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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A Magia do Camaquã

A Magia do Camaquã



Poema da Água
Raul Machado

A água também tem a sua infância
- quando apenas riacho cantarola
brinca de roda nos redemoinhos
salta os seixos que encontra
e faz apostas de corrida - travessa -
por entre as grotas e peraus
e arranca as flores que a marginam
para engrinaldar a cabeleira solta
sobre o leito revolto das areias...

-  Granja do Valente
O Amigo Pedro Auso Cardoso da Rosa estava programando uma descida pelas águas do Rio Camaquã, com direito a acampamento e tudo mais, infelizmente contratempos de toda a ordem forçaram-me a adiar o evento. Vim para Bagé com o propósito de dar continuidade ao meu treinamento na Granja do Valente, de propriedade da Família Schiefelbein, mas com a firme determinação de conhecer o Rio Camaquã. Na barragem o ninhal de maguaris, cheio de vida em setembro, estava abandonado, apenas vestígios de cascas de ovos sinalizavam sua eclosão e a passagem das majestosas aves pela área.

Soneto
Augusto dos Anjos
(Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos
2 fevereiro 1911)



Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto lubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronia

Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinérgia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!


Porção de minha plásmica substância,
Em que logar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!...

Ah! Possas tu dormir feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!



Apenas o grande ninho do João Grande continuava ocupado como se a ave ainda estivesse chocando, cuidadosamente consegui me aproximar e fotografar o único ovo que restara dos três que examinara em setembro. Peguei o ovo, curioso, pois o período de eclosão desde há muito se passara. Confirmando as expectativas verifiquei que o mesmo estava gorado e o retirei do ninho. Nos dias seguintes verifiquei que a zelosa mãe não estava mais no seu ninho liberada que fora do compromisso de chocar a calcária câmara mortuária. Se a pobre ave soubesse o que estava chocando talvez fosse capaz de entender a desconsolada e trágica essência da poesia de Augusto dos Anjos.

A barragem continuava me surpreendendo, um casal de marrecas pés-vermelhos apresentava um comportamento estranho como se estivessem com dificuldades para voar, se aproximando bastante do caiaque sem demonstrar medo. Depois de algum tempo pude verificar a razão do bizarro comportamento, os pais tentavam desviar minha atenção de três marrequinhas que mergulhavam procurando esconder-se de minhas vistas. Uma delas, mais próxima da margem mergulhava comicamente apenas a cabeça deixando a cauda de fora, me aproximei mais um pouco para fotografá-la, e a pequenina mergulhou completamente acabando por se emaranhar nas finas algas. Agarrei-a e a desembaracei da fluída e verdolenga armadilha e ao soltá-la ela nadou rapidamente, chegando a correr sobre as águas, na direção dos pais que grasnavam freneticamente.

  Rio Camaquã

A Rosângela me apresentou o Dr. Diogo Madruga Duarte um vaqueano preservacionista e irmãos das águas. O Dr. Madruga coordena periódicas descidas no Rio Camaquã e me repassou algumas importantes dicas a respeito do trajeto que eu planejara para o sábado, sugerindo que eu partisse do Passo dos Enforcados (30°52’54,4” S / 53°35’53,3” O) e não da Ponte sobre o Rio Camaquã (30°51’46,1” S / 53°36’59,4” O) cujo acesso era praticamente impraticável. Disse que pretendia ir até o Passo do Cação (30°57’30,4” S / 53°28’56,6” O) onde a Rosângela me aguardaria para pernoitarmos na Fazenda Remanso da amiga Rosi Medeiros. Um deslocamento de aproximadamente 40 quilômetros que, graças à velocidade da correnteza do Rio poderia ser vencido em seis horas de navegação.

Parti do Passo dos Enforcados às 08h30 de sábado. O estreito canal fluía espremido por grandes paredões de arenito debruçados majestosamente sobre o Rio e que vez por outra se apresentavam somente em uma das margens. O arenito é o resultado da petrificação de partículas de areia que misturadas com minerais agregadores, como o quartzo e a calcita, foram submetidas à grande pressão, durante séculos. Imerso nas telúricas entranhas eu podia admirar as belas estratificações formadas pela alternância de camadas sedimentares com granulação e cores diferentes. As belas camadas de seixos de tamanho diferentes permitiam que eu comparasse os aspectos geológicos do erodido terreno atual com os do longínquo pretérito. No leito a ação das águas diluía a ação dos tempos, separando novamente as antigas partículas cimentadas em longínquas eras, permitindo que a imaginação vagasse pelo formoso túnel do tempo camaquense. As camadas sedimentares, qual páginas amarelecidas do livro da mãe Terra, contavam uma história de transformações mescladas de cataclismos radicais e pachorrentas acomodações ancestrais.

As belas formações moldadas pelas forças da natureza através dos tempos me encantavam e eu me sentia imensamente feliz em poder contemplar estas verdadeiras esculturas criadas pelas mãos do Grande Arquiteto do Universo. A diversidade de imagens, as nítidas colorações das camadas sedimentares, os seixos incrustados no arenito, o canto das aves, produziam um efeito transcendental em todo o meu ser, eu empreendera uma cruzada mágica.

Logo que iniciei minha jornada dois biguás me serviram de precursores. Assustados com a proximidade do caiaque voavam até a próxima curva do serpenteante manancial e esperavam que eu me aproximasse para repetir o gesto novamente. Fui encontrando outros grupos pelo caminho e quando cheguei a meu destino eram nove, as aves que me antecediam. Cruzei, no trajeto, por cinco veados-campeiros (Ozotocerus bezoarticus) que bebiam placidamente as águas do Camaquã e se afastaram vagarosamente ao notar minha presença. Dois grupos de capivaras, não foram tão discretos assim, atirando-se ruidosamente nas águas. Em um dos grupos pude perceber a presença de um grande macho, além do tamanho sua identificação é facilitada pela enorme glândula que possui entre o focinho e a testa. O cheiro forte e característico que dela emana serve para identificar as fêmeas conquistadas, seus filhotes e demarcar seu território. A pequena travessia foi uma das mais belas que empreendi até hoje e agradeço a todos que a tornaram possível e, em especial, minha cara Rosângela Schardosim.




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