MAPA

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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Laguna dos “Patos”

Os Lusíadas
(Luís Vaz de Camões)
Canto II – 20

Já na água erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas, branca escuma;
Cloto eo’o peito corta e atravessa
Com mais furor o Mar do que costuma.
Salta Nise, Nerine se arremessa,
Por cima da água crespa, em força suma.
Abrem caminho as ondas encurvadas,
De temor das Nereidas apressadas.

A origem do nome da Laguna dos Patos é, por demais, contraditória. A literatura do século XVI vincula o seu nome às aves palmípedes e a partir do século XVII faz alusão aos Índios Patos, como eram chamados os Carijós que povoavam a zona litorânea.

Nas minhas Travessias pela Laguna dos Patos tenho encontrado diversos Capororocas, Patos-do-mato (também conhecido como pato-crioulo, pato-bravo, cairina, pato-argentino, pato-selvagem ou pato-mudo), biguás (também chamado corvo-marinho, pata-d'água, biguaúna, imbiuá, mergulhão e miuá) e outros tantos palmípedes que povoam nossas lagunas litorâneas e que podem ter sido os responsáveis pelo batismo da Laguna dos Patos.

Capororoca (Coscoroba coscoroba): possui plumagem branca com a ponta das asas negras, o bico e os pés são vermelhos. O capororoca parece mais um ganso, mas os biólogos o classificam como cisne tendo em vista seu grande porte. Encontrados desde a Patagônia até o Uruguai, Paraguai e Brasil, onde pequenos bandos habitam lagunas, pântanos e banhados próximos ao litoral Gaúcho.

Capororoca (Coscoroba coscoroba)
Pato-do-mato (Cairina moschata): vive em pequenos grupos, de até uma dúzia. Pousa sobre árvores desfolhadas para observar os arredores, descansar ou dormir. Faz seus ninhos nos ocos das árvores e em palmeiras mortas próximos à água. Raramente avistado nas proximidades da Laguna.

Pato-do-mato (Cairina moschata)
Biguá (Phalacrocorax brasilianus): mergulha para pescar e para facilitar a imersão elimina o ar que fica normalmente entre as penas. É visto em grandes bandos voando rente à água, em formação em “V”, sendo essas revoadas semelhantes à dos patos, fazendo com que sejam confundidos como tais.

Biguá (Phalacrocorax brasilianus)
Não creio que tenha sido uma determinada espécie o que mais chamou a atenção dos cronistas pretéritos para nominar nossos acidentes geográficos e sim a abundância destas aves. A narrativa de Francisco Lopez de Camará mencionando “patos negros sin pluma, y con el pico curvo”, nos leva a considerar o biguá que possui o bico encurvado e que depois de mergulhar parece mesmo não possuir penas, além disso, até hoje os intermináveis e numerosos bandos impressionam a quem os avista.

Outros pesquisadores, no entanto, defendem a tese de que o nome da Laguna teria sua origem nos tais Índios Patos, o que acho menos plausível.

O biógrafo, historiador, ensaísta, lexicógrafo, romancista e professor brasileiro Afonso d’Escragnolle Taunay, nascido em Nossa Senhora do Desterro (Florianópolis), SC, em 11 de julho de 1876 narra na sua “História Geral Bandeiras Paulistas”, editada em 1928, pela Typographia Ideal, que:

Um grupo de Índios Carijós que vivia na região da Laguna, em SC, conhecidos no Brasil como Patos.

O historiador brasileiro Capitão-tenente Lucas Alexandre Boiteux nascido em Nova Trento, SC, no dia 23 de outubro de 1881, membro da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Catarinense de Letras, faz um relato esclarecedor nas suas “Notas para a História Catarinense”, editado em 1912, pela Livraria Moderna, que:

A grande tribo dos Carijós limitava-se ao Nordeste com os Tupinikins, ao Norte com os Guayanás, a Noroeste com os Cai-acangs, a Oeste com os Guandos, e finalmente ao Sul com os Tapes. Querem alguns historiadores que a nossa costa tivesse sido também habitada por uma tribo chamada – Patos. Os nossos cronistas antigos não se referem a ela. A confusão provém de terem sido denominados - dos Patos - a Bahia e Porto de Santa Catarina, que lá habitavam, diziam - os Índios dos Patos, e daí os Índios Patos, os Patos, etc. O Padre Simão de Vasconcellos nos explica que esta tribo era a mesma dos Carijós e que assim a denominavam porque habitavam a costa.

Sabe-se, através de sítios arqueológicos e sambaquis, que os Índios Carijós, do grupo Tupi-guarani, habitavam o litoral Sul do país há aproximadamente 4.000 anos, e que alguns de seus membros domesticavam o Pato-do-mato, o que poderia ter levado os europeus a denominá-los de Índios dos Patos. O fato de alguns pesquisadores, menos informados, vincularem ao nome de Patos o fato destes, supostamente, possuírem pés grandes tem uma explicação lógica tendo em vista a confusão entre Patos e Patagones (Patagões). Vamos rememorar.

Fernão de Magalhães, servindo ao Rei de Espanha, ao realizar a primeira viagem de circum-navegação pela Terra, foi o primeiro europeu a atravessar o Estreito de Magalhães, batizado com o seu nome, e a navegar o Oceano Pacífico. Ao desembarcar no extremo Sul da América Latina, Magalhães encontrou a região povoada pelos “Tehuelches”, caçadores nômades que utilizavam couros de Guanaco para se protegerem do frio. Os Tehuelches cobriam os pés com as mesmas peles aparentando ter os pés grandes. Como a palavra “pata”, significa “perna” ou mesmo “”, no espanhol coloquial, esses nativos de grandes “patas” foram denominados, então, de Patagões e sua região de Patagônia.

Guanaco (Lama guanicoe): mamífero ruminante semelhante às lhamas (Lama glama). Alcança cerca de 1 a 1,25m de altura nas espáduas. O pelo é longo e macio, castanho-avermelhado em cima, e branco embaixo. Os guanacos vivem em grupos nas montanhas e planícies e, outrora vagavam em grandes bandos. O lhama e a alpaca (Vicugna pacos) da América do Sul são descendentes do guanaco.

O marinheiro, geógrafo e escritor italiano Antonio Pigafetta nascido em Vicenza, Itália, em 1491, pagou expressiva quantia para acompanhar Fernão de Magalhães em sua viagem. Pigafetta foi o cronista da viagem, e um dos dezoito homens que logrou retornar à Espanha, com vida, em 1522, depois de completar a circum-navegação, sob o comando de Juan Sebastián Elcano, após a morte de Magalhães. Pigafetta assim mencionou seu encontro com os nativos da patagônia:

Um dia, de repente viu um homem nu, de estatura gigantesca, na margem do porto, dançando, cantando, e jogando terra sobre a cabeça. O Comandante-geral enviou um de nossos homens até o gigante, para que ele pudesse interpretar nossas ações como um sinal de paz. Tendo feito isso, o homem levou o gigante para uma ilhota onde o Capitão-general estava esperando. Quando o gigante se aproximou do Capitão-geral, ele maravilhou-se, e fez sinais com um dedo levantado para cima, acreditando que o mesmo tinha vindo do céu. Ele era tão alto que um de nossos homens, de estatura mediana, só lhe atingia a cintura, e ele era bem proporcionado... Em 1766, um boato vazou ao retornar à Grã-Bretanha que a tripulação do HMS Dolphin, capitaneada por Commodore John Byron, tinha visto uma tribo de nativos da Patagônia com 9 pés de altura (2,74m), quando passaram por lá em sua circunavegação do globo. No entanto, quando uma recém-editada revisão dessa viagem saiu em 1773, os patagônios foram registrados como sendo 6 pés e 6 polegadas de altura (1,98m); enquanto a estatura média de um europeu na época era de 1,68m.

O médico e historiador brasileiro Alexandre José de Mello Moraes, nascido em Maceió, AL, no dia 23 de julho de 1816, relatou na sua “Corographia Histórica, chronographica, genealógica, nobiliária, e política do Império do Brazil”, editada pela Typographia Americana, em 1858, que:

(...) Magalhães dera o nome de Patagões, aos habitantes das terras do Sul da América conhecidos pelos outros gentios pelo nome de Morcas, por terem os pés como patos, e estarem envolvidos em pele de um animal, que parecia ter cabeça e orelhas grandes, como mula, com corpo de camelo, e cauda de cavalo; e acrescenta mais, que os Patagões, que estiveram a bordo eram gigantes, e que um homem de estatura ordinária chegava-lhe com a cabeça à cintura. Tudo isto é completamente falso, ou exagerado. (...) a pele de animal com que se cobria o Patagônio era de Lhamas do Peru ou do Chile, e das Cordilheiras do Estreito de Magalhães; e os tais gigantes, nunca tiveram a estatura notada por Pigafetta: mas, todavia são homens mui altos, chegando a seis pés e três polegadas inglesas o mais robusto e corpulento, que se tem encontrado nestes últimos tempos; e é provável, que desde o ano de 1518 ou 1519 até agora, esta raça de homens da natureza não tenha degenerado.

A revista do Museu Paulista publicou interessante artigo a respeito do tema em questão em 1907.

REVISTA DO MUSEU PAULISTA

Publicada por Rodolpho von Ihering

Diretor Interino do Museu Paulista

Volume VII

S. PAULO

Typ. Cardozo, Filho & Ciª

35, Rua Direita, 35

1907


Os Índios Patos e o nome da Lagoa dos Patos
pelo Dr. Hermann von Ihering

Tendo vivido por muitos anos à margem da Lagoa dos Patos e publicado sobre ela dois estudos, liguei interesse especial ao nome desta Lagoa e por fim adotei a opinião de que este nome não lhe provinha das aves aquáticas denominadas “Patos”, mas de uma tribo de Índios, aliás, pouco conhecida, dos Patos. Esta opinião foi combatida por Alfredo F. Rodrigues no seu artigo “O nome de Lagoa dos Patos” declarando ele imaginária a dita tribo dos Patos.

Pretendendo em seguida tratar por extenso do assunto, reproduzo aqui a maior parte do referido artigo do Snr. Alfredo F. Rodrigues.

Com referência à ideia de que a Lagoa dos Patos tomou o nome de uma tribo de Índios, que habitara em suas margens, ele diz o seguinte:

O erro data de Ayres de Casal, ou pelo menos foi ele que o vulgarizou, pela notoriedade que alcançou a sua “Chorographia Brazileira”. Diz ele que: a Lagoa dos Patos tomou o nome de uma nação hoje desconhecida.

Referindo-se ao canal entre a ilha de Santa Catarina e o continente, diz também:

Rio dos Patos lhe chamavam os primeiros descobridores, porque servia de limite entre os Índios deste nome que se estendiam até S. Pedro e os Carijós para o Norte até Cananéia.

Contra esta afirmativa foi o primeiro a protestar o Visconde de S. Leopoldo, nos “Annaes da Província de S. Pedro”, citando a opinião do Padre Simão de Vasconcellos:

A origem deste apelido esquadrinhou e nos transmitiu o Padre Simão de Vasconcellos, que procedeu de uma armada espanhola, que, em viagem para o Rio da Prata, 1554, obrigada por temporais, arribou à deserta ilha denominada ao depois de Santa Catarina e deixara ali alguns patos que, procriando maravilhosamente, se foram espalhando em copiosíssimos bandos por todo aquele litoral; e foi a causa donde a lagoa toda aquela terra se chamavam dos Patos e até hoje lhes dura este nome.

Em nota acrescenta ainda:

Nestes pontos de pura tradição, inclino-me a seguir antes o Padre Vasconcellos, que, provincial e cronista da Companhia de Jesus no Brasil, escrevendo na Bahia, pelos anos de 1663, viveu mais próximo aos fatos e teve mais proporções de averiguá-los do que o Padre Casal na “Chorographia Brasileira” que, aliás, merecendo grande conceito no que escreveu das Províncias do Norte, que examinou ocularmente, não passando do Rio de Janeiro para o Sul, escreveu por meras informações; por isso não é muito que claudicasse a ponto de adicionar Províncias ao Império do Brasil que não lhe pertenciam, e entre outras cousas mais, dando existência a uma Nação dos Patos de que não se encontram os mínimos vestígios. Vide a enumeração que faz das Nações Índias o mesmo Padre Vasconcellos nas Notícias antecedentes das cousas do Brasil, n° 151 e 152.

A mesma versão se encontra no Santuário Mariano, crônica escrita pelos jesuítas, cujo primeiro volume se publicou em 1707, aparecendo o último em 1723:

Ilha de Santa Catarina — Patos — Cobrem estas aves as praias e terras da beira-mar, por distância de 50 léguas e mais. São os mesmos da Europa. Ali os soltaram uns espanhóis que faziam viagem para o Rio da Prata em 1554.

Enganaram-se na data, porém, tanto o Visconde de S. Leopoldo como os dois cronistas jesuítas, pois que aí já existiam patos muitos anos antes, sendo conhecidos por este nome diversos lugares na costa desde Santa Catarina até o Rio da Prata.

De fato, João Dias de Solis, chegando, em princípios de 1516, à Ilha de Santa Catarina, deu-lhe o nome de Ilha dos Patos; e na embocadura do Rio da Prata, denominou Rio dos Patos a um arroio entre 35° e 34 1/3°. Não existe o roteiro da viagem de Solis, por isso não se pode precisar o motivo por que ele escolheu o nome Patos para esses dois lugares.

Pode-se, porém, afirmar que não o tirou de uma tribo de Índios, pois que nenhum dos historiadores do século XVI, que se referem à sua viagem (Oviedo, Guevara e Herrera, 1535, 1552 e 1601) faz menção de tais Índios, citando pelo contrário os Charruas e outros. Devia, portanto, provir o nome da grande quantidade de patos ai encontrados.

Isto não é uma simples conjectura sem base, porém um fato confirmado por documentos que datam de poucos anos depois. No roteiro da viagem de Diogo Garcia, realizada em 1526 e 1527, lê-se o seguinte:

E andando en el camino allegamos a un río que se llama el río de los Patos questá a 27 grados, que ay una buena geracion que hacen muy buena obra a los cristianos, e llaman-se los Carrioces, que ali nos deram muchas vituallas que se llama millo é harina de mandioca, e muchas calabazas e muchos patos e otros muchos bastimentos porque eran buenos indios.

Na carta em que Luiz Ramirez descreve a viagem de Sebastião Gaboto, realizada ao mesmo tempo que a de Garcia, tendo-se os dois exploradores encontrado em Santa Catarina, lê-se também:

Dijeron que cuatro meses poco más ó menos antes allegásemos a este puerto de los Patos, que así se llamaba de elles estaban (...) En esta isla había muchas palmas en este puerto nos traían los indios infinito bastimento así de faisanes, de gallinas, babas, patos, perdices, venados, que de esto todo y de otras muchas maneras de caza había en abundancia y mucha miel.

Em nenhum destes dois documentos, que assinalam a existência de patos em Santa Catarina, se fala em Índios com tal nome, apesar de virem relacionadas as tribos encontradas pela costa. Diogo Garcia dá mesmo o nome dos Índios de Santa Catarina, os Carrioces.

Outro testemunho confirma ainda estes dois. O Adelantado D. Álvaro Nunes Cabeça de Vaca, tendo arribado a Santa Catarina, em 29 de Março de 1541, cruzou dali em direção ao Paraguai, pelo sertão, onde encontrou, dias depois, uma tribo de Índios, que o receberam com mostras de amizade.

Adelantado ou adiantado: funcionário do Reino de Castela que tinha a máxima autoridade judicial e governativa sobre um distrito.

Nos Comentários da expedição, lê-se:

Esta nação chama-se Guarani, são lavradores que, duas vezes por ano, semeiam milho. Cultivam também mandioca (caçabi), criam galinhas e patos à maneira de Espanha e em suas habitações têm muitos papagaios.

Há ainda uma objeção a refutar, e esta oposta pelo Dr. Hermann von Ihering, que, encarando a questão sob um ponto de vista diferente, negou a existência na Lagoa e em Santa Catarina do Pato Comum (Pato do mato - Cairina moschata), concluindo daí que não podia ter ele dado origem ao nome, que no seu entender provêm dos Índios Patos. O argumento do ilustre naturalista, que a primeira vista parece resolver a questão, não resiste a exame. Os primeiros exploradores da costa, não sendo entendidos em história natural, podiam tomar pelo Pato Europeu qualquer outro palmípede, que se lhe assemelhasse um pouco.

Do exposto podem-se tirar três conclusões:

- Em toda a costa de Santa Catarina ao Rio da Prata havia grande abundância de patos, que foram vistos por Solis, Diogo Garcia, Sebastião Gaboto e Cabeça de Vaca;

- Nenhum dos cronistas e roteiros do século XVI faz menção de Índios Patos, apesar de relacionarem as tribos da Costa;

- Simão de Vasconcellos explicou bem a origem dos nomes Lagoa dos Patos, Rio dos Patos, Laguna dos Patos; porém enganou-se, afirmando que os patos começaram a procriar aí em 1554.

Deve ficar, portanto, como certo, que o nome da Lagoa dos Patos, provém das aves desse nome e não de uma tribo de Índios assim chamada.

A questão tem, como se vê, duas faces, uma ornitológica e outra etnográfica, que em seguida trataremos separadamente.

- O ponto de vista ornitológico

As opiniões dos autores divergem muito sobre esta questão, opinando uns por aves domésticas importadas, outros por diversas aves indígenas, entre as quais é preciso mencionar particularmente: o Pato do Brasil, Biguá e o Pinguim. O nome “Pato” cabe em geral às espécies maiores dos Palmípedes comestíveis da família Anatidæ, cujas espécies menores são denominadas Marrecas. Esta palavra de “Pato” acha-se, em sua aplicação no Brasil, restrita à Cairina moschata (Linn.), denominada “Pato real” pelos espanhóis. Esta espécie pertence em geral mais às regiões centrais do Brasil, sendo rara, ou faltando mesmo, na maior parte do nosso litoral. No Rio Grande do Sul é encontrada particularmente ao longo dos grandes rios, marginados por mato alto; mas não é ave da Lagoa dos Patos.

Há nesta um cisne, Cygnus melanocoryphus (cisne-de-pescoço-negro), denominado “Pato arminho”. Embora seja certo que o número das aves aquáticas nas margens da “Lagoa dos Patos” diminuiu bastante nos últimos cinquenta anos, assim mesmo perto da cidade do Rio Grande obtive nada menos de 14 espécies de Anatidas; não estava incluído, entretanto, neste número a Cairina moschata. Como as minhas observações estão de acordo com as de Wied, Azara e outros observadores, é certo que o nome da Lagoa dos Patos não pode ser derivada de patos silvestres do gênero Cairina, posto que se tome por base as atuais condições faunísticas. Este fato, contudo, não exclui a hipótese de este nome provir de patos domesticados. Infelizmente é muito insuficiente o nosso conhecimento das aves criadas pelos indígenas antigos do Brasil. Uma das informações mais valiosas neste sentido devemos a Alvar Nunes Cabeça de Vaca, que em sua expedição pelo interior do Estado de Santa Catarina em 1541 notou que os indígenas “criam galinhas e gansos à maneira dos Espanhóis”. Esta indicação evidentemente se refere a Jacus e Patos e observo que eu mesmo tive, no terreiro da minha propriedade na Barra do Camaquã, Jacus e também uma Cairina moschata silvestre, em estado mais ou menos domesticado.

Penso que entre todas nossas aves o pato é o que com mais facilidade pode ser domesticado e cruzado com as marrecas e patos criados. Os Jacus também são amansados com relativa facilidade, mas de noite não são capazes de entrar no galinheiro, empoleirando-se, pelo contrário, na cumeeira da casa.

Von Martins diz que na região amazônica se criam espécies de Psophía e Crax e no Brasil Oriental o Mutum (Crax carunculata Temm.). Markgrav descreve bem o pato, mas não diz que seja criado pelos indígenas, acontecendo o mesmo com Azara, Wied e tantos outros autores, que consultei. O Padre Nóbrega diz que no Estado de S. Paulo houve muita caça de mato e patos, que os Índios criam; bois, vacas, ovelhas, cabras e galinhas se dão também na terra e há delas grande quantidade. Outra informação valiosa referente ao Estado da Bahia devemos a Gabriel Soares que, diz:

criam-se mais ao longo destes rios e nas lagoas muitas aves, a que o gentio chama “upeca”, que são da feição das da Espanha, mas muito maiores, as quais dormem em árvores altas, e criam no chão perto da água. Comem peixe, e da mandioca que está a curtir nas ribeiras, tomam os Índios estas aves, quando são novas, e criam-nas em casa, onde se fazem muito domésticas.

É certo que o Pato europeu não é mais senão um descendente da Cairina moschata da América Meridional. Han diz que já em tempos remotos se criavam patos na América.

Na sua segunda viagem Colombo viu destas aves em S. Domingos e entre elas também brancas. Southey, conta que os indígenas no Paraguai criavam nas suas casas patos almiscarados, o que se refere à Cairina moschata. Presume-se que o pato, que era a única ave criada pelos antigos Peruanos chamado “nuñuma” veio do Peru à Europa, passando pela África.

A primeira descrição desta ave deu, na Europa, Conrad Gesner, em 1555, e no mesmo ano em Paris já se ofereciam patos como fina iguaria. Na América Meridional os patos eram criados, segundo estes dados, no Peru, Paraguai e no Brasil.

Parece, entretanto, pouco provável, que já então houvessem patos domesticados na costa, como se depreende também do trecho indicado de Alvar Nunes Cabeça de Vaca. Por esta razão não podemos admitir que a ilha de Santa Catarina e diversos rios, portos e a Lagoa dos Patos tivessem recebido seus nomes de patos domesticados do gênero Cairina.

F. F. Outes dá sobre o nome da ilha de S. Catarina a seguinte informação:

Santa Cruz en su “Islario” da a entender claramente que tanto á la isla de Santa Catarina como al territorio continental adyacente se conocía en la primera época del descubrimiento bajo el nombre de los Patos “por los muchos de ellos que allí se vieron la primera vez que fue descubierto”. Esta afirmación del ilustre cosmógrafo se halla confirmada en muchos documentos de la época. Me bastará citar las declaraciones de Antonio de Montoya y El “maestre” Juan en respuesta á la 20ª pregunta del interrogatorio en el pleito del Capitán Francisco del Rojas con Sebastian Caboto. Entre los autores modernos todos han aceptado La denominación antedicha ...

La causa del mencionado nombre parece estar en la gran cantidad de “patos negros sin pluma, y con el pico curvo”, conforme a expressão de Francisco Lopez de Camará (Historia general de las Indias, in Historiadores primitivos de Indias). Estas aves, continua Outes, alguns autores supunham serem pinguins.

Estas informações antes dificultam do que facilitam a explicação. Não podemos admitir que estes patos tivessem sido Pinguins - Spheniscus magellanicus (pinguim-de-magalhães) porque estes, embora aparecendo as vezes nas costas do Brasil Meridional, nunca entram na água doce, não podendo, por conseguinte, dar o seu nome a rios e lagoas. Além disto, a cor é diferente e também o bico, é direito sem ponta recurvada.

O caráter indicado do bico nos faz pensar no Biguá (Carbo vigua Vieill.) que também é de cor uniforme preta, mas a expressão “sem penas” não pode ser aplicada nem a esta, nem com relação a qualquer outra espécie. Além disto, o Biguá, muito semelhante a espécie congênere da Europa, conhecido como “Corvo marinho”, não pode ser confundido com patos e marrecas e ocorre nas costas da América Meridional desde a Patagônia até a Guiana.

Observo ainda que não é fácil explicar o nome de “Biguassú” ou Biguá grande, dado a um rio de Santa Catarina, visto que há uma só espécie de Biguá. Há outra ave, bastante diferente em cor e bico, que é denominada Biguá-tinga (Plotus anhinga L.), porém é mais ou menos do mesmo tamanho e não ocorre na costa, mas nos grandes rios no interior do Brasil.

Biguá-tinga: conhecido também como carará na Amazônia.

Deste modo entende-se que os patos a que se referem os historiadores não podem ter sido nem pinguins nem biguás, sendo possível que se tratasse da Cairina moschata, provavelmente então muito mais comum na zona litoral do Brasil Meridional do que hoje.

Ponto de vista etimológico

Numerosos escritores dos séculos XVIII e XIX referem-se a uma tribo de Índios Patos. Sobre o domicilio dela diz o Coronel José J. Machado de Oliveira:

O rio dos Patos é hoje conhecido com o nome de Biguassú, que desemboca no canal que separa do continente a ilha de Santa Catarina; servia ele de confins as tribos dos Carijós e dos Patos, que habitavam a primeira, o litoral entre a Conceição e o Biguassú, e a segunda o que decorre deste para o Sul.

Na sua história da Capitania de S. Vicente, publicada em 1772, diz Pedro Taques de Almeida Paes Leme:

É certo que da Vila de S. Vicente saíram, em 24 de Agosto de 1554, os Padres jesuítas Pedro Corrêa e João de Souza para a missão dos gentios Tupis e Carijós dos Patos e ambos foram mortos pela barbaridade destes Índios, como escreve o Padre Simão de Vasconcellos na “Chronica do Brazil”, onde mostra que Pedro Corrêa era sujeito de nobreza conhecida, e se fizera opulento na Vila de S. Vicente, para onde tinha vindo com o fidalgo Martim Alfonso de Souza, porém que, deixando a vida secular, tomara a roupeta (hábito talar dos sacerdotes) no Colégio de S. Vicente, e, ordenado, de presbítero, empregara o seu talento e ciência da língua dos gentios em converte-los à fé católica, até que encontrara com a coroa do martírio pelos bárbaros Índios Carijós do Sertão dos Patos.

Outras informações sobre a região ocupada pelos Patos encontram-se no artigo de Felix F. Outes, “El puerto de los patos”, que reproduz vários mapas antigos do Brasil e do Paraguai, que, além dos dados geográficos, contém indicações sobre as diversas tribos indígenas. Estes mapas dão para a região do Rio Grande do Sul e parte contígua de Santa Catarina o nome dos Índios Patos. O mais antigo destes mapas com tal indicação é o da Est. VIII, “construido por los jesuitas (1646-1649)”. Todos os outros mapas seguintes indicam na mesma região os Índios Patos. Os mapas mais antigos, publicados por Outes, não dão os nomes das tribos indígenas.

Não parece existir nenhuma informação exata sobre estes Patos. Tomando em consideração que o território do Rio Grande do Sul nos tempos antigos não foi explorado e só bem tarde foi colonizado, não é de admirar que sejam escassos e insuficientes os dados referentes aos primitivos habitantes do Rio Grande do Sul. É singular, entretanto, que o livro do Padre Gay, tratando minuciosamente dos indígenas do Brasil Meridional e do Paraguai nem sequer nos transmita o nome de uma nação dos Patos. É bastante notável neste sentido o manuscrito do ano de 1612 que Gay reproduz com referencia aos indígenas do Rio Grande do Sul, mencionando Guaranis, Arachanes, Charruas e Goianás. Nem o manuscrito anônimo de 1584, nem Gabriel Soares mencionam os Patos, tratando, aliás, apenas dos indígenas desde o Pará até Santa Catarina.

Com referência ao livro de Ayres Casal diz Alfredo F. Rodrigues, ter ele sido o primeiro a mencionar os Índios Patos, ao passo que segundo F. Outes ele se teria referido não a Índios, mas à ave Pato. Neste sentido trata-se de um engano do último dos dois autores, visto que o livro de Ayres Casal se refere exclusivamente a Índios - “A Lagoa dos Patos, que tomou o nome duma Nação desconhecida ...”

Em geral podemos verificar que os escritores do século XVI não mencionam Índios Patos, referindo-se apenas às aves palmípedes e que nas publicações do século XVII se acha registrada uma tribo de Patos, sem que, entretanto, fossem dadas informações exatas.

Conclusões

Resulta da exposição precedente que, para a explicação dos nomes da Lagoa dos Patos, do Rio dos Patos, etc. na literatura antiga há duas versões: Uma que se refere às aves palmípedes de que trata a literatura do século XVI e outra referente aos Índios Patos segundo a literatura do século XVII e seguintes. Contra esta segunda opinião pode-se objetar a falta de informações, referentes a estes indígenas na literatura mais antiga e isto no próprio manuscrito anônimo de 1612, publicado por Gay. É preciso, entretanto, considerar que algum dos outros nomes de tribos Rio-grandenses, indicados naquele manuscrito, pode ser sinônimo do dos Patos e, mais, que argumentos de caráter negativo nada provam, particularmente, sendo, como é, a literatura antiga deficiente em informações etnográficas aproveitáveis. Por sua vez a literatura do século XVI contém várias informações sobre a origem ornitológica destas denominações, mas as mesmas são contraditórias entre si. As aves a que se referem os antigos escritores, é licito supor-se, não devem ter sido nem pinguins ou biguás nem marrecas ou patos domesticados. Já João Dias de Solis, em 1515, deu à Ilha de S. Catarina o nome de Ilha dos Patos, sendo impossível supor que isto dissesse respeito a aves domesticadas, importadas da Europa.

Se as diversas denominações dos “Patos” fazem referência à aves aquáticas, pode-se tratar apenas do “Pato Real” (Cairina moschata), devendo-se supor que esta ave tenha existido naquela época em muito maior número que hoje, nas costas do Brasil Meridional. Se assim for, não seria para admirar que os exploradores tivessem dado a várias localidades a denominação dos “Patos”, visto representar esta ave, sem dúvida, a caça mais valiosa entre as aves aquáticas daquela região.

Em favor desta hipótese posso acrescentar o resultado de um estudo geológico por mim publicado, que prova uma modificação profunda no caráter da vegetação no litoral do Rio Grande do Sul. Perto da costa observei, na vizinhança da cidade de Rio Grande do Sul, colinas, coroadas de uma vegetação de arbustos espinhosos, que mostravam pouco em baixo da superfície uma camada argilosa, humosa, com conchas terrestres e fluviais, que sugerem uma modificação profunda da flora e da fauna.

De experiências desta ordem devem lembrar-se os engenheiros que pretendera melhorar as condições da Barra; recomenda-se, como auxílio indispensável, a defesa das terras por meio de vegetação, não só nas margens do canal, mas também numa faixa de 1 a 2 léguas de largura.

É preciso confessar que os dados aqui expostos não conduziram a um resultado seguro.

Admitindo que os autores que falam de Índios Patos tivessem cometido um erro, a mesma suposição é aplicável aos autores do século XVI, cujas informações a respeito das aves “patos” são contraditórias, mas também em parte incompreensíveis e evidentemente falsas. A explicação, entretanto, que nas atuais circunstâncias mais se recomenda, é a do Sr. Alfredo F. Rodrigues, que precisa ser modificada só no que diz respeito às aves que causaram a dita denominação. O caso seria então o de ter sido, antigamente, o Pato Real muito mais frequente no Brasil Meridional do que atualmente, tendo causado a denominação de várias localidades porque, como excelente caça que é, tornou-se digno de toda atenção por parte dos descobridores. O que neste sentido nos confirma mais nesta opinião é o fato de existirem também em outros Estados do Brasil localidades com a denominação de “Patos”, como nos estados de Minas Gerais e Paraíba. Não podemos atribuir estes nomes também naqueles Estados a uma tribo desconhecida dos Patos, sendo ao contrário evidente que a explicação, que deriva de uma origem comum a todas estas denominações, é a mais aceitável.

São Paulo, 8 de Agosto de 1903

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