico não quis responsabilizar-se pela viagem do Coronel Belarmino Mendonça ao Juruá, considerando-a um suicídio. Disposto a cumprir a tarefa, o militar incluiu na Comissão, no posto de almoxarife, um filho seu para dar-lhe assistência, apaziguando os ânimos da família que temia pelos riscos à saúde de seu chefe em tão longa e arriscada viagem. No entanto, o filho contrairia um grave ataque de beribéri e foi obrigado a retornar ao Rio de Janeiro, antes do termino da Missão.
O 1° Tenente da Marinha, Henrique Aristides Guilhen, que seria, como Almirante, Ministro da Marinha do Presidente Getúlio Vargas, foi designado ajudante substituto da Comissão.
A 13 de dezembro de 1904, o Coronel Belarmino Mendonça e seus auxiliares embarcam no vapor Alagoas, do Loyde Brasileiro, com destino a Manaus. Na mesma viagem seguiu Euclides da Cunha, Chefe da Comissão Brasileira que ia reconhecer o Alto - Purus. Chegaram a Manaus no dia 30 de dezembro.
Na capital amazonense os dois grupos agiram separadamente. Euclides da Cunha hospedou-se na Vila Glicínia, Vila Municipal, residência de seu amigo Alberto Rangel, o futuro autor de “Inferno Verde”, enquanto o Coronel Belarmino e seus auxiliares alojaram-se no Quartel do Largo de Polícia, por cortesia do Governador Constantino Nery. Antes, o Governo Estadual havia-lhe oferecido o edifício da Imigração, em Paricatuba, a Casa dos Educandos e a chácara do Coronel Afonso de Carvalho, nos arrabaldes da cidade. As informações duvidosas sobre os ares insalubres nesses locais e o afastamento do Centro de Manaus fizeram o Coronel Belarmino Mendonça declinar da oferta.
Os preparativos para a marcha fluvial no Juruá foram lentos e demorados, fato, aliás, que também se deu com a Expedição de Euclides da Cunha. Ambos os Comissários queixavam-se, em ofício ao Barão do Rio Branco, do atraso da viagem, em circunstâncias dramáticas, eis que se aproximava a vazante dos Rios no Alto Amazonas, dificultando a navegação. “Não contava eu com tamanha demora em Manaus”, queixa-se Belarmino Mendonça em seu Relatório, e, em carta de 14 de janeiro de 1905, ao Barão do Rio Branco, ele fez comentário pitoresco: “apesar de alguns sábios teimarem em demonstrar que a Lua nenhuma influência exerce sobre a produção de chuvas, ainda agora aqui se confirma o refrão popular: lua nova trovejada, trinta dias molhada. As chuvas são diárias ...[3]. É o típico inverno amazônico, e janeiro o mês de aguaceiros torrenciais.
Ao passo dessas ocorrências e dos atropelos administrativos, os dois chefes da Comissão Brasileira e os dois da Comissão peruana reuniram-se, a 22 de março de 1905, e lavraram “ata da conferência preliminar das duas Comissões Mistas Brasileiro-Peruanas de Reconhecimento dos Rios Purus e Juruá, nos terriitórios neutralizados”. O documento prevê uma série de providências de rotina, de acordo com o espírito e a letra do “Modus Vivendi”. de 12 de julho de 1904. Traz a assinatura de Belarmino Mendonça, Euclides da Cunha, Felipe Enrique Espinar e Pedro A. Bueñano[4].
Antes, porém, ocorreu pequeno incidente, um tanto exagerado pelo comissário peruano, o Capitão de navios D. Felipe Enrique Espinar. O Barão do Rio Branco apressou-se a pedir esclarecimento ao Coronel Belarmino, que vinha procurando pacificar o espírito de seu colega de expedição, que se declarava de brios ofendidos.
Rio Branco teve informações da legação do Peru no Rio de Janeiro sobre o fato, despachando, a 22 de janeiro de 1905, um telegrama ao chefe brasileiro, em Manaus:
Espinar pediu demissão alegando moléstia rogo dizer-me confidencialmente a moléstia real. Sei ficou sentido não ter sido visitado autoridades, mas expliquei Ministro compreendeu que Cônsul devia tê-lo apresentado ao Governador e General. Mas entendo pode-se ainda remediar isso apresentando o senhor. Mas entendo visita não deve ser retribuída em pessoa mas sim mandando o Governador e o General ajudante-de-ordens[5].
O próprio Coronel Belarmino Mendonça relata ao Barão do Rio Branco, em ofício datado de 30 de janeiro de 1905: “Em meu telegrama de 23 declarei que o Sr. Mar e Guerra Espinar não havia mostrado ressentimento com o Sr. Governador do Estado e General Comandante do Distrito ao aceitar meu convite para apresentá-lo com seus companheiros a essas autoridades. No dia seguinte, porém, pede-me aquele Chefe, em carta, que desista da apresentação porque seus subordinados a acham extemporânea, e ainda por ter ocorrido falta de etiqueta da parte das autoridades locais em sua chegada (...) Vindo o Sr. Espinar a minha residência convenci-o de que a primeira falta partira das Comissões peruanas, pois lhes cabe o dever de saudar a primeira autoridade local e o representante do Governo Federal no território em que se apresentaram em caráter oficial, devendo a apresentação ter sido imediata e sob os auspícios do Sr. Cônsul em sua nação. / Confessou-se, então, não só que a caca-torpedeira Tymbira dera a salva de estilo por ocasião da chegada da lancha de Guerra que trouxe as duas Comissões, o que importava em demonstração de apreço superior a qualquer outra” e “que seus subordinados não possuíam aqui os preciosos uniformes por terem sido; colhidos de surpresa em pontos muito afastados onde tinham formaturas, nem cumprimentos que exigissem essa formalidade (...) Em suma, teve lugar a apresentação do Sr. Espinar ao Governador e ao Comandante do Distrito no dia 27 às 2 horas da tarde, em carro do Palácio escoltado por duas ordenanças. O Sr. Espinar e seus compatriotas estão satisfeitíssimos. / Além disso, desde que chegaram aqui o médico de minha Comissão trata de seus doentes cujo número já se eleva a mais de dez, alguns dos quais graves[6].
No Arquivo Histórico do Itamarati, estão guardadas inúmeras faturas de compras feitas pela Comissão Brasileira do Juruá. No dia 24 de março de 1905, por exemplo, o Coronel Belarmino Mendonça assinou escritura de compra e venda com Joaquim Pereira Barroso, adquirindo, para o Governo da República, a lancha Faceira, construída em Santarém, Estado do Pará, com máquina americana, de força normal de 12 cavalos, pela importância de cinquenta contos de réis. O batelão Egas, de 25 toneladas, foi comprado por 9 contos e 200 mil réis.
Há um sem-número de notas fiscais de toda a sorte de objetos e de mercadorias, que chamam a atenção pelos seus aspectos sociológicos: bonitas gravuras em estilo “art nouveau”, e os nomes dos estabelecimentos em francês, demonstração de influência cultural da França, como também foi em Belém do Pará, durante a fase áurea da borracha. “Palais Royal”, que abasteceu a expedição de papéis de expediente com o timbre da República, livros para contabilidade, carimbos. Casa situada na Rua Municipal, 43. “Á 1ª Ville de Paris”, na Rua Municipal, canto com a Rua da Matriz, onde a Comissão comprou objetos de ótica.
Para melhor acomodação do pessoal e dos aparelhos, a Comissão passou a ocupar, mediante aluguel de 400 mil réis mensais, casa da Rua Dr. Moreira n° 20, onde o Coronel Belarmino passou a centralizar as atividades administrativas e técnicas, servindo-lhe, também, de residência.
Como acontecia na Comissão do Purus, a rotina, a burocracia, a lentidão, tantas vezes reclamadas por Euclides da Cunha em correspondência a Rio Branco, preocupava o Coronel Belarmino Mendonça, que também tinha pressa de seguir viagem. De outra parte, Manaus fervilhava de boatos contraditórios sobre a posição do Peru nas regiões do Alto - Purus e do Alto - Juruá, muito embora o acordo do “Modus Vivendi”, assinado a 12 de julho. De Iquitos, capital do Departamento de Loreto, cidade peruana mais próxima de Manaus, através do Rio Solimões, partia uma ativa propaganda a favor dos interesses do Peru, que o intercâmbio comercial e de pessoas muito estimulava. Persistia, em Manaus, a versão, já antiga, que o Governo de Lima resolvera empregar a força para manter ou ampliar suas posições no Alto - Purus e no Alto - Juruá. Murmurava-se que o Peru tinha planos para invadir o Baixo-Juruá e ocupar a capital do Amazonas[7].
Compreensível, assim, que, oficial de Estado-Maior, o Coronel Belarmino de Mendonça se preocupasse com esses aspectos, pedindo a Rio Branco lanchas da Marinha para subir o Rio Juruá, ao que o Chanceler respondeu que “Ministério da Marinha não dispõe de nenhuma. Elas não se prestariam ao serviço, por serem lanchas blindadas, próprias para combate”.
O material adquirido no Rio de Janeiro demorou a chegar. Afinal, com bastante atraso, trouxe-o o vapor Alagoas. Mas as operações, no porto, foram tão vagarosas que inquietou o Coronel Belarmino:
O serviço de descarga do material foi demasiadamente moroso. Os volumes passaram do Alagoas para uma alvarenga (embarcação rústica usada na carga e descarga dos navios e no transporte de fardos pesados; batelão, saveiro), onde eram apanhados por guindastes e fios aéreos formando lingadas (cingir carga com a linga para içá-la com uma talha) e transportados do cais flutuante para o fixo. Nesse complicado serviço foram consumidos cinco dias e mais alguns para separação e arrumação em trapiche da Companhia Manaus Harbour, concessionária do porto[8].
No dia 5 de abril (1905) o Coronel Belarmino dirige sua lancha Faceira à enseada de Marapatá, na foz do Rio Negro, onde as embarcações das Comissões Mistas do Brasil e do Peru fundearam para, de madrugada, iniciarem a viagem ao Purus. Belarmino Mendonça chega às 21h30 à lancha de Euclides da Cunha, com quem conferenciou até alta madrugada.
E no dia 11 de abril, às 16h55, chegou a sua vez de partir em direção ao Juruá. A lancha Faceira leva a reboque o Batelão Egas. O grupo do Peru viaja na mesma ocasião, na lancha Iquitos, e, sob reboque, um batelão e outra embarcação menor. O capitão de navios D. Felipe Enrique Espinar desistira de sua renúncia e seguia no comando.
Quando viajava no paraná de Xiburema, às 20h17, ocorreu sério desarranjo na máquina da lancha Faceira, o que obrigou o regresso a Manaus, onde os brasileiros chegariam de madrugada. Na tarde do dia 14, reencetaram (recomeçaram) a jornada fluvial. E a máquina apresentou o mesmo defeito, obrigando-os a fundear em Tefé, com “o tempo indispensável a uma radical reparação, que se tomou possível por ser perito o novo maquinista e dispor a lancha dos maquinismos, ferramentas e mais materiais precisos”, registra o Coronel Belarmino[9]. Estacionara em Tefé de 20 a 22 de abril.
As Comissões brasileira e peruana reencontraram-se a 25 de abril na foz do Juruá, onde se iniciam as observações astronômicas para fixar coordenadas geográficas. Fundearam ao lado da Ilha da Consciência, uma ilha sociologicamente peculiar na foz de certos Rios amazônicos, como no Rio Negro (a Ilha do Marapatá), no Purus, no Juruá, nos grandes Rios da borracha. Traz o seu mito dos tempos de prosperidade econômica do látex, o ciclo do ouro negro, quando milhares de imigrantes se internavam pelos caudais miraculosos, a fortuna em ronda permanente. Eles deixavam a consciência na boca desses Potosis (tesouros) fluviais, e, ricos, ao regressarem a terra natal, recuperavam-na com espírito purificado: pelo menos, a consciência ficara ali, resguardada de contaminações perigosas... Euclides da Cunha em “À margem da História” classifica a Ilha da Consciência de “prodígio de fantasia popular”, e interpreta: “É o mais original dos lazaretos - um lazareto de almas”.
Lazareto: local onde se recolhe, normalmente, indivíduos portadores de moléstia contagiosa, na alusão Euclidiana, de almas aflitas e pecadoras.
Prosseguindo a viagem, Juruá acima, aportam em São Felipe (hoje Eirunepê), no dia 17 de maio (1905), o primeiro porto de importância do Juruá, cabeça de Comarca e Vila, pertencente ao Estado do Amazonas. Aí ocorreu o abalroamento do vapor Costeira, na lancha Faceira, que se encontrava ancorada no porto. A manobra imprudente do vapor por pouco não toma proporções de desastre total, ocasionando à lancha da Comissão Brasileira avarias no verdugo (cinta que se estende da popa à proa sobre a quilha de um navio) e no costado. A Comissão peruana atrasara-se, chegando ao São Felipe três dias depois.
Esse atraso se repetiria Rio acima, os brasileiros progrediam na vanguarda, e, por isso, um fato de capital importância surpreendeu 0 Coronel Belarmino Mendonça. Ele escreve em seu Relatório:
Não estavam completas as operações astronômicas (...) quando, pouco depois das 10 horas da manhã de 5 de junho, chegou a lancha Iquitos, que havíamos deixado em São Felipe e pela qual esperávamos. Recebi logo comunicação oficial da substituição do Sr. Capitão de navios Espinar pelo então Tenente D. Nuno Pompílio Leon, na chefia da Comissão peruana de reconhecimento. Mandei cumprimentar o novo chefe.
A substituição, que ocorrera em São Felipe, desagradou o Coronel Belarmino, que, mais tarde, em ofício ao Barão do Rio Branco, assim se referiu:
A substituição desse oficial superior fez-se por um simples 1° Tenente, tal era então o posto do atual Capitão-tenente D. Nunes Pompílio Leon[10].
O Coronel Belarmino achava que o chefe peruano deveria ter patente igual, à sua, pois D. Nuno Pompílio Leon foi promovido, rapidamente, ao posto de Capitão-tenente e logo a seguir a Capitão-de-corveta.
Resolveram os dois Comissários assinar uma “ata confirmativa da substituição do Chefe da Comissão Peruana”, nestes termos:
Na margem esquerda do Rio Juruá, em frente á foz do Rio Breu, aos 19 do mês de julho de 1905, o 1° Tenente D. Nuno Pompílio Leon declarou e comprovou sua nomeação, em substituição ao Sr. Capitão de Navios D. Felipe Enrique Espinar[11].
Cruzeiro do Sul, a hoje próspera, simpática cidade de 20.000 habitantes, sede do município, o segundo centro populacional e comercial do Estado do Acre, era, no dia 2 de junho de 1905, quando nela aportou o Coronel Belarmino Mendonça, um mero Porto de Cabotagem, embora recentemente promovida à capital do Departamento do Alto - Juruá. Havia um sobrado coberto de telhas, o barracão da Prefeitura, 14 casas mais e quatro galpões cobertos de palha, em meio de uma pequena clareira aberta na floresta. O Coronel Belarmino nos adianta poucas informações:
A sede da Prefeitura do Alto - Juruá, denominada Cruzeiro do Sul, está situada a menos de duas milhas da boca do Moa.
O Coronel Taumaturgo de Azevedo, nomeado seu primeiro prefeito, estava ausente, pois a Comissão Brasileira foi visitada pelo prefeito interino, Capitão-tenente Florio Pitombo.
Logo a seguir ao reencontro das duas Comissões começaram os percalços de navegação, em virtude do regime hidrográfico no Juruá. A 8 de junho a Iquitos encalhou. A 10, a Faceira foi de encontro a paus no leito do Rio, o que lhe arrancou todo o aparelho do leme. Resolveram os dois Comissários a transferência para canoas leves, que deveriam cumprir o itinerário até as cabeceiras, ora feito pelo Rio, escasso d’água, ora a pé, abrindo picadas na floresta. Viagem plena de acidentes: uma vez o Coronel Belarmino foi vítima de queda de uma árvore, que o atingiu com ferimentos, outra vez os índios apareceram numa emboscada e por pouco não houve luta.
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O Coronel Belarmino Mendonça era um militar inteiriço: caráter reto, cumpridor rígido, das leis e dos regulamentos, e muito sensível aos princípios éticos e morais. Um homem de rara tenacidade que talvez herdasse das lutas nos campos de Batalha do Paraguai, sua primeira escola de vida, jovem “Voluntário da Pátria”, que lhe atribuía momentos de rara coragem pessoal. Seu aspecto físico, revelando a magreza de uma tuberculose contida, parecia não condizer com um espírito insuspeitável de tenacidade, energia, impavidez.
Exigente em questões de hierarquia, o Coronel Belarmino Mendonça trazia no íntimo, desde a sua partida do Rio de Janeiro, a dúvida sobre o comando duplo que pensava exercer. No Relatório ele faz referencia:
(...) a 6 de setembro de 1904, tive a honra de ser convidado pelo Exmo. Sr. Ministro das Relações Exteriores, para dirigir, por parte do Brasil, a exploração dos Rios Juruá e Purus, que seria cometida a duas Comissões (...)
Nada se encontra, nos arquivos, pelo menos até a presente data, que nos elucide melhor a ocorrência da nomeação referida pelo Coronel Belarmino Mendonça: a chefia das duas Comissões. Mas, resta a sua alegação para acolhermos como real o ato ministerial do convite, como se depreende claramente dos termos do ofício escrito pelo Coronel Belarmino Mendonça, na canoa Quixadá, navegando no Alto - Juruá:
Parecendo-me que as praxes diplomáticas exigem correspondência de hierarquia social entre os representantes das nações que conjuntamente operam no interesse comum dos respectivos países, principalmente quando se trata de membros das classes armadas, em faltando ainda a categoria de chefe das duas Comissões brasileiras, correspondentes às duas peruanas referidas, para o qual aliás fui convidado mas não tive a nomeação e cessou por completo o encargo, cumpro o dever patriótico de vir oferecer ao Governo o meu pedido de exoneração do cargo de Comissário do Alto - Juruá, para evitar que por uma mera consideração pessoal, a mim dispensada, fique minha pátria em situação menos vantajosa[12].
O Barão do Rio Branco assustou-se com essa crise administrativa, que poderia ter consequências negativas para a política que traçara em relação ao Peru. No mínimo, seria um atraso irrecuperável nos trabalhos de reconhecimento do Juruá, enquanto os do Purus prosseguiam normalmente. Já, antes, ele redigira um telegrama ao Coronel Belarmino Mendonça:
Certo tantas vezes provado patriotismo de V. Exciª não duvido que levará a cabo a importante missão que lhe foi confiada, e espero que há de ser nela em tudo feliz[13].
Diante do pedido de demissão, Rio Branco de novo telegrafou ao chefe da Comissão de Juruá, por intermédio do General Bittencourt, Delegado Federal do Acre, em Manaus:
(...) Cabe-me dizer-lhe que o Governo Federal não pode aceitar a demissão oferecida, não só porque não devem ficar interrompidos por semelhante motivo trabalhos de exploração que são indispensáveis, e já nos terem custado tantos dispêndios, como também por virtude de acordos celebrados. Não temos o direito de exigir do Peru que nomeie um comissário do posto de Coronel. Acresce que as Comissões de exploração tanto podem ser desempenhadas por engenheiros militares como por engenheiros civis. A brasileira, do Alto - Purus é dirigida por um paisano, o Sr. Euclides da Cunha e o comissário peruano é um Capitão-tenente, não se, queixou disso (...). A circunstância de ter o Governo peruano dado a um dos seus comissários a direção das duas Comissões não é motivo para que procedamos do mesmo modo. De fato, separados como estão por grande distância os Rios Purus e Juruá, esse Comissário apenas dirige a Comissão Peruana que faz o reconhecimento do Alto - Purus. O Governo Federal deu aos seus comissários todos os recursos que pediram para o reconhecimento expedito de que se encarregaram. O que espera deles é que cumpram a sua missão e no prazo o mais curto possível, como convém aos interesses da nação[14].
O Coronel Belarmino não se deu por satisfeito, nem quis encerrar o caso. Voltou a escrever ao Barão do Rio Branco:
Sobretudo lisonjeado pela segurança que meu patriotismo inspira a V. Exciª de levar eu a cabo a espinhosa missão que me foi confiada a de ser nela em tudo feliz, peço vênia para ressalvar os meus intuitos ao oferecer a minha exoneração, por me parecer não ter tido a fortuna de expressá-los com a clareza precisão e declarar de mim a responsabilidade nos muitos dispêndios já havidos com a Comissão. Quando tive a distinção de ser por V. Exciª convidado para tão árdua missão me disse V. Exciª que o Governo do Peru já havia nomeado um Capitão de Mar e Guerra para dirigir a Comissão que teria de operar conjuntamente com a que me seria confiada, isto é, um militar de patente correspondente a minha. A substituição desse oficial superior fez-se por um simples 1° Tenente, tal era o posto do atual Capitão-de-corveta D. Nuno Pompílio Leon. Tinha em dúvida pela ignorância das regras diplomáticas que podiam reger o caso, se a minha conservação dada a grande desigualdade de postos entre mim e o novo colega, iria ou não afetar essas regras e os melindres de diplomacia com desaire (falta de elegância ou distinção) para o meu país. A circunstância de ser o Dr. Euclides da Cunha, aliás oficial reformado e não paisano, chefe da Comissão Idêntica, não podia influir no meu espírito não só por não eximir-me da responsabilidade individual positiva, ou simplesmente moral, como por ter sido eu de fato chefe das duas Comissões - do Juruá e do Purus - e portanto cobrir com minha patente a que lhe podia faltar.
Continuando, o militar lembra os penosos sacrifícios a que vinha se submetendo para realizar o trabalho, apesar de sua frágil saúde:
No mesmo dia em que aceitei o honroso convite de V. Exciª, havia um médico assistente Sr. Dr. Licínio Cardoso declarado a pessoa da família que antevira a possibilidade do Governo mandar-me ao Amazonas, importar minha vinda num assassinato da parte de quem me mandasse e da minha num suicídio. Estava eu em tratamento de tuberculose desde cerca de três anos e anteriormente sofrido de impaludismo larvado (doença que se apresenta com aspecto anormal e cujos acessos são benignos e pouco frequentes) durante oito anos, como tive a lealdade de declarar a V. Exciª (...). Mais uma vez sintomas de moléstia regional grave me têm invadido o organismo, levando o médico da Comissão a aconselhar-me a pronta retirada para evitar agravamento. Ultimamente fui vítima de queda de uma árvore que me produziu intensa e extensa contusão. Nada disso me influiu para que eu deixasse o meu posto[15].
O chefe da Comissão Brasileira, quando escreveu este ofício, a bordo de uma pequena canoa, já estava com sua missão vitoriosa. Pouco antes, atingira as nascentes do Juruá e agora descia o Rio de regresso a Manaus.
Este material histórico e autobiográfico forma um complexo de informações sociologicamente válidas para uma tentativa de interpretação de personalidade e da ação do Coronel Belarmino Mendonça no Juruá. É possível utilizar a História, a biografia e a relação entre as duas com a sociedade para entender as características de certos tempos e de certos espaços, resultando as situações concretas, tal como aconteceu no Juruá e no Purus, dois Rios criadores de fatos, de relações, de símbolos que originaram uma importante fronteira política.
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O Barão do Rio Branco sabia usar os homens em seu verdadeiro lugar. Era uma de suas predisposições psicológicas que, certamente, o levaram a grandes vitórias diplomáticas. E mais: ele sabia fazer História. O historiador por excelência, aquele que estuda História e sabe depois aplicar seus ensinamentos em situações em que participa com intimidade. Aplicar segundo as disposições específicas e necessária inteligência de cada caso.
O vasto acervo de ofícios, cartas, notas pessoais, minutas de próprio punho, artigos de jornais, editoriais que mandava publicar sem o seu nome, em que se lê determinações, reflexões, análises, material existente no Arquivo Histórico do Itamarati, indicam o completo homem de Estado que foi Rio Branco. Sempre inclinado a, primeiro, conhecer a História, e, depois, extrair as lições políticas e sociológicas, procurando aplicá-las nas difíceis questões de limites que ele tão bem resolveu. Universalista, expectador e observador dos dramas da política europeia, essa vivência em intimidades com suas ideias, sua lógica, seu raciocínio preparam o estadista para criar um novo Estado brasileiro, inconfundivelmente seu: a capital Rio Branco - homenagem a si - é o próprio símbolo.
Quando o Itamarati tratou de organizar as Comissões destinadas a explorar geograficamente o Purus e o Juruá, o chanceler Rio Branco deve ter meditado na escolha dos respectivos comissários. Ele precisava de dois homens íntegros, que pelas características de personalidade compusessem o tipo que se exige em expedições semelhantes.
Euclides da Cunha e Belarmino Mendonça eram portadores de um “curriculum”, e, também, de certas predisposições espirituais necessárias ao desempenho da empresa. Euclides, como se sabe, candidatara-se a simples auxiliar da expedição do Alto - Purus, revelando a Oliveira Lima a sua pretensão, que transmitiu a José Veríssimo e este a Domício da Gama, secretário do todo poderoso Barão do Rio Branco. Foi Domício da Gama que marcou a entrevista com o Barão, no chalé Westfália, em Petrópolis, residência de verão do Ministro. E depois de uma palestra com um Euclides acanhado, meio caipira, que começou às nove horas da noite e prolongou-se a madrugada, o autor de “Os Sertões” saiu, surpreso, convidado para chefiar a expedição brasileira.
A promoção súbita de suas pretensões indica a avaliação justa que o Barão do Rio Branco fazia das criaturas humanas. Até aquele, caráter simbólico, weberiano, admite-se na escolha, pois Euclides da Cunha revelara-se nos sertões de Canudos em dotes de energia, destemor, observação e análise, com um valor de autenticidade no trato da paisagem agrestemente tropical, além de um vigoroso senso de nacionalidade e uma altiva independência de atitudes.
Da parte do então Coronel de engenheiros Belarmino Mendonça, escolha pessoal de Rio Branco, que apenas conhecia o seu excelente “curriculum”, tudo se conduziu tranquilamente. “O homem certo para o lugar certo”. O destino pareceu encaminhar seus passos no rumo da missão. Nem a tuberculose estacionária, sob cuidados médicos, o impedira de ir a luta contra os desertos do Juruá. Acometido de beribéri durante a jornada fluvial, escapando de morrer no tombo de uma árvore sob a imposição do regime fluvial, leito seco, paus, salões, queda brusca de temperatura - o fenômeno da friagem - que para os seus fracos pulmões era tão perigoso, o Coronel Belarmino cumpriu adequadamente a missão. Como agente de Governo típico: o militar e o engenheiro, o diplomata e o político. Venceu os grandes percalços que a natureza armou, as emboscadas de índios e as pretensões indevidas do Comissário peruano, que contrariavam as “Instruções” e a própria verdade geográfica e histórica presenciada por ambas as Comissões no Alto - Juruá.
É um militar representativo: ordem e disciplina, rigoroso cumpridor de missão, preocupações, ao lado dos problemas estratégicos, de administrador civil, dentro dos objetivos de seu cargo de Comissário, do qual evoluíram tarefas políticas e diplomáticas. A angústia de preservar a saúde frágil, debilitada com a incidência do beribéri amazônico, talvez pesasse menos do que a firme determinação de ir ao fim de um mandato quase apostólico: demarcar o Rio, fixá-lo em suas origens, produzir o Relatório. Neste ponto há um perfeito encontro dos dois Comissários brasileiros. Viveram uma aventura dramática, cheia de perigos e de conflitos, armada de tensões, e que, finalmente, foi cumprida com extrema competência e absoluto êxito. No Juruá e no Purus.
O Acre, hoje bem definido em suas raízes históricas, políticas e sociais, possui quatro figuras estelares que se constituem personalidades símbolos, por sua atuação criadora, sua presença viva, útil, ativa, na constituição de seu destino: Rio Branco, Plácido de Castro, Euclides da Cunha e Belarmino Mendonça. Eles desenharam o mapa do Acre na comunhão brasileira.
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O Coronel Belarmino Mendonça, assim como o seu colega Euclides da Cunha, no Purus, chegaram a uma região palco de acirradas disputas diplomáticas, e também armadas. No ano precedente, 1904, ocorrera luta entre peruanos que desciam o Rio a procura de atos de posse e habitantes brasileiros nos seringais do Rio Purus. Em Funil, durante o dia 30 de março (1904), até onze horas da manhã de 19 de abril, houve renhido combate provocado por assaltos peruanos.
O dono do seringal Liberdade, José Ferreira de Araújo, reuniu centenas de seringueiros e enfrentou os invasores, que se retiraram.
No alto Juruá o processo, ou tentativa de ocupação de última hora dos peruanos, era o mesmo. As desinteligências entre as Chancelarias peruana e brasileira chegaram a um estágio delicado. O Governo do Peru mantinha posição intransigente, e mandou instalar uma aduana na foz do Rio Amônea, território ocupado, explorado, há muitos anos, por brasileiros.
Para fazer frente a situação o Brasil envia ao Alto - Juruá, sob o comando do Major Cipriano Alcides, uma força de 225 homens do 15ª Batalhão de Infantaria, que estacionara em Manaus. Tanto o Brasil como o Peru fizeram encomenda de armamento alemão. As notas trocadas entre o Barão do Rio Branco e o Ministro do Peru, no Rio de Janeiro, Hermán Velarde, revelavam um desencontro total de pontos de vista.
Em certo momento, Rio Branco dirige-se ao Presidente Rodrigues Alves:
É inteiramente inaceitável (a proposta peruana) e parece zombaria. Ficariam de posse de parte Sul das Prefeituras do Juruá e do Purus e ficariam neutralizadas a parte Norte dessas Prefeituras - e todo a do Acre[16].
E a seriedade dos fatos levou o Presidente Rodrigues Alves a proibir o trânsito de armas no Rio Amazonas e a denunciar o Tratado de Comércio e Navegação subscrito com o Peru, em 10 de outubro de 1891.
Rio Branco procurava aliados na bacia amazônica. A Bolívia, que acabara de assinar o Tratado de Petrópolis, e, também, com problemas limítrofes com o Peru, assegurava, de modo velado, apoio ao Brasil. Com o Equador o Chanceler Brasileiro concluiu um tratado secreto, a 5 de maio de 1904, concordante as partes numa “aliança defensiva” para “prevenir ou repelir, conforme o caso, qualquer agressão da parte do Peru e obstar que este tente ocupar administrativamente quaisquer territórios de que não estiver de posse quando se separou da Espanha e sobre os quais uma ou outra das partes contratantes entenda ter direito”, segundo um dos termos do instrumento[17].
O posto aduaneiro instalado arbitrariamente na foz do Amônea exigia da navegação brasileira, a única do Rio Juruá, pagamento de impostos, direitos, taxas, além de ocorrer o hasteamento do pavilhão do Peru. O Coronel Taumaturgo de Azevedo, prefeito do Departamento do Alto - Juruá, resolveu, então, enviar o Capitão Francisco d’Ávila e Silva, do Exército Brasileiro, acompanhado de dez praças, para entender-se com o major Ramirez Hurtado, Chefe do Destacamento militar e da aduana do Peru na foz do Amônea. O oficial levava uma cópia do “Modus Vivendi”, de 12 de julho de 1904, para convencer os peruanos a subirem o Rio até a foz do Breu, onde, segundo o ajuste diplomático, deveriam estacionar.
Recebido cordialmente pelo major Ramirez Hurtado, houve confraternização entre os soldados dos dois países e promessa de suspender a cobrança de impostos. O oficial peruano alegava não haver recebido de seu Governo a cópia do “Modus Vivendi”. Os acontecimentos se precipitaram em novembro (1904), quando os peruanos intimam o vapor Contreiras a parar e a submeter-se ao fisco, na foz do Amônea, lugar agora chamado de Nuevo Iquitos. O navio arrancou para montante sob uma saraivada de balas.
Sob o comando do Capitão d’Ávila e Silva, um pequeno destacamento militar alcançou, por terra, a foz do Amônea, e exigiu a saída dos peruanos. A resposta foi uma fuzilaria que durou quarenta e oito horas, terminando com o pedido de armistício dos peruanos, que se transferiram para o Breu, depois da entrega de uma carta humano a e cordial do Major Ramirez Hurtado[18].
Foi a única luta armada, em toda a campanha do Acre, em que participaram forças regulares em combate, da parte do Brasil. Eram sempre os seringueiros estabelecidos na região, e na fase de Plácido de Castro seringueiros amestrados por ele nas Artes de Guerra. E o conflito do Amônea assinala o último encontro de armas entre brasileiros e peruanos, tanto no Juruá como no Alto - Purus.
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No ano seguinte (1905) dessas ocorrências e que se efetivou a expedição mista brasileiro-peruana ao Rio Juruá. Os ânimos estavam senão exaltados, pelo menos prevenidos. E a realidade era bem outra daquela que os peruanos pretendiam. O povoamento brasileiro, em todo o Rio Juruá, é maciço, ininterrupto e produtivo. Como no Purus, só nas mais remotas partes do alto-Rio apareciam os primeiros vestígios de “caucheros” peruanos.
O Coronel Belarmino Mendonça observa que “os núcleos senhoriais dos seringueiros, mais geralmente conhecidos por barracões, constituídos por agrupamentos de casas, tomam às vezes as proporções de pequenos povoados e pontilham as várzeas e os firmes, atestando o povoamento regional”. O Comissário brasileiro, no baixo-Juruá, contou setenta e um desses agrupamentos, na margem direita, e oitenta na margem esquerda. E prossegue: “são em número de oitenta e nove seringais à margem direita do médio-Juruá e setenta e três na margem esquerda”. A estatística está impressa em seu Relatório.
A sucessão de propriedades brasileiras naturalmente persuadia o comissário peruano de que eram frágeis as alegações do governo de seu país. Mas, a 15 de outubro (1905), D. Nuno Leon apresentou ao seu colega certas contestações fundamentadas num livreto de D. Manuel Pablo Vilanueva, Fronteras de Loreto. Era um trabalho já conhecido anteriormente. Uma literatura de fatos irreais, como a da existência de um “pueblo de caucheros” na foz do Breu, a pretensas ameaças brasileiras contra as atividades dos peruanos “em quase todo o rio”. Criava a ficção do povoado “Nuevo Iquitos”, desde 1898, quando o próprio comissário D. Nuno Leon, em sua reclamação de 15 de outubro ao Coronel Belarmino Mendonça, só apontou “tres casarios situados en la margen izquierda del Juruá, frente a la boca del Breu[19].
O Coronel Belarmino Mendonça não concordou com essa tese de súbito povoamento peruano, dirigindo-se ao seu colega em ofício de 25 de outubro (1905):
Ao primeiro item teria a opor que em nenhum dos três pontos existem casarios ou multidão de casas, mas apenas alguns ranchos de palha. Não são moradas fixas de patrões nem de “caucheros” peruanos que constituem população adventícia pela razão imperiosa de somente o caucho os atrair a sua extração feita a custa da vida da árvore (...) Nem famílias habitam (...) Na zona descrita, notadamente nas duas margens do Breu, existem 54 brasileiros com residência fixa, ocupados na extração da borracha e no cultivo de alguns cereais (...) desde fins de 1897[20].
E ainda explica o Comissário brasileiro, em seu Relatório:
No dia 15 de novembro (1905), D. Nuno Leon tinha aventado pela primeira vez a proposição de que, mudando o Juruá o nome para Torolluc, na confluência do Piqueyacu, estes dois Rios eram forçosamente os formadores cogitados pelas “Instruções”.
Mais uma vez D. Nuno Leon baseava-se nas teses de Manuel Pablo Villanueva no folheto “Fronteras de Loreto”. Mas o Coronel Belarmino Mendonça persuadiu seu colega a prosseguir Rio acima para localizar as verdadeiras nascentes do Juruá. Assim, a 24 de novembro alcançaram o Paxiuba, principal formador do Juruá. E registrou o Coronel Belarmino Mendonça:
Sua nascente, a do Paxiuba, principal formador do Juruá, e um olho d’água que surge debaixo de uma pedra superposta de 40 a 50 metros do fundo do vale e quase no topo de um cerro de cerca de 453 metros de altura sobre o nível do mar. A esta última colina a Comissão Mista convencionou dar o nome de Cerro das Mercês, por ser o da Virgem do dia 24 em que tomaram as operações astronômicas para fixar sua posição geográfica (...). De comum acordo a Comissão Peruana deu ao galho vindo do Sul a denominação de Salambô, e a brasileira a de Paxiuba (depois reconhecendo o principal) pela abundância de palmeiras do mesmo nome nas suas margens[21].
Estavam concluídas as operações técnicas de reconhecimento geográfico do caudal. O Juruá, longo e tortuoso curso, fora medido de sua foz às nascentes, numa extensão de 3.283 km, percurso cumprido em sete meses e dez dias - de Manaus ao Cerro das Mercês. Satisfizeram-se as “Instruções” depois de uma penosa subida do Rio, em pleno verão, e agora, mês de novembro, as primeiras águas dos repiquetes do inverno auxiliariam o regresso: Em dois meses de baixada, alcançaram Manaus, no dia 23 de janeiro de 1905, a Comissão Brasileira, a 24, a Comissão Peruana.
Rio Branco e cientificado em telegrama do Coronel Belarmino Mendonera:
Tenho a satisfação e a honra de participar a V. Exciª a terminação das explorações do Juruá, ultimando-se na foz as observações de retorno, para aqui em Manaus se encerrar o ciclo, foi levantado expeditamente todo o Juruá, Piqueyacu, Vacapista até os varadouros Cohenhua e Beches, parte do Metaleiro, Tejo, Arara e Amônea até o varadouro para Tamoya, na expansão total de quatro mil quilômetros aproximadamente e determinadas as coordenadas geográficas de dezessete pontos. Os percursos em canoas foram extensos. Muito mais árduos foram os feitos a pé com provisões nas costas. Caminhamos mais de duzentos quilômetros. Com abnegação todos suportamos perigos e moléstias. Reinou perfeita confraternização entre brasileiros e peruanos[22].
O Coronel Belarmino Mendonça chegara a Manaus muito enfraquecido. A avitaminose, doença muito comum na Amazônia daquela época, o atormentara durante a viagem, mas ele próprio informa ao Barão que apresentava sinais de restabelecimento:
Tenho experimentado tão seguidas melhoras do beribéri com o tratamento homeopático que me foi prescrito pelo Sr. Capitão-de-corveta Lessa Bastos[23].
O filho, porém, não teve a mesma sorte: o beribéri veio sob a forma pior, o da paralisação das pernas, e o Coronel Belarmino teve de mandá-lo de volta ao Rio de Janeiro.
O Comissário Brasileiro desta vez instalou-se numa casa da Rua Luiz Antony, 63, onde ele e D. Nuno Leon trabalharam na redação da Memória, e o próprio Coronel Belarmino escreveu seu Relatório. O brasileiro redigia a Memória da Comissão Mista e o peruano transpunha-a para o espanhol, num clima de entendimento. Alguns dias de trabalho eis que surge a primeira desinteligência, que, na verdade, correspondia a assunto já discutido no Alto - Juruá, em torno de descabidas pretensões peruanas.
O fato e narrado pelo Coronel Belarmino Mendonça em seu Relatório:
(...) Decorridos poucos dias em Manaus em vez da versão simplesmente do que fora minutado de acordo com o convencionado, o Sr. Comissário peruano em pessoa apresentou copiosas declarações de fantasiado povoamento peruano desde dois anos atrás do médio e Alto - Juruá, no Tarauacá e no Envira, intercalados no meio da tradução a seu cargo. Impugnando o inopinado enxerto, por discordância dos fatos e alheio às cogitações prescritas em nossas instruções, prevaleceu a simples testificação, única que a Comissão podia dar, de existência das moradas dos “caucheiros” peruanas no Breu, Vacapista e Piqueyacu, aliás em termos mais concisos do que os expressos na minuta enviada. Desistiu o Sr. Comissário peruano até mesmo de consignação dos nomes Puerto Pardo, Puerto Portillo e Resvaladero que atribuía a essas moradas pelos fundamentos apontados pelo chefe brasileiro de não serem usadas, nem talvez conhecidas pelos moradores, em geral a elas estranhos, e de fácil cambio com a frequente substituição dos adventicios ocupantes.
As ponderações apresentadas pelo Coronel Belarmino induziram D. Nuno Leon a desistir da inclusão desse enxerto na Memória da Comissão Mista. Mais tarde ele volta ao assunto, como esclarece no Relatório o Comissário brasileiro:
A noite, porém, sem proceder solicitação ou aviso para conferência, apresentasse na residência do Comissário brasileiro e em tom acalorado renova a exigência da inclusão dos nomes que já havia retirado, com o novo fundamento de se acharem inscritos nos mapas arranjados em Iquitos. Pronunciou-se então o chefe brasileiro contra esses mapas clandestinos, violadores das instruções.
O fato foi levado ao conhecimento do Barão que expediu suas instruções:
Queira declarar ao Comissário peruano que é inteiramente inadmissível a imposição de nomes e Rios e a outros acidentes geográficos como ele propõe. As instruções combinadas pelos dois países não dão aos comissários essa autoridade e as instruções que remeti aos dois comissários do Alto - Purus e do Alto - Juruá proíbem expressamente a imposição de nomes de pessoas vivas ou mortas e de datas históricas. Portanto, V. Exciª não deve assumir a isso nem mesmo fazendo qualquer ressalva. Se ele entender que pode recompor os trabalhos que rompa sob sua responsabilidade[24].
Afinal, prevaleceu o ponto de vista brasileiro, que era o das “Instruções”, documento sancionado pelos dois países. E a 12 de maio de 1906, os dois Comissários assinaram a Memória da Comissão Mista, redigida bilíngue, pondo termo a todas as questões invocadas por D. Nuno Leon. O documento transmite a exata posição dos estabelecimentos brasileiros no Juruá, e, no alto Rio, a passagem aleatória dos caucheiros peruanos, além de conter as posições astronômicas do Juruá, da foz as nascentes.
O Rio, prova-se incontestavelmente, estava quase todo povoado por brasileiros estabelecidos na produção de borracha. Os peruanos percorriam as cabeceiras, a procura de caucho, que é uma exploração predatória e não fixa o homem à terra. A árvore do caucho é abatida, extrai-se a goma, e o caucheiro prossegue em suas andanças na floresta, à procura de novas espécies. A área também era atravessada por varadouros que levavam os peruanos ao vale do Rio Ucaiale.
Em fins de abril, o Governo Federal promove, por merecimento, a General-de-Brigada, o comissário Belarmino Mendonça, que, junto aos membros de sua Comissão, embarca para o Rio de Janeiro, a bordo do Manaus, no dia 27 de maio de 1906, chegando a capital do país a 12 de junho.
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A Memória da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Rio Juruá e o Relatório do Comissário Brasileiro agora são editados sob o título de Reconhecimento do Rio Juruá, é livro de experiência concretizada em transposição de planos de uma ordem geográfica sociológica, política e diplomática. Sua ordenação temporal e sua substancia histórica coexistem e permanecem para restauração de um passado que se revelou com força criadora do hoje Estado do Acre, na área do Juruá, Reconhecimento do Rio Juruá vem ocupar posição de relevo na bibliografia amazônica. Não só porque se reveste do caráter de trabalho voltado para problemas especificamente regionais, como, também, porque se situa na melhor tradição na literatura desse gênero, que nos vem de uma saga de anotadores e intérpretes de naturezas e de situações brasileiras, desde o século XVI.
Essa ressurreição cultural clarifica o processo histórico, social, político e diplomático no vale do Juruá, um tanto esquecido, ou vivendo a sombra de outro processo mais ruidoso, mais notório, mais estudado, mais imanente e transcendente em sua essência política, em seu modo de ser violento, épico, preponderante. Tal foi o processo da formação histórica do vale do Rio Acre, onde as insurreições armadas, a posse legal da Bolívia nos territórios já totalmente ocupados por brasileiros, e o conflito de armas final, sob o comando militar de Plácido de Castro, permitiram a Rio Branco intervir diplomaticamente, e, com gênio político, alcançar a paz e a incorporação do território ao Brasil, mediante compensações financeiras e troca de territórios.
Era uma exigência da História do Acre a reedição deste magnífico e até então esquecido trabalho do General Belarmino Mendonça. Em meu livro “Formação Histórica do Acre” eu tivera oportunidade de destacar sua importância para a configuração geográfica do mapa do Acre e o estudo da história social e cultural desenvolvida naqueles tempos heróicos de desbravamento e conquista de espaços produtores de borracha. Tempos experimentalmente e existencialmente vividos pelo homem brasileiro, em especial, homem do Nordeste brasileiro.
O livro do General Belarmino Mendonça e uma literatura sem fervores estilísticos, mas expressivamente empreendedora de notícias e de valores inspirados no realismo do meio - o geográfico e o social. Qualquer coisa de cientifico na exatidão e no austero com que apreende e apresenta as realidades do Juruá, sem nenhuma exteriorização pictórica, ou caracterização exótica, como ele, o próprio autor, é: seco, angular, grave. Basta examinarmos o sumário do livro para constatar a pluralidade de dados, de situações de fatos que proporcionaram ao Barão do Rio Branco os elementos definitivos, capazes de estabelecer o acordo com o Peru assinado a 12 de setembro de 1909, com data de 8 de setembro: “Tratado entre o Brasil e o Peru, completando a determinação das fronteiras entre os dois países e estabelecendo princípios gerais sobre o seu comercio e navegação na bacia do Amazonas”. Como ficou registrado nos anais diplomáticos dos dois países.
O Barão do Rio Branco já intuía a validade, para o futuro, desses relatórios - o de Belarmino Mendonça e o de Euclides da Cunha - que trazem o selo, ou a tradição luso-tropical dos documentos que definiram os sertões brasileiros, o extremo Oeste, a própria Amazônia, as regiões Meridionais do Brasil, da autoria de expressivos nomes da ciência ou da administração, que a serviço da coroa portuguesa enriqueceram de conhecimentos os paços de Lisboa. Tradição de um Garcia D’Orta, de um Fernão Mendes Pinto, revelando Áfricas e Ásias, transposta para o Brasil: um Gabriel Soares de Souza, um Pero Magalhães de Gandavo, um Manuel de Nóbrega, um Antonio Vieira, um Alexandre Rodrigues Ferreira, um Luiz Albuquerque e Cáceres, um Frei João de São José, um Frei Cristóvão de Lisboa. Já na Amazônia brasileira, exploradores como Barbosa Rodrigues, Silva Coutinho, Ferreira Labrea, Torquato Tapajós, Euclides da Cunha, e tantos outros. Belarmino Mendonça junta-se a eles, pioneiros da curiosidade e da compreensão de naturezas virgens, são os nossos devassadores e memorialistas de desertos.
Quando o Coronel Belarmino Mendonça descia o Juruá, encontrou-se com o Prefeito do Departamento do Alto - Juruá, Coronel Taumaturgo de Azevedo que lhe pediu cópia de todos os trabalhos da Comissão. No próprio telegrama de Belarmino Mendonça, em que o assunto é transmitido ao Ministro das Relações Exteriores, escreveu o Barão do Rio Branco:
Responder: o relatório dessa Comissão Mista será aqui impresso com uma redução da planta levantada. O relatório dos Srs. Euclides da Cunha e Bueñano sobre o reconhecimento do Alto - Purus já foi entregue à Imprensa Nacional. Ao Sr. Prefeito do Alto - Juruá serão remetidos esses trabalhos logo que estiverem publicados e isto torna dispensável a remessa das informações que ele lhe pedia[25].
O Barão e sua notável consciência histórica e política. É assim que podemos agora dispor de duas importantes obras reeditadas tão oportunamente pela Fundação Cultural do Acre, no 80° aniversário da presença dessas duas Comissões técnicas na Amazônia, decidindo sobre o destino de terras acreanas.
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Tenho em meu espírito eternos olhares que são anseios de substâncias infantis no vale do Rio Juruá: fui criança no Rio Tarauacá, onde sobrevivem e pulsam os mesmos desenhos de geografias, os mesmos contornos de paisagem do Juruá. O filho fluvial, o maior dos irmãos fluviais, imita o pai Juruá nas formas límpidas da natureza. Suave é a paisagem de praias longas e claras, durante o verão, as florestas parecem mais verdes, os lagos e os igapós com um toque misterioso e tímido entre colunas de imensidade vegetal. Os igarapés de águas límpidas tateiam caminhos, banhando-se em verdes compactos de selva, onde flutuam seus sussurros. Uma paisagem toda ausente do Rio Acre, bem mais tarde meu conhecido: um grande canal parece prender o homem entre barrancos íngremes, as águas corredias somente constroem aquele sombrio caminho serpeante, que sempre se afunda e silencia sobre panoramas que engenho e arte de outras águas, noutro vale acreano, se prezam a mostrar na terra amenizada.
O vale Juruá-Tarauacá não perde nunca minha infantil confiança e a paciente recordação neste espectro simbólico e sentimental: como era verde o meu vale, e nele volto, sempre, a me achar em liberdades. (TOCANTINS)
 

[1]     Telegrama, de 20.01.1903, ao Ministro Plenipotenciário do Brasil em Lima (Arquivo Histórico do Itamarati).
[2]     Dados extraídos da Fé de Ofício do General Belarmino Mendonça (Arquivo do Exército).
[3]     Carta ao Barão do Rio Branco, em 14 de janeiro de 1905 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[4]     Documento no Arquivo Histórico do Itamarati.
[5]     Idem.
[6]     Idem.
[7]     José Moreira Brandão Castelo Branco, “Peruanos na região acreana” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 344, julho-setembro, 1959.
[8]     General Belarmino Mendonça (Relatório).
[9]     Idem.
[10]    Ofício da Foz do Amônea, em 26 de dezembro de 1905 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[11]    Documento do Arquivo Histórico do Itamarati.
[12]    Oficio ao Barão do Rio Branco, bordo de canoa Quixadá, a montante de Pirapora, no Alto - Juruá, 18 de julho de 1905 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[13]    Arquivo Histórico do Itamarati.
[14]    Telegrama do Barão do Rio Branco ao Coronel Belarmino Mendonça, em 11 de outubro de 1905, por intermédio do General Bittencourt, delegado federal no Acre, em Manaus (Arquivo Histórico do Itamarati).
[15]    Ofício do Coronel Belarmino Mendonça ao Barão do Rio Branco, Amônea, 26 de dezembro de 1905 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[16]    Telegrama cifrado de Petrópolis, em 20 de maio de 1904 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[17]    Documento no Arquivo Histórico do Itamarati. O tratado não precisou ser cumprido, nem foi aprovado pelo Congresso Nacional.
[18]    Carta ao Coronel Taumaturgo de Azevedo, em 28.9.1904 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[19]    General Belarmino Mendonça (Relatório).
[20]    Idem.
[21]    General Belarmino Mendonça (Relatório).
[22]    Telegrama de 29 de janeiro de 1906, de Manaus (Arquivo Histórico do Itamarati).
[23]    Carta ao Barão do Rio Branco, Manaus, 9 de fevereiro de 1906 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[24]   Telegrama de 18 de maio de 1906 (Arquivo Histórico do Itamarati).
[25]    Despacho do próprio punho do Barão no ofício do Coronel Belarmino Mendonça, em Manaus, 25 de janeiro de 1906 (Arquivo Histórico do Itamarati).