Depois de visitar a Missão Salesiana e entrevistar o seu Bispo Emérito, constato, tristemente, o quanto os objetivos da Igreja Católica e da Força Terrestre se distanciaram nas últimas décadas. Os relatos do Major Boanerges deixam isso muito claro quando mostram, na época, um clero preocupado em fazer com que o nativo atingisse a plenitude da cidadania brasileira.
Recolhi em alguns fragmentos de minhas amazônicas leituras um personagem invulgar do clero que participou ativamente de movimentos políticos e sociais na região amazônica, o Frei Carmelita José dos Santos Inocentes.
Conflito de Lages
No dia 22 de junho de 1832, foi articulada uma revolta popular contra a subordinação política do Rio Negro ao Grão-Pará, e proclamada a Província do Rio Negro. Um dos grandes articuladores do movimento foi o Frei Carmelita José dos Santos Inocentes. O movimento foi esmagado pelas armas, sem que o governo imperial atendesse às razões apresentadas pelos amazonenses, que tinham enviado ao Rio de janeiro um delegado, o Frei José dos Santos Inocentes que conseguiu, apenas, que fosse criada a Comarca do Alto Amazonas.
Pés de Chumbo
O Frei José foi enviado a Cuiabá, em março de 1833, acompanhando uma comitiva militar, como “embaixador da insurreição” que havia irrompido, em 7 de dezembro de 1831, contra os “pés-de-chumbo” portugueses.
Questão do Pirara
O governo inglês havia contratado o alemão Robert Schomburgk, homem de ciência, geógrafo e naturalista, para realizar pesquisas na Guiana Inglesa e em terras Brasileiras. Schomburgk, em 1835, chegou até o forte São Joaquim, no centro do Vale do Rio Branco, onde foi recebido com cortesia, sem que os brasileiros desconfiassem de suas reais intenções. Schomburgk regressou a Londres mas, em 1837, voltou à Guiana dando continuidade aos seus “estudos geográficos”. Em seus relatórios a Londres, Schomburgk mandava dizer que a soberania brasileira na região era fraca, precária, quase inexistente. Sugeriu que a Inglaterra deveria ocupar esses espaços “vazios” e demarcá-los para os domínios de sua majestade inglesa e até de ocupá-los em caráter permanente. A opinião pública britânica apoiou a ideia e o missionário protestante Thomas Youd foi enviado para a região. Youd instalou-se na região do Pirara e iniciou a evangelização dos índios, o ensino do idioma inglês e seu aliciamento para o domínio britânico. A bandeira inglesa passou a tremular em território brasileiro. O Comandante do Forte Capitão Ambrósio Aires e o Frei José dos Santos Inocentes, cumprindo ordens do Presidente da Província do Pará, intimaram o “missionário” a deixar o território brasileiro.
- Wallace e o Frei José
O Frei José que Wallace encontra, no Rio Negro, em Nossa Senhora da Guia e depois nas proximidades de Pedreiro carrega consigo apenas uma vaga lembrança do homem que fora no passado. O ex-soldado trazia no corpo as marca do tempo e da rude vida que levara embora conservasse o espírito jovem.
Nossa Senhora da Guia (janeiro de 1851)
Enfim, o Padre chegou, ou melhor, o Frade: Frei José dos Santos Inocentes. Veio com ele o Comandante da Vila de Marabitanas, o Senhor Tenente Felisberto. Frei José era um homem alto, magro, precocemente envelhecido, inteiramente desgastado por uma vida de devassidão. Tinha as mãos deformadas e o corpo ulcerado. Não obstante, apreciava enormemente relembrar as proezas de sua juventude, sendo considerado o mais original e divertido contador de anedotas da Província do Pará.
Para vir da praia à colina onde se situa a Aldeia, o Frade teve de ser carregado numa rede. Antes de iniciar os rituais religiosos, foram-lhe precisos dois dias de completo repouso. Fui visitá-lo muitas vezes, sempre acompanhado do Senhor Lima, divertindo-me enormemente com seu inexaurível estoque de anedotas. Ele parecia tudo saber acerca de todos os moradores da Província, tendo sempre algo de divertido e bem-humorado para contar a respeito de cada um. Seus casos eram, na maior parte das vezes, extremamente vulgares e fesceninos (obscenos); mas ele os contava com tamanha graça, numa linguagem tão pitoresca e expressiva, ilustrando-os com engraçadíssimas imitações de vozes e maneiras, que eles se tornavam irresistivelmente hilariantes.
Ademais, há um certo encanto particular no ato de se escutar uma boa anedota contada em uma língua estrangeira. O desfecho torna-se ainda mais interessante, já que a dificuldade de compreensão acentua a sua imprevisibilidade. Além de tudo, o conhecimento que se adquire das diferentes maneiras de se utilizarem os idiotismos do idioma produz um prazer inteiramente distinto, somando-se ao causado pela própria anedota em si. Frei José não repetiu um único caso durante toda aquela semana que passou conosco. Até o Senhor Lima, que já o conhecia há muitos anos, confessou que desconhecia boa parte das histórias que ele então nos contou.
Quando jovem, ele fora soldado. Depois, entrara para o convento, e fora ordenado Frade, sendo depois designado para a função de sacerdote paroquial itinerante. Dos seus tempos de convento, guardava a lembrança de casos semelhantes aos que nos conta Chaucer acerca de sua vida em circunstâncias idênticas. Don Juan era um inocente, comparado com Frei José! Todavia, ele fazia questão de frisar que tinha profundo respeito pelo seu hábito de Frade, e que não seria capaz de cometer qualquer ato vergonhoso que o desabonasse... durante o dia! (WALLACE)
- Guerra Bacteriológica
O emprego, ritual ou criminoso, de agentes bacterianos é reportado por viajantes em diversos documentos antigos. Vamos reproduzir alguns desses trechos citados por: Alfred Russel Wallace (1851), Boanerges Lopes de Sousa (1928), Ettore Biocca (1944) e José Cândido de Melo Carvalho (1949).
Relatos Pretéritos
Alfred Russel Wallace (1851) - Varíola
Nessa mesma noite, alcancei a embarcação de Frei José, que seguia para Pedreiro (outubro de 1851) numa de suas tradicionais viagens pastorais e de negócios. Como paramos no mesmo local para o pernoite, fui a sua grande e cômoda canoa para conversar um pouco. A certa altura da palestra, passamos a falar sobre a epidemia de varíola que então assolava o Pará. Aproveitando o ensejo, ele relatou-me um caso ocorrido consigo próprio e relacionado com o assunto, parecendo bastante orgulhoso de ter sabido utilizar-se “diplomaticamente” dessa terrível doença:
- Quando eu estava na Bolívia, havia diversas tribos belicosas instaladas ao longo do caminho de Santa Cruz. Os índios pilhavam e assassinavam os viajantes que por ali passavam. O Presidente vivia mandando soldados para o local, tendo gasto vultosas somas de dinheiro em armamentos e munições, mas sem conseguir com isso grandes resultados. Nessa época, grassava a varíola na Cidade. Para prevenir o contágio, ordenava-se que fossem queimadas as roupas das pessoas que morriam em consequência do mal.
Um dia, conversando com Sua Excelência acerca dos tais índios, sugeri-lhe um método prático e barato de exterminá-los, sem ter que apelar para tiroteios e vigilâncias. “Ao invés de queimar as roupas”, disse-lhe, “basta ordenar que elas sejam colocadas nos locais que os índios frequentam. Eles irão por certo apossar-se delas, e daí a pouco extinguir-se-ão como fogo-fátuo”. Pois bem: o Presidente seguiu meu conselho, e foi dito e feito. Em poucos meses, ninguém mais ouviu falar das atrocidades dos índios. Quatro ou cinco tribos foram totalmente dizimadas! A bexiga faz o diabo entre os índios! (WALLACE)
Boanerges Lopes de Sousa (1928) - Purupuru
O General Dionísio verificou que os índios habitantes do Cassiquiare sofriam - em sua generalidade - de uma moléstia cutânea, a que dão no Amazonas o nome de Purupuru e que consiste - ora na perda do pigmento, deixando a descoberto as manchas brancas - ora adquirindo uma cor bronzeada. É a mesma doença dos índios do Içana e afluentes. (SOUZA)
Ettore Biocca (1944) - Puru-Puru
A difusão da espiroquetose discrômica (Puru-Puru, Pinta, etc.) entre os índios da região do Alto Rio Negro é em grande parte relacionada a duas maneiras de transmissão: ritual e criminosa. Para tribos inteiras, as manchas do Puru-Puru são quase um distintivo nacional. Nas festas mágicas, das quais podem participar os adultos e os moços depois da puberdade, é realizada a transmissão da infecção por meio de violentas fustigações recíprocas, feitas com um adabi (chicote ritual), que, provocando o sangramento das lesões, funciona como meio de transmissão. A transmissão ritual entre membros da mesma tribo é substituída pela transmissão criminosa contra os estrangeiros não queridos (índios ou brancos). Os índios depõem gotas de sangue infectante, retirado da margem das lesões mais recentes, em alimentos, preferivelmente irritantes da mucosa bucal, para assim facilitar a penetração dos treponemas. Outros sistemas de transmissão criminosa são também usados, como a contaminação com sangue infectante de banquinhos de madeira, etc. ( BIOCCA)
José Cândido de Melo Carvalho (1949) - Purupuru
Tunuí é uma povoação em Lugar alto, ao pé da serra do mesmo nome, dominando amplamente a cachoeira e longo trecho do Rio (Içana). Do lado da serra, há cinco casas, três do outro, e uma mais isolada junto às primeiras. Uma capelinha domina o ponto mais alto da povoação. Os índios desse local - quase todos Baniwas - são numerosos e muito tímidos. Conhecem mal o português. Muitos trazem claramente estampadas no corpo as marcas brancas da doença por eles denominada de Purupuru. Esse mal, ocasionado por um espiroqueta do sangue circulante, (Treponema carateum) parece ser responsável, além de outras coisas, por um desiquilíbrio da pigmentação da pele, albina nuns pontos e inteiramente melânica em outros, notadamente em torno dos olhos e do nariz. (CARVALHO)
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